TÍTULO EXECUTIVO
DOCUMENTO EXARADO OU AUTENTICADO POR NOTÁRIO
OBRIGAÇÃO RESULTANTE DO TEOR DO DOCUMENTO
PRESTAÇÕES FUTURAS
CLÁUSULA PENAL
PEDIDO DE REDUÇÃO EQUITATIVA
Sumário


I– Têm força executiva os documentos exarados ou autenticados por notário ou outra entidade ou profissional com competências semelhantes, sempre que revelem a constituição ou o reconhecimento de alguma obrigação.
II– No caso de contrato de compra e venda, tal obrigação não tem que ser apenas a de entregar o bem objeto do contrato e a de pagar o preço.
III- A exequibilidade de um título executivo deverá ser estendida a obrigações que resultem do teor dos documentos, quer em atenção às obrigações de natureza negocial, quer às de natureza legal.
IV– Tal pode suceder relativamente a prestações futuras neles convencionadas, desde que a instauração de execução seja acompanhada de prova da realização de alguma prestação para conclusão do negócio ou da constituição de alguma obrigação decorrente da anterior previsão.
V- A redução equitativa da cláusula penal, prevista no artigo 812.º do Código Civil, não é oficiosa, dependendo do pedido do interessado, a quem caberá alegar e provar os factos de onde seja possível extrair a excessividade da estipulação, fora dos limites comportáveis pela liberdade contratual.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

V. M., executada, nos autos de execução em que é exequente J. R., deduziu oposição por embargos invocando a inexistência de título executivo, por o contrato de compra e venda dado à execução não traduzir nem o reconhecimento ou confissão da dívida, nem a constituição da mesma, não tendo o exequente procedido à sua resolução e sempre constituindo o montante indemnizatório clausulado, uma verdadeira cláusula penal usurária que sempre teria que ser reduzida.
O exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição e peticionando a condenação da embargante como litigante de má-fé em multa e indemnização, nunca inferior a € 1500,00.
Teve lugar a audiência prévia e, frustrada a conciliação, foram as partes advertidas de que se iria conhecer de imediato do mérito da causa.
Ambas as partes alegaram por escrito, mantendo as suas posições e pronunciando-se a embargante sobre a peticionada litigância de má-fé.
Foi proferido saneador-sentença que julgou a oposição à execução improcedente, concluiu pela inexistência de má-fé e ordenou o prosseguimento da execução.

A embargante interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

- Por douta sentença proferida em Primeira Instância, foi julgada improcedente e não provada a oposição à execução por embargos que havia sido deduzida pela recorrente.
- Em tal oposição pugnava a recorrente pela inexistência de título executivo, e subsidiariamente, pela não exigibilidade da quantia exequenda, por excessiva onerosidade da cláusula penal estabelecida.
- Sucede que as razões então invocadas pela recorrente não foram acolhidas pelo Douto Tribunal recorrido, que motivou a interposição do presente recurso.
- De facto, não só não existe título executivo bastante, como de igual modo, razões existem para que se considere inexigível o valor exequendo.
- Assim, de acordo com o disposto no nº 4 do artº 10 do CPC, constituem acções executivas “(…)aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coactiva de uma obrigação que lhe é devida. “
- Por seu turno, e conforme se dispõe o nº 5 do mesmo normativo “Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.”
- Adianta também a alínea b) do nº 1 do artº 703º do CPC que podem servir de base à execução, entre outros, os documentos exarados ou autenticados, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.
- De acordo com os normativos citados, estabelece pois a lei requisitos formais e substanciais para que a um determinado título se confira força executiva, definindo qual o tipo de documento que poderá servir de base a uma execução.
- Assim, o título executivo pode ser definido, face à lei, como o documento que serve de base à execução de uma prestação, por incorporar em si a demonstração legalmente bastante do direito correspondente, nomeadamente, pela constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.
- Sendo o título executivo condição indispensável para o exercício da acção executiva, não é o mesmo a sua causa de pedir, residindo esta na relação substantiva que está na base da sua emissão, ou seja, o direito plasmado no título.
- No caso sub judice, o documento particular autenticado que estribaria a execução é constituído por contrato de compra e venda ajustado entre recorrente e recorrido, cujo objecto consiste na transmissão de um direito real de propriedade sobre um identificado imóvel.
- Ora, de acordo com o disposto no artº 874º do Código Civil, a compra e venda consiste num contrato, por força do qual se transmite a propriedade de uma coisa mediante um preço.
- Assim, sendo a compra e venda um negócio consensual (de acordo aliás com o regime legal consagrado no artº 408º do Código Civil) bastará o seu ajuste para que se opere a transferência ou transmissão dos direitos reais, sendo que, nessa medida tem a mesma por efeitos essenciais imediatos a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa, e a obrigação de pagar o preço.
- No caso em apreço, conforme decorre do douto requerimento executivo, não veio o recorrido “peticionar” o cumprimento da obrigação que decorria para a ora recorrente, mas veio sim peticionar um montante indemnizatório que pressupõe ele próprio a destruição do vínculo contratual estabelecido no contrato.
- Consequentemente, os montantes ou valores que se reclamam, e cuja cobrança coerciva se requereu, não correspondem às obrigações assumidas reciprocamente pelos respectivos outorgantes no âmbito e no cumprimento de compra e venda formalizada pelo título dado à execução, mas sim montantes que alegadamente seriam devidos por força, precisamente, da destruição do vínculo contratual.
- Ora, a “destruição” dos vínculos contratuais necessariamente há-de acarretar também a destruição do clausulado do próprio contrato de compra e venda que constitui o título que o recorrido deu à execução.
- Assim sendo, o título que suporta a presente execução, tendo em conta os “pedidos” formulados que pressupõe necessariamente a resolução do contrato, não se encontra contemplado no quadro normativo plasmado no artº 703º, nº 1, alínea b) do CPC, não possuindo pois a força executiva de acordo com os fins pretendidos pelo recorrido, já que, o montante exequendo não resulta de qualquer obrigação decorrente do contrato de compra e venda, mas precisamente da resolução do mesmo.
- Resulta do requerimento executivo que a exigência da quantia exequenda, ou seja, do dobro do preço pago, não se coaduna ou compadece com a manutenção do contrato de compra e venda, e, em concreto, não se compadece com a manutenção dos seus efeitos atrás descritos, antes pressupondo a destruição da relação contratual.
- De facto, o contrato de compra e venda é um contrato consensual, bastando o seu ajuste para que o direito real de propriedade se transmita.
- Consequentemente, enquanto não extinto, o contrato prevalece, tal como prevalecem os seus efeitos, e, concretamente, tal como prevalece, e se mantém, o direito de propriedade na titularidade do recorrido.
- Se assim é, e sendo certo que a quantia exequenda mais não é do que o dobro do preço prestado, parece não ser consentâneo com a lógica jurídica, que o recorrido mantenha a titularidade do direito de propriedade, e ao mesmo tempo seja credor das importância reclamadas.
- A reclamação de tais quantias, pelo contrário, deverá ser feita no quadro da “destruição” do contrato e compra e venda, pelos modos previstos na lei civil.
- Assim, e em concreto, não tendo a recorrente alegadamente incumprido com a obrigação de expurgação dos ónus incidentes sobre o prédio, competirá ao recorrido o direito de, ou reparar a expurgação coerciva de tais ónus, ou, em alternativa, o direito de resolver o contrato de compra e venda, por incumprimento definitivo da recorrente.
- Tal resolução contratual, porque respeitante a contrato relacionado com a transmissão de direitos reais, teria sempre de ser peticionada através da interposição de acção declarativa, ou, em último caso, teria de ser invocada pelo recorrido e comunicada à recorrente em momento necessariamente anterior ao da instauração da acção executiva, sendo que a citação para os presentes autos não poderá nunca valer como prévia declaração de resolução, pois que, não só não é essa a sua função, como de igual modo não foi sequer invocada ou referida tal declaração no requerimento executivo.
-Como tal, por não ter ocorrido a prévia declaração de resolução contratual, sempre estaria vedado ao recorrido reclamar o montante indemnizatório constante do contrato de compra e venda, o qual só seria eventualmente exigível com a resolução contratual, que não foi peticionada, e muito menos declarada.
- Deste modo, tendo em conta que numa acção executiva o título deverá definir os fins da execução, também com este fundamento se haverá de concluir pela inexistência de título para os fins pretendidos.
- Acresce que, sendo certo que a resolução de um qualquer contrato poderá operar por via extrajudicial, desde que fundamentada, o que é certo também é que, quando referente a contrato que vise a constituição ou transmissão de direitos reais, assim poderá não ser, desde logo tendo em conta o princípio da tipicidade ínsita aos direitos reais.
- De facto, tendo em conta que a declaração de resolução se refere no caso em apreço, a contrato que teve como efeito a transmissão de um direito real de propriedade, sempre tal resolução teria de obedecer a forma solene, que, atento os princípios consagrados no artº 80º do Código do Notariado, e do artº 220º do Código Civil, não se compadece por uma declaração não formal e unilateral, mas que exige um reconhecimento judicial no seguimento de interpelação da acção judicial destinada a reconhecer e validar tal declaração resolutiva.
- Deste modo, também por força de tal argumento, se deveria ter entendido de forma diversa daquela que resultou da douta decisão recorrida.
- Por outro lado, de acordo com o regime legal vazado nos artigos 433º e 434º do Código Civil, que remete para o quadro normativo dos artºs 289º e 290º do CC, a resolução de um contrato operará a destruição do negócio e a consequente restituição de tudo aquilo que as partes reciprocamente prestaram.
- Face a tal regime legal, será pois de concluir que a resolução do contrato, a ter existido (o que se não concede), determinaria para o recorrido o direito, não a receber a quantia exequenda, mas sim e unicamente a receber, por restituição, o preço que o mesmo havia pago, razão pela qual sempre teria de proceder a oposição deduzida, no que a este respeita se refere, por falta de título executivo bastante.
- De qualquer modo, e tal como se alegou em sede de oposição à execução, da análise do próprio contrato de compra e venda resultará a constatação de desproporcionalidade de prestações a cujo cumprimento os outorgantes se obrigaram, desproporcionalidade essa decorrente da circunstância da recorrente, para receber o valor de € 7.000,00, ver-se desapossada do seu direito de propriedade do prédio em apreço, e ao mesmo tempo ter de pagar o valor das penhoras, valor esse substancialmente superior.
- A constatação de tal desproporcionalidade das prestações e contraprestações convencionadas no próprio contrato de compra e venda, leva a que se considere que se encontra ferido, de forma indelével, o princípio da boa-fé e da reciprocidade das prestações, o que sempre determinaria a nulidade da compra e venda, de acordo com o regime legal vazado no artº 280º e 286º, ambos do Código Civil, sendo que, tal nulidade, por seu turno, determinaria também a inexigibilidade da quantia exequenda, que de igual modo se invoca.
- A quantia exequenda integra um montante indemnizatório pré-fixado, que constitui verdadeiramente uma cláusula penal.
- Independentemente da função ou natureza que se atribuía a tal cláusula penal, dever-se-á salientar que o cumprimento desta não pode ser nunca cumulado com o cumprimento da obrigação principal.
- Por outro lado, no nº 1 do artº 812º do Código Civil, é consagrado um regime legal imperativo, por força do qual se determina a necessidade de redução da cláusula penal quando esta for manifestamente excessiva, decorrendo esta imposição da necessidade de preservação do princípio fundamental da proporcionalidade.
- Ora, no caso em apreço, contrariamente ao que foi entendido pelo Tribunal de 1ª Instância, parece evidente, atentas todas as circunstâncias relatadas nestas alegações, que o montante indemnizatório fixado previamente é totalmente desproporcional e excessivo, pelo que deveria ser o mesmo reduzido de acordo com critérios de equidade, que deveriam conduzir por seu turno à sua fixação em montante equivalente ao preço prestado, eventualmente acrescido do valor referente aos frutos civis ou juros que tal capital renderia desde o momento do pagamento do preço, até à sua restituição.

Pelo exposto, considera pois a recorrente que o douto Tribunal recorrido incorreu em erro na interpretação e aplicação do direito, tendo violado, entre outros, o disposto nos artºs 10º, nº 4 e 5, 703º, nº 1, alínea b) e 707º, todos do Código de Processo Civil; artº 220º, 280º, 281º, 286º, 289º, 408º, nº 1, 432º, 436º, 874º e 875 todos do Código Civil, bem como o artº 80º do Código do Notariado, razão pela qual deverá tal Douta Sentença ser revogada, e substituída por outra que julgue procedente, por provada, a oposição por embargos deduzida pela recorrente, pois que assim se fará inteira e cabal justiça.

O embargado contra alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se o documento dado à execução constitui um título executivo e se o montante indemnizatório fixado é desproporcionado e excessivo, devendo ser reduzido.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:
“Por documentos e acordo das partes resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da causa:
1. V. M., por si e na qualidade de procuradora de A. J., como Primeiros Contratantes e J. R., como Segundo Contratante, celebraram, em 25 de Setembro de 2014, contrato de compra e venda, que foi dado à execução, e se encontra autenticado por solicitador.
2. O referido contrato de compra e venda tem as seguintes cláusulas:
“Primeira
(Objecto)
Pelo presente contrato os Primeiros Contratantes vendem ao Segundo Contratante, que o aceitam, o prédio rústico, composto por pinhal e mato, com a área de 10.951 metros quadrados, denominado Bouça da … ou …, sito em …, freguesia de Este (...), concelho de Braga, a confrontar a Norte com J. V., a sul com Baldio Paroquial e caminho público, a nascente com caminho Público e a poente com Baldio Paroquial, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de … sob sob o número … da Freguesia de …, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo … da Freguesia de …, atualmente inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da União de Freguesias de …, com o valor patrimonial de 61,15 euros, doravante designado por “Imóvel”.
Segunda
(Preço)
O Imóvel é vendido pelo preço de 7.000,00 euros, que os Primeiros Contratantes já receberam e de que dão quitação.
Terceira
(Ónus e encargos)
1 - O Imóvel é vendido livre de quaisquer ónus ou encargos, assumindo os primeiros outorgantes a responsabilidade dos devidos levantamentos de penhora.
2 - Caso se venha a verificar a existência de quaisquer ónus ou encargos sobre o imóvel fica imediatamente anulada a presente venda, ficando os vendedores também imediatamente obrigados a restituir ao comprador o dobro do preço entregue em 25/09/2014, no valor global de € 7.000,00 euros, ficando assim, sem mais, devedores de tal quantia acrescida de todas as despesas que o comprador teve - ou que venha a ter - com o presente negócio, mormente judiciais, tributárias e com Advogado e Agente de Execução, tudo acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento, assistindo ao comprador o direito de exigir o previsto nesta cláusula, judicial ou extrajudicialmente, especificamente recorrendo sem mais ao processo executivo para cumprimento de obrigações pecuniárias. Para efeitos da presente cláusula, consigna-se que o comprador teve despesas com o presente acto, no montante global de € 2.500,00.
Quarta
(Outras declarações)
Os vendedores declaram que o prédio rústico vendido não é confinante com outros prédios rústicos que lhe pertençam.
Quinta
(Mediação Imobiliária)
As partes não recorreram a mediação imobiliária.”

3. O preço global de € 7 000,00 (sete mil euros) foi recebido integralmente pelos Executados.
4. Encontram-se registadas sob o referido imóvel penhoras, sob as apresentações 30 de 2008/11/07, 3559 de 2013/10/17 e 1683 de 2014/04/30.
5. O exequente enviou à embargante a carta junta a fls. 12 dos autos principais, cujo teor se dá por reproduzido, a qual veio a ser devolvida. (fls. 12 a 14 dos autos).

Entende a recorrente que não existe título executivo bastante para o fim a que a execução se destina, sendo que o documento de que o recorrido se serviu como título executivo, constitui documento particular autenticado que formaliza um contrato de compra e venda de bem imóvel. Como tal, os seus efeitos essenciais são: a transmissão da propriedade da coisa; a obrigação de entregar a coisa; a obrigação de pagar o preço. Não peticionando o recorrido a entrega da coisa, o contrato em causa não pode servir de título executivo, uma vez que o montante indemnizatório peticionado pressupõe a destruição do vínculo contratual ou a anulação do mesmo. Nesse caso, teria o recorrido que promover a resolução do contrato de compra e venda por incumprimento definitivo da outorgante compradora (por não ter cumprido a obrigação de expurgação dos ónus existentes sobre o imóvel)
Vejamos.
Nos termos do disposto no artigo 10º, n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil, dizem-se “ações executivas” aquelas em que o credor requer as providências adequadas à realização coativa de uma obrigação que lhe é devida, sendo que toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva. Os diversos tipos de títulos executivos estão elencados no artigo 703º do Código de Processo Civil que na alínea b) do seu n.º 1 atribuiu força executiva aos ”documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação”.
Não há dúvida que, formalmente, o documento apresentado como título executivo – contrato de compra e venda outorgado por exequente e executada e autenticado por solicitador – preenche aqueles requisitos, ficando por apurar se o mesmo importa para a embargante a constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação, para além da inerente ao contrato de compra e venda, de entregar o imóvel.
Como é sabido, a admissibilidade da ação executiva funda-se na pressuposição de que existe um direito na esfera jurídica do exequente cujo cumprimento coercivo possa ser efectivado, tendo por suporte um título executivo – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimento e Luís Sousa, CPC Anotado, vol. II, Almedina, pág. 14.
No caso dos documentos exarados ou autenticados por notário ou outra entidade com competências semelhantes, já vimos que só têm força executiva sempre que revelem a constituição ou o reconhecimento de alguma obrigação.
Contudo, tal obrigação não tem que ser apenas – no que ao contrato de compra e venda diz respeito – a de entregar o bem objeto do contrato e a de pagar o preço (cfr. artigo 874.º do CC). A exequibilidade deverá ser estendida a obrigações que resultem do teor dos documentos, quer em atenção às obrigações de natureza negocial, quer às de natureza legal – neste sentido, veja-se autores e obra citada, pág. 23.
Tal está, aliás, expressamente regulado, quanto a obrigações futuras, no artigo 707.º do CPC. “Procurando atender à diversidade e à complexidade das relações jurídicas, admite-se a exequibilidade dos documentos aí previstos relativamente a prestações futuras neles convencionadas ou cuja constituição neles esteja prevista, desde que a instauração de execução seja acompanhada de prova da realização de alguma prestação para conclusão do negócio ou da constituição de alguma obrigação decorrente da anterior previsão” – autores e obra citada, pág. 36.

Ora, como muito bem se refere na sentença recorrida:
“Trata-se de reconhecer força executiva ao contrato de compra e venda de imóvel em causa, porquanto os executados reconhecem no mesmo que, no caso de o imóvel não ficar livre de ónus e encargos, em alternativa à efetivação dos efeitos decorrentes da venda, o exequente poderá obter a anulação da venda e o pagamento das suas responsabilidades através da execução imediata. No presente caso, o contrato estava dependente de uma obrigação futura – levantamento das penhoras, sendo que as partes previram expressamente em cláusula do contrato dado à execução que caso as penhoras não fossem levantadas “fica imediatamente anulada a presente venda, ficando os vendedores também imediatamente obrigados a restituir ao comprador o dobro do preço entregue em 25/09/2014, no valor global de € 7.000,00 euros, ficando assim, sem mais, devedores de tal quantia acrescida de todas as despesas que o comprador teve - ou que venha a ter -com o presente negócio, mormente judiciais, tributárias e com Advogado e Agente de Execução, tudo acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento, assistindo ao comprador o direito de exigir o previsto nesta cláusula, judicial ou extrajudicialmente, especificamente recorrendo sem mais ao processo executivo para cumprimento de obrigações pecuniárias”.
O exequente produziu prova complementar bastante da não verificação da obrigação futura, documentando-a através de certidão extraída do registo predial – provou que as penhoras não foram levantadas e mantém-se registadas (aliás a executada reconhece que as penhoras não foram levantadas e mantém-se activas)”.
As partes contrataram no exercício da sua liberdade contratual – artigo 405.º do CC -, tendo clausulado outras obrigações (futuras), para além das genéricas da entrega do bem mediante a entrega do preço e tendo o exequente efetuado a prova que lhe competia da não verificação da obrigação da executada de expurgar o imóvel de ónus ou encargos (juntando, para o efeito a certidão do registo predial com o respetivo registo de penhoras incidentes sobre o imóvel).
Daí que o exequente esteja munido do título executivo bastante que lhe permite – na falta de cumprimento da obrigação da executada – executar a cláusula terceira do contrato celebrado entre ambos “fica imediatamente anulada a presente venda, ficando os vendedores também imediatamente obrigados a restituir ao comprador o dobro do preço entregue em 25/09/2014, no valor global de € 7.000,00 euros ficando assim, sem mais, devedores de tal quantia acrescida de todas as despesas que o comprador teve - ou que venha a ter -com o presente negócio, mormente judiciais, tributárias e com Advogado e Agente de Execução, tudo acrescido de juros à taxa legal até efetivo e integral pagamento, assistindo ao comprador o direito de exigir o previsto nesta cláusula, judicial ou extrajudicialmente, especificamente recorrendo sem mais ao processo executivo para cumprimento de obrigações pecuniárias. Para efeitos da presente cláusula, consigna-se que o comprador teve despesas com o presente acto, no montante global de € 2.500,00”.
O que as partes convencionaram foi que, não sendo canceladas as penhoras, ficasse sem efeito a venda, pelo que não colhe o argumento de que o exequente apenas poderia requerer a transmissão da coisa livre de ónus e encargos. O exequente apenas pede o que ficou livremente estipulado pelas partes no contrato, designadamente quanto ao valor da indemnização, sendo que a prestação em causa é certa, líquida e exigível, estando o seu montante perfeitamente determinado.
Concluindo-se pela existência de título executivo válido, fica prejudicada a questão da necessidade de resolução do contrato através da pertinente ação declarativa.

A questão seguinte que a apelante coloca prende-se com o montante indemnizatório, que considera desproporcional e excessivo, entendendo que o mesmo deveria ser reduzido de acordo com critérios de equidade, fixando-se em montante equivalente ao preço prestado, eventualmente acrescido de juros (na petição de oposição à execução havia alegado que o valor não deveria exceder, nunca, o valor referente aos frutos civis ou juros que a quantia respeitante ao preço renderia, desde a data do seu pagamento por parte do exequente, até á data da integral e efetiva restituição do mesmo, mas sem que a tal alegação tenha correspondido um pedido final).
Vejamos.
A apelante alega que o tribunal deveria ter reduzido a cláusula penal estipulada, uma vez que o seu valor excede, no dobro, o preço pago pelo recorrido, preço esse que já era módico.
Quanto aos factos, deve dizer-se que a embargante não faz prova de que o preço fosse “módico”, ou que fosse substancialmente inferior ao valor das penhoras, nem da “circunstância de se obrigar a embargante a vender um prédio por esse valor”.
A embargante também nada diz quanto aos danos que o exequente terá sofrido em virtude da falta de expurgação das penhoras, designadamente, considerando o tempo decorrido e o facto de estar desapossado do montante entregue a título de pagamento do imóvel. Não faz qualquer prova de que tais danos/prejuízos sejam de montante muito inferior à indemnização clausulada.
Ora, como salienta a Conselheira Maria da Graça Trigo no acórdão de 18/01/2018, por si relatado (processo n.º 473/14.4T8LRA.C1.S1), in www.dgsi.pt, “A falta de alegação e prova por parte dos réus de factos dos quais decorra que os danos da autora ascendem a montante inferior impede que se opere a redução do montante da cláusula penal (art. 342.º, n.º 2, do CC)”.
Esta questão da necessidade de alegação e prova dos factos que conduzam à decisão de redução da cláusula penal, tem sido estudada pela doutrina e jurisprudência que, de forma generalizada, têm concluído que a redução equitativa da cláusula penal, prevista no artigo 812.º do Código Civil, não é oficiosa, dependendo do pedido do interessado, a quem caberá alegar e provar os factos de onde seja possível extrair a excessividade da estipulação, fora dos limites comportáveis pela liberdade contratual.
Para além do já citado acórdão, veja-se, também o Acórdão do STJ de 12/07/2011, processo n.º 1552/03.9TBVLG.P1 (Nuno Cameira), in www.dgsi.pt: “Recai sobre o devedor, que pretenda seja decretada a redução equitativa da cláusula penal, o ónus de alegar e provar os factos atinentes à manifesta desproporção entre a cláusula penal convencionada e os danos sofridos pelo credor. O uso da faculdade prevista no art. 812.º do CC depende de pedido nesse sentido, ainda que não expressa e formalmente apresentado. Se a autora/reconvinda, não só não alegou, na petição inicial ou na réplica, nenhum facto concreto visando demonstrar a manifesta desproporção entre a cláusula penal convencionada e os danos sofridos pelos réus/reconvintes, como também nenhum pedido apresentou ao tribunal, sequer implicitamente, no sentido de decretar a redução equitativa da cláusula penal, e apenas nas alegações da apelação levantou pela primeira vez o problema, esta pretensão não pode obter vencimento”.
No mesmo sentido, e colhido na mesma base de dados, o Acórdão do STJ de 12/09/2013, processo n.º 1942/07.8TBBNV.L1.S1 (Azevedo Ramos): “A função da cláusula penal é a fixação, por acordo das partes, da indemnização exigível ao devedor que não cumpre a sua prestação – art. 810.º do CC –, dispensando o autor de demonstrar quer a efectiva verificação de danos e prejuízos, quer os respectivos montantes. O ónus de alegar e provar os factos que eventualmente integrem desproporcionalidade entre o valor da cláusula acordada e o valor dos danos a ressarcir ou um excesso da cláusula em relação as danos efectivamente causados recai sobre o devedor. O uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, previsto no art. 812.º, n.º 1, do CC, não é de conhecimento oficioso, dependendo de pedido do devedor da indemnização”.
A doutrina tem também enveredado por esta solução, como se pode ver em Código Civil Anotado, Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, pág. 81, Cláusulas limitativas do Prof. Pinto Monteiro, pág. 150 e Cumprimento e sanção pecuniária compulsória do Prof. Calvão da Silva, pág. 275, nota (502) (estes dois últimos citados no Acórdão do STJ de 10/10/2006, processo n.º 06A2118 (Sousa Leite), que vai no mesmo sentido).
Também nesta Relação de Guimarães, já assim se decidiu, em acórdão de 04/10/2017, processo n.º 992/13.0TTBRG-A.G1 (Antero Veiga), in www.dgsi.pt: “Coloca-se desde logo a questão de saber se a redução pode ser oficiosa ou deve ser solicitada. No sentido de que o uso da faculdade de redução equitativa da cláusula penal, não é oficiosa, Pinto Monteiro, Cláusula Penal e Indemnização, pp. 735 a 737; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª ed., p. 81; Calvão da Silva, Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, p. 275; acórdãos do STJ de 17/2/98, CJ do STJ, ano VI, tomo I, p. 72; de 20/11/2003, processo nº 03A1738, de 17/5/2012, processo nº 3855/05.9TVLSB.L1.S1, de 24/4/2012, processo nº 605/06.6TBVRL.P1.S1; RL de 4/12/2014, processo nº 79649/13.2YIPRT.L1-8; RP de 13/2/2015, processo nº 288/12.4TTGRD-A.C1, entre outros, sendo opinião dominante, que não vemos razão para não seguir. Veja-se que o negócio usurário é apenas anulável – artigo 282º do CC -, o que demanda um pedido do interessado. A oficiosidade implicaria violação do princípio da proibição do julgamento «ultra petitum» - STJ de 24/4/2012, acima referido”. No mesmo sentido, Acórdão de 08-06-2017, processo n.º 577/13.0TJVNF-A.G1 (Alexandra Rolim Mendes).
É também a jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto, onde, a título de exemplo, poderíamos citar os Acórdãos de 17/10/2011 (processo n.º 64/10.9TBSJP.P1 – Ana Paula Amorim), de 27/05/2014 (processo n.º 110/10.6TVPRT.P1 – Fernando Samões) e de 03/03/2016 (processo n.º 11709/15.4T8PRT.P1 – Aristides Almeida).
Como já referimos, no caso de que nos ocupamos, apesar da alegação da excessiva onerosidade e desproporcionalidade da cláusula penal, na petição inicial da oposição à execução, não vem, depois, expressamente, peticionada a redução da cláusula no pedido (como também não vem no pedido que encerra as conclusões do recurso). Nem sequer vêm alegados factos que permitissem ao tribunal a intervenção moderadora a que faz apelo o artigo 812.º do Código Civil, tendo em vista controlar o montante da cláusula penal, quando este fosse susceptível de ferir de forma clamorosa o sentimento de justiça e equidade.
Veja-se que a cláusula penal não se limita à função de fixação prévia e convencional do montante da indemnização, tendo também uma função de estímulo e de reforço do cumprimento do contrato, como meio eficaz de pressão ao cumprimento da obrigação (função ressarcidora e função coercitiva).
Não há, portanto, factos que o tribunal possa ponderar no sentido da redução equitativa do montante da cláusula penal.
Não esqueçamos que a intervenção do tribunal, a este título, deve sempre ser cuidadosa, não devendo neutralizar os objectivos que presidiram à fixação da cláusula penal.
“O controlo judicial da cláusula penal deve limitar-se aos casos de manifesto abuso, não para limitar de forma injustificada a liberdade contratual e os legítimos interesses do credor. Apenas deve ocorrer quando a cláusula penal for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente – artigo 812º do CC.
Não basta que a cláusula seja excessiva, que ultrapasse o montante dos danos, até porque também lhe anda associada uma função compulsória, deve tratar-se de montante excessivamente desproporcional em relação ao dano e aos objetivos tidos em vista com a cláusula. Pode mesmo não ocorrer dano, esse simples facto não justifica a redução” – Acórdão da Relação de Guimarães citado.
Não há, portanto, motivo para alterar o decidido, sendo de confirmar a sentença recorrida.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.

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Guimarães, 17 de setembro de 2020

Ana Cristina Duarte
Fernando Fernandes Freitas
Alexandra Rolim Mendes