TESTAMENTO
SIMULAÇÃO
LEGADO
INOFICIOSIDADE
REDUÇÃO
MEIO PROCESSUAL
Sumário

I - Sendo o testamento um negócio unilateral não receptício, a única situação em que ele pode enfermar do vício da simulação juridicamente relevante é, em princípio, a prevista no artigo 2200.º do Código Civil.
II - Não há simulação se o declarante quis de facto celebrar o negócio jurídico que celebrou ainda que com a intenção de, por essa via, prejudicar um terceiro.
III - A inoficiosidade do legado não importa a invalidade da disposição testamentária mas somente a possibilidade de a requerimento dos herdeiros legitimários a liberalidade ser reduzida na medida do estritamente necessário para eliminar o excesso.
IV - Essa redução tem de ser efectuada, não havendo acordo dos interessados, em sede de processo de inventário.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:3310.18.7T8AVR.P1

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Sumário
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:

B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em Espinho, instaurou acção judicial contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, D…, contribuinte fiscal n.º ………, E… e F…, ambos menores e representados por seus pais, a referida D… e marido G…, contribuinte fiscal n.º ………, todos residentes em Espinho, e H…, Unipessoal, Lda., pessoa colectiva com número de identificação e de contribuinte fiscal ………, com sede em Espinho, formulando contra estes, para além de vários outros pedidos, o seguinte:
- ser declarado nulo o testamento junto a esta petição por impossibilidade legal do objecto, por fraude à lei ou por simulação, e ordenado o cancelamento de quaisquer registos lavrados na Conservatória do Registo Predial com base no mesmo.
Alegou para o efeito que a sua falecida mãe, com o consentimento do marido aqui 1º réu, fez um testamento no qual efectuou uma série de legados a favor dos netos, aqui 3ºs réus, da filha aqui 2ª ré e a favor do filho aqui autor, testamento teve como propósito e consequência prejudicar o aqui autor, procurando afastá-lo do direito à herança dos bens pertencentes a ambos os progenitores, para além de que a testadora, nas disposições que fez, excedeu os limites que a lei consigna quanto ao que poderia dispor por sua morte. O testamento enferma de nulidade por impossibilidade legal do objecto e por fraude à lei, uma vez que a testadora, pelas disposições que fez e o seu marido, pelo consentimento que prestou, visaram defraudar normas imperativas em termos de direito sucessório, quais sejam, as que atribuem ao herdeiro legitimário o direito a quinhoar no património por via sucessória. O conteúdo do testamento resultou de um acordo entre a testadora e seu marido, tendo sido elaborado com a finalidade de prejudicar o autor, nesse negócio jurídico, procurando que a ré D… ficasse altamente beneficiada pelo testamento, comparativamente ao Autor, relativamente ao que realmente poderia ser objecto de disposição testamentária e procurando que o cônjuge sobrevivo ficasse na sua titularidade com bens de escasso valor relativamente ao que seria na realidade a sua meação, para que, pelo respectivo decesso, o aqui Autor fosse novamente prejudicado relativamente àquilo a que realmente teria direito se essa meação tivesse sido preenchida da forma correcta.
Os réus contestaram a acção, alegando, na parte que aqui interessa, que a intenção da falecida mãe do autor com a outorga do testamento foi beneficiar a filha, nos mesmos termos que, em vida, já tinha beneficiado o seu filho, o que fez no exercício do direito legal de dispor livremente de 1/3 da sua herança e de instituir legados. O testamento não possui disposições contrárias à lei porque a existirem legados que excedam a quota disponível da testadora proceder-se-á, em sede de partilha, à redução necessária até preenchimento da legítima dos respectivos herdeiros, estando salvaguardado o direito do autor a quinhoar, na qualidade de herdeiro legitimário, em ambos os patrimónios de seus pais.
Findos os articulados, em sede de audiência prévia, foi proferida a decisão que na parte que aqui interessa, integra a seguinte passagem:
«Este primeiro pedido é do seguinte teor: “ser declarado nulo o testamento junto a esta petição como doc. 5, ora por impossibilidade legal do objecto, ora por fraude à lei, ora por simulação”.
Daqui se retira que os fundamentos da declaração de nulidade do testamento são: 1.º - a impossibilidade legal do objecto; 2.º - a fraude à lei; 3.º - a simulação.
O primeiro fundamento (se bem entendemos o arrazoado da petição) assenta no seguinte: os legados abrangem a meação do marido, dados os muitos bens que envolvem. A testadora não podia dispor desses bens. Nisso consistiria a impossibilidade do objecto.
O art. 280.º do Código Civil1 sanciona com a nulidade os negócios jurídicos (e o testamento é um negócio jurídico unilateral) cujo objecto, isto é, cujo conteúdo, seja física ou legalmente impossível. As deixas feitas por I… no testamento de fls. 68/74 são possíveis: trata-se de bens móveis e imóveis do casal formado por ela e pelo marido C…, de que ambos podiam dispor em vida; ou de que um podia dispor, por morte, com o consentimento do outro – alínea b) do n.º 3 do art. 1685.º. Não existe, pois, que se veja, impossibilidade física ou legal dos legados feitos.
E também não parece que os legados sejam contrários à lei. Só seriam, como se retira do art. 294.º, se ofendessem normas de carácter imperativo (..). E não se vê, nem o A. diz quais possam ser. O art. 1685.º não é com certeza norma imperativa, no sentido de inderrogável. Desde logo, porque dá a cada um dos cônjuges: a) a faculdade de dispor para depois da morte dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, desde que não atinjam a legítima dos herdeiros – n.º 1 – b); b) estabelece a conversão dos legados de coisa certa e determinada do património comum em legados de valor – n.º 2; c) possibilita a exigência em espécie nos casos do n.º 3. Um desses casos é o de a disposição ter sido autorizada pelo outro cônjuge no testamento – alínea b) do n.º 3.
Não parece, pois, que a disposição de bens que atinja a meação do outro cônjuge determine a nulidade do testamento. Na autorização dada no testamento, o cônjuge da testadora deu consentimento a esta para fazer aqueles legados e para fazer todos aqueles legados, independentemente de atingirem ou não a sua meação. Até porque os art.s 2251.º e 2252.º não sancionam com a nulidade a deixa que só em parte pertence ao testador.
Não nos parece, pois, que o testamento seja nulo por aplicação dos art.s 280.º e 294.º Isto é, por impossibilidade legal do objecto ou por fraude à lei.
Mesmo que os legados tenham sido feitos para atingir a legítima do A., não parece que daí possa retirar-se a nulidade ou a anulabilidade do testamento.
Por regra, os legados feitos a favor de um dos herdeiros legitimários, se por conta da quota disponível, destinam-se a beneficiar o herdeiro contemplado no testamento. Beneficiando um, prejudicam, obviamente, o outro ou outros não contemplados por igual.
A lei não proíbe os testadores de beneficiarem um dos herdeiros legitimários em relação ao(s) outro(s). Tanto assim que a sanção para tais situações é a redução das liberalidades inoficiosas e “a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida” – art. 2169.º.
Do art. 2169.º retira-se que a redução das liberalidades por inoficiosidade só opera a requerimento dos lesados. O que só pode significar que as liberalidades por morte que atinjam a legítima não determinam a invalidade do testamento.
Também por aqui se vê que não tem bom fundamento a invocação da contrariedade ou fraude à lei para fundamentar a nulidade do testamento.
Ou seja, não vemos que exista lei que imponha imperativamente a nulidade das deixas feitas por um dos cônjuges, mantenham-se elas dentro ou ultrapassem a sua meação nos bens comuns do casal, ou que determinem nulidade se a legítima for atingida por essas liberalidades. Pelo contrário, a regra é a da sua validade. Por um lado, porque o consentimento legitima a ultrapassagem da meação. Por outro lado, a redução, por inoficiosidade, tem de ser requerida pelos herdeiros legitimários prejudicados ou pelos seus sucessores, o que é incompatível com a nulidade.
Neste campo das invalidades do testamento cumpre distinguir entre a nulidade do testamento (que o A. pede) e a nulidade das disposições testamentárias – art. 2380.º. No que respeita às primeiras, temos os casos do art. 2180.º, do art. 2181.º e do art. 2190.º e, para o testamento comum, a inobservância da forma imposta nos art.s 2204.º, 2205.º e 2206.º (como se sabe, o testamento nuncupativo e o testamento hológrafo são nulos).
O A. não recorreu a nenhum destes fundamentos de declaração de nulidade, de certeza porque entendeu não existirem. Recorreu, sim, às cláusulas gerais de nulidade dos art.s 280.º e 294.º que já demonstrámos, ao que nos parece, que não ocorrem.
Por conseguinte, a acção improcede quanto ao primeiro pedido com estes fundamentos.
O A. pede a declaração de nulidade do testamento ainda com fundamento na simulação (absoluta, parece(..).
Ressalvado o respeito sempre devido, a invocação da simulação, como vício geral da vontade, só se compreende por o A. não atentar devidamente na natureza do testamento.
Começamos por apontar que as disposições do testamento, cuja validade o A. pretende infirmar com esta acção, têm unicamente carácter patrimonial.
Embora a noção de testamento dada no n.º 1 do art. 2179.º o caracterize como “ato unilateral e revogável”, certo é que o testamento se reveste de outras características: é um negócio jurídico unilateral receptício, gratuito, pessoal, individual ou singular (art. 2181.º), mortis causa, formal, estranho ao comércio jurídico (.).
Sendo um negócio jurídico unilateral, não pode comportar, em princípio (..), a simulação, por esta, na sua própria noção, por sua essência, ser bilateral. Efectivamente, nos termos do n.º 1 do art. 240.º, para haver simulação tem de haver acordo – pactum simulationis – entre declarante e declaratário. Ou seja, sendo o testamento, como se disse, um negócio jurídico unilateral, não receptício, não pode congregar os requisitos exigidos pelo n.º 1 do art.º 240.º para que exista, em geral, simulação, designadamente: 1.º - um acordo ou conluio entre o declarante e o declaratário (este não existe, existindo apenas um beneficiário); 2.º - resultar desse acordo (que não existe) a intenção de enganar (ao menos), ou prejudicar terceiros (..).
O art. 2200.º estabelece: “é anulável a disposição feita aparentemente a favor de pessoa designada no testamento, mas que, na realidade, e por acordo com essa pessoa, vise beneficiar outra”.
É duvidoso que esta norma seja restrita à interposição física de pessoas, fraudulenta ou inocente (.). Certo é que, para que o testamento possa considerado anulável, por simulação, é indispensável a existência de um acordo entre o testador e a pessoa contemplada no testamento para beneficiar outra. O que não acontece claramente no caso presente, uma vez que há acordo das partes no sentido de que a principal beneficiária do testamento era a contemplada D… (ora 2ª Ré), filha da testadora, embora em prejuízo de outro filho – o A. desta acção.
No testamento em causa nesta acção, interveio o cônjuge da testadora, mas apenas para dar o consentimento a esta – alínea b) do n.º 2 do art. 1685.º - para os legados em espécie que fez. Nada mais.
Ou seja, para concluir este ponto: a) não existe simulação absoluta – art. 240.º, n.º 1 - que o testamento não consentiria por ser um negócio jurídico unilateral, pessoal, gratuito e não receptício; b) também não existe a simulação relativa do art. 2200.º, por a destinatária e beneficiária do testamento ser a legatária D… (para além de outros, entre eles o próprio A.).
Consequentemente, por todos os fundamentos antes expostos, improcede o primeiro pedido principal e, por via disso, por arrasto, os dois pedidos seguintes.»
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- O presente recurso restringe-se à reapreciação das questões da nulidade, por simulação, do testamento em causa nos autos e, subsidiariamente, da fraude à lei perpetrada por meio desse instrumento.
2- Quanto à primeira questão, a sentença recorrida rejeita de imediato a possibilidade de o testamento consubstanciar um acto simulado por tal negócio jurídico «na sua essência, ser bilateral», o que o testamento não é – pese embora tenha afirmado assim ser «em princípio».
3- Ora, como refere o Ac. STJ de 2015.12.03, Proc. nº 2936/073, parcialmente citado na p.i. e nesta alegação, «é, aliás, concebível a existência de simulação nos negócios jurídicos unilaterais receptícios – sendo certo que não se exige que todos os intervenientes no negócio façam parte desse acordo» (no mesmo sentido, Ac. RL de 1976.01.28, Proc. nº 16748).
4- Não corresponde, pois, à realidade, a afirmação da sentença recorrida de que o testamento «não consentiria» a simulação «por ser um negócio jurídico unilateral (…)», pois que o consente, de todo – cfr., também, o Ac. da Relação de Guimarães de 2017.04.27 (Proc. nº 1742/15): «Pode existir simulação nos simples actos jurídicos (vide artigo 295º) e em negócios unilaterais (vide, quanto aos testamentos, o artigo 2200º)»
5- O Acórdão de 2018.11.08, da mesma Relação (Proc. nº 1240/ 14), não obstante ter decidido pela nulidade do testamento com outro fundamento, não deixou de ponderar a possibilidade de determinada declaração testamentária «não corresponder à real vontade do testador» quanto à pessoa que ele teria querido beneficiar nesse instrumento, querendo com isso enganar e prejudicar a herdeira Autora.
6- Em termos de interpretação conceitual, afigura-se que o testamento constitui um negócio jurídico unilateral contendo declarações de vontade que apenas produzem os seus efeitos quando chegam ao poder do(s) destinatário(s) (ou seja, de quem é beneficiado nesse instrumento), isto é, um negócio jurídico receptício.
7- Embora a sentença recorrida ora o classifique como tal, ora não (cf. pág. 9, 21ª linha e pág. 10, 19ª linha), a distinção será académica para efeitos de se poder considerar um testamento nulo por simulação, pois que o poderá ser independentemente da natureza receptícia ou não das declarações nele contidas.
8- E, mais, conforme refere o Acórdão citado no precedente 3ª conclusão, o acordo simulatório pode ter como declaratário outro que não o destinatário da declaração negocial.
9- Encontra-se alegado pelo Autor que o conteúdo do testamento resultou de um acordo entre a testadora e seu marido, aqui 1º Réu, com a finalidade de o enganar e prejudicar, na qualidade de filho de ambos, permitindo que a meação do cônjuge sobrevivo fosse atingida (e abundantemente atingida) pela instituição dos legados que ficaram instituídos a favor, maioritariamente, da única outra filha do casal.
10- Ao procederem dessa forma, a vontade real de ambos os intervenientes foi pois enganar e prejudicar o Autor e paralelamente beneficiar a 2ª Ré relativamente ao que realmente poderia ser objecto de disposição testamentária, nenhum deles tendo na realidade pretendido que fossem objecto do legado bens que integrassem a meação do 1º Réu.
11- A questão que se coloca não se limita ao estatuído no art. 1.685º nº 1 do Cód. Civil, citado na sentença, quando consigna que «cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei a favor dos herdeiros legitimários»; não se trata unicamente da subversão dessa norma, pois a esse incumprimento acresce o referido propósito de ambos os cônjuges (que não apenas da testadora) de prejudicarem o Autor e o conluio, também entre ambos, para o perpetrarem.
12- A sentença recorrida, sem que se tivesse produzido qualquer prova, assume que o que a testadora e o seu marido, aqui 1º Réu, afirmaram no testamento, correspondia à vontade real de ambos; sem prejuízo de – como ao diante se referirá – ainda que tal fosse exacto (o que relevará para efeitos da de fraude à lei no testamento), em primeira mão, o Autor reputa o testamento de simulado e tal trata-se de matéria controversa, que o Autor coloca, pois, em causa; e que, como tal, deveria ter sido submetido a prova.
13- Ocorrendo divergência entre a vontade declarada pela testadora no testamento e pelo seu marido no consentimento que lhe prestou e a respectiva vontade real de ambos, tal, aliado ao propósito de enganar/prejudicar o Autor, acarreta a nulidade do testamento por simulação (Cód. Civil, art. 240º).
14- Nem deverá argumentar-se, como faz a sentença recorrida, que por via do instituto da redução de liberalidades se poderá «compor» a subversão da legítima do Autor praticada no testamento; a este propósito, citando uma passagem do Ac STJ de 2005.03.03 (Proc. nº 05B200), em que fora sustentada a desnecessidade de anular determinada escritura «(…) para pedir a nulidade por simulação bastaria ao recorrido possuir o “status” de herdeiro legitimário e o negócio ter sido celebrado com a intenção de o enganar prejudicar (…)».
15- E o Autor, como herdeiro legitimário da falecida, pode reagir em vida da autora da sucessão, em defesa da sua legítima, relativamente a negócios por ela simuladamente feitos com o intuito de o prejudicar, como foi o caso (Cód. Civil, art. 242º nº 2).
16- Sem conceder, quanto à segunda questão, mesmo assumindo que o que a testadora e o seu marido afirmaram no testamento, correspondia à vontade real de ambos, tal instrumento sempre será inválido com fundamento em fraude à lei.
17- Na verdade, não assistia à testadora e seu marido o direito de beneficiarem a 2ª Ré em detrimento do Autor nas excessivas medidas que se deixaram expostas na petição (v.g., nos art.s 22º, 26º e 36º), atingindo a legítima deste último, que se vê ofendida e reduzida a uma percentagem de 20% relativamente ao que licitamente lhe caberia a esse título.
18- Pois que, na sua qualidade de herdeiro legitimário, ele Autor tinha e tem o direito a quinhoar no património do de cujus na medida mínima que a lei contempla (Cód. Civil, art.s 2.156º e 2.159º nº 1).
19- Ora, por via do teor do testamento, a testadora, pelas disposições que fez, e o seu marido ao consenti-las, visaram defraudar as referidas normas de direito sucessório, que são imperativas – o que traduz que o testamento é igualmente nulo por esta via, ou seja, por fraude à lei (Cod. Civil, art. 280º).
20- Tal nulidade decorrente de fraude à lei nem depende da demonstração desse propósito e intenção por parte da testadora e de seu marido, pois, como ensina Castro Mendes (Teoria Geral do Direito Civil, II, 160 e 168) na fraude à lei as partes querem os efeitos jurídicos declarados, porque com esses efeitos pretendem conseguir um resultado ilícito, enquanto que na simulação não querem realmente os efeitos jurídicos da declaração.
21- Baptista Lopes (in Compra e Venda, p. 31) refere impressivamente que «Para haver fraude à lei, não é necessário que as partes tenham a intenção nem mesmo a consciência de defraudá-la; nem da parte de ambos os contraentes nem de qualquer deles apenas, pois o negócio pode ser nulo objectivamente, tal como o directamente contrário».
22- Ou seja, no negócio em fraude à lei o que releva, o que é decisivo para se poder afirmar a respectiva ilicitude e consequente nulidade é, mais do que a intenção dos contraentes, o resultado obtido; ocorre a idoneidade do negócio realizado para alcançar um resultado análogo ao resultado proibido. Foi o caso do testamento em apreço.
23- Na sentença recorrida encontram-se interpretados e aplicados por forma inexacta os normativos citados nas precedentes conclusões, salvo o devido respeito, pelo que impõe a respectiva revogação.
Os recorridos não apresentaram resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
1) Se um testamento pode enfermar de simulação e na afirmativa em que casos;
2) Se estão alegados os requisitos do instituto da simulação;
3) Se o testamento é nulo por fraude à lei por os legados nele instituídos poderem afectar a legítima de um herdeiro legitimário.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram elencados como assentes os seguintes factos:
A) B… (o A.) nasceu a 26/08/1966 e foi registado como filho de C… e de I… – fls. 29.
B) D… (2.ª Ré) nasceu a 25/04/1970 e foi registada como filha de C… e de I… – fls. 30.
C) I… faleceu, a 19/05/2017, no estado de casada com C… – fls. 31.
D) A 17/08/2017, C… fez lavrar, na Conservatória do Registo Civil de Espinho, o Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros constante de fls. 32/33, no qual declarou que I… faleceu, a 19/05/2017, no estado de casada com ele, declarante, no regime de comunhão geral de bens, e deixou, como herdeiros, ele, declarante, e os filhos do casal B…, divorciado, e D…, casada, no regime de comunhão de adquiridos, com G…, e deixou testamento público no qual fez diversos legados.
E) No dia 26/11/2016, no Cartório Notarial da Dr.ª J…, no Porto, I… fez o seu testamento, no qual legou:
a) aos netos E… e F…, por força da sua quota disponível, todos os brinquedos que existiam em qualquer um dos imóveis que façam parte da sua herança (de que juntou registo fotográfico);
b) ao neto F…, por força da sua quota disponível, a mobília de escritório existente na morada dela testadora (da qual junta registo fotográfico);
c) a sua filha D… os seguintes bens: 1.º - prédio urbano sito na Rua …, n.º …, … da União das Freguesias … – Concelho de Espinho, inscrito na matriz sob o artigo urbano n.º 1000; 2.º - prédio urbano sito na …, n.º …, …, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1002; 3.º - prédio urbano sito na Rua n.º .., n.ºs … e …, composto de andar, r/c e TRAZ, inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 468 da freguesia e concelho de Espinho; 4.º - todos os bens móveis que compõem o recheio do prédio antes identificado em 3.º; 5.º - as participações sociais que ela, testadora, possua ou venha a possuir, em sociedades comerciais das quais faça também parte esta sua filha D…;
d) caso o valor destes legados exceda o valor da quota disponível dela, testadora, o excesso será imputado na quota legitimária desta sua filha D… e, no caso de não a exceder, institui herdeira do remanescente da sua quota disponível a mesma sua filha D…;
e) para efeitos de igualação, na medida do possível, da quota legitimária de seu filho B…, lega a este, por conta da legítima, os imóveis constantes de folhas 72/73, ou seja, as fracções A, B e C do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua .., n.º … – Espinho, o prédio sito na Rua …, n.º .., correspondente a terreno para construção inscrito na matriz urbana sob o artigo n.º 6213 da freguesia … – Ovar, e os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos n.ºs 1052, 399 e 396, todos da freguesia … – Mangualde.
f) O marido da testadora, C…, declarou, no testamento, prestar-lhe (à testadora) consentimento para as disposições testamentárias do presente testamento que têm por objecto bens comuns do casal e declara ter perfeito conhecimento do documento complementar – fls. 67/74.
F) Por escrituras públicas de 21/12/2010 (de fls. 47/50) C… e mulher I… doaram, ao filho B…, à neta E… e ao neto F…, os bens constantes das escrituras, respectivamente, de fls. 35/37, 38/41 e 42/45 (que não adianta reproduzir).
G) Por escritura pública de 07/07/2017, C… constituiu uma sociedade unipessoal por quotas com o seguinte pacto social, ao que interessa:
Artigo 1.º - a sociedade adopta a firma “H…, Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua .., n.ºs …-…, freguesia e concelho de Espinho;
Artigo 2.º - a sociedade tem por objecto a venda a retalho de produtos farmacêuticos e outros bens e serviços de venda em farmácia, nomeadamente, produtos de dermocosmética, perfumaria, produtos e serviços ópticos, produtos de ortopedia, produtos veterinários, bem como a venda de medicamentos não sujeitos a receita médica obrigatória em locais especialmente registados para o efeito;
Artigo 3.º - o capital social é de € 101.120,78, representado por uma quota de igual valor nominal pertencente ao único sócio C… que a realiza com a transferência para a sociedade do estabelecimento comercial de farmácia denominada “K…” instalada no r/c do prédio urbano da Rua .., n.º …-..., freguesia e concelho de Espinho, inscrito na matriz sob o artigo n.º 468, estabelecimento este onde se incluem os respectivos móveis, equipamentos, mercadorias, utensílios, alvarás e licenças, nomeadamente, o Alvará n.º … emitido, a 30/06/1999, pelo INFARMED – Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento, a favor do sócio;
Artigo 5.º - a gerência fica a cargo do sócio C…, desde já nomeado gerente, ou a cargo de outras pessoas estranhas à sociedade que venham a ser por ele designadas;
Artigo 6.º - a transferência do estabelecimento não inclui a transmissão do direito ao arrendamento.
H) Com o NIPC ………, está matriculada a sociedade “C…, Unipessoal, Lda., com sede na Rua .., n.º …/…, Espinho, que tem por objecto venda a retalho de produtos farmacêuticos e outros bens e serviços (como consta de fls. 140, que se dá por reproduzido), o capital de € 101.120,75 e, como gerente, L… – fls. 140.
I) Pelo dep. 20/20170814 foi registada a transmissão da quota de € 101.120,75 de C…, viúvo, para L…, divorciada – fls. 141.
J) O ora R. C… apresentou, por óbito de sua mulher I…, nos Serviços de Finanças de Espinho, a relação de bens constante de fls. 59/61, que se dá por reproduzida.
K) No dia 26/11/2016, no mesmo Cartório Notarial do Porto, C… fez testamento idêntico ao acima referido em E) da esposa I…, com legado dos mesmos bens aos mesmos beneficiários e com consentimento idêntico ao daquele testamento, prestado, agora, pela esposa – fls. 128/135.
L) O ora A. subscreveu a Declaração de fls. 136, na qual declara: a) nada ter a opor à vontade do pai de deixar o seu património pessoal a sua filha aceitando a mesma e suas consequências; b) renuncia “a qualquer tipo de indemnização ou compensação, agora ou no futuro, seja a que título for, resultante deste meu ato”.
M) No Cartório Notarial da Dr.a M…, em Espinho, foi requerido inventário por óbito de I…, a que coube o n.º …./18 – acordo das partes.
N) À relação de bens referida em J) acresce a verba de fls. 137.

IV. O mérito do recurso:
A douta sentença recorrida julgou improcedentes os pedidos formulados pelo autor de declaração da nulidade do testamento com fundamento em impossibilidade legal do objecto, fraude à lei ou simulação.
O autor insurge-se contra esta decisão sustentando que o vício da simulação por ocorrer relativamente a um testamento, devendo a acção prosseguir para verificação dos pressupostos desse instituto.
A primeira questão que se coloca é pois a de saber se o vício jurídico da simulação pode ocorrer em relação a um testamento, atenta a caracterização deste negócio jurídico.
Tal como se encontra definido no artigo 2179.º do Código Civil, o testamento é o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles. Trata-se portanto de um negócio jurídico unilateral, isto é, de um negócio jurídico em que há apenas um lado, uma parte, e a declaração de vontade que lhe corresponde. É ainda um negócio mortis causa na medida em que se destina a produzir efeitos jurídicos apenas depois da morte do testador.
Por isso, escreve C. A. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, 1985, pág. 387, nota 1, «os negócios unilaterais: a) ou só afectam uma pessoa directamente (v.g., abandono de um móvel); b) ou afectam outra pessoa mas atribuindo-lhe uma faculdade ou uma posição favorável (v.g., procuração, testamento, repúdio da herança); c) ou, se afectam outrem desfavoravelmente, pressupõem um poder especial conferido por um contrato ou pela lei (v.g., declarações de resolução, revogação, escolha da prestação numa obrigação alternativa)».
Afirma Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, I, 2.ª edição, 1984, pág. 49, que o testamento é um negócio unilateral não receptício, «isto é, para surtir os seus efeitos próprios, a declaração negocial testamentária não tem de ser dirigida e levada ao conhecimento dos herdeiros e legatários, valendo logo que é emitida na forma legal». A aceitação ou repúdio da sucessão testamentária é um direito do herdeiro ou do legatário independente da instituição testamentária, não sendo requisito nem da perfeição nem da eficácia do testamento. Além de não receptício, o testamento é um negócio formal, pessoal (artigo 2182.º do Código Civil) e livremente revogável (artigo 2311.º do Código Civil).
Por sua vez a simulação é uma das formas jurídicas de divergência intencional entre a declaração e a vontade que consiste numa divergência bilateral entre a vontade e a declaração, pactuada entre as partes com a intenção de enganar terceiros. Na simulação as partes acordam entre si emitir uma declaração negocial com um conteúdo que não corresponde nem expressa a sua real vontade com o intuito de enganar terceiros (cf. Pedro Pais de Vasconcelos, in Teoria Geral do Direito Civil, 5ª edição, pág. 682).
Nos termos do artigo 240.º, n.º 1, do Código Civil, «se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado”.
Desta definição resulta que os elementos constitutivos do negócio simulado são, cumulativamente, três: a) o acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio (o chamado acordo simulatório); b) a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, isto é, entre a aparência criada (negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realmente celebrado); c) o intuito de enganar terceiros.
A divergência entre a vontade declarada e a vontade real consiste em as partes terem proferido no negócio uma determinada declaração de vontade e ser outra diferente – simulação relativa – ou não ser nenhuma – simulação absoluta – a sua vontade efectivamente assumida, havendo assim uma divergência entre a aparência negocial criada e a realidade das declarações de vontade.
A intenção de enganar terceiros (animus decipiendi) não se confunde com a intenção de prejudicar terceiros (animus nocendi). Quando não houver intenção de prejudicar, a simulação designa-se por inocente; quando houver intuito de enganar e prejudicar, é designada por simulação fraudulenta. Essencial à existência de simulação é tão só que haja a intenção de criar nos terceiros a convicção errónea proveniente do negócio jurídico de que ele emerge de um determinado acordo de vontades, ainda que esse erro possa não lhes causar qualquer prejuízo.
O pacto simulatório é um acordo, um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, a exteriorização de um negócio inexistente ou falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real.
A doutrina entende que o requisito do pactum simulationis não obsta à existência de simulação em negócios unilaterais ou meros actos jurídicos (v.g. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, I, anotação ao artigo 240.º; H. Horster, in A parte geral do Código Civil Português, 1992, pág. 536).
Porém, Manuel de Andrade, in Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1983, pág. 170, parece defender que a verdadeira simulação apenas pode ter lugar nos negócios unilaterais receptícios (mas o autor apenas diz …pelo menos estes). Daí que Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, VI, 1998, pág. 325, citando precisamente aquele autor, afirmem que «como negócio unilateral não receptício que é, a disposição testamentária não comportaria, em princípio, o conceito de simulação».
Se bem vimos, face ao disposto no artigo 2200º do Código Civil a possibilidade de o vício da simulação ocorrer em relação a um testamento não pode ser posta em causa. Segundo este preceito, cuja epígrafe é precisamente «simulação», é anulável a disposição feita aparentemente a favor de pessoa designada no testamento, mas que, na realidade, e por acordo com essa pessoa vise beneficiar outra. O que está aqui previsto é precisamente uma das modalidades de simulação relativa: a simulação subjectiva ou quanto aos sujeitos por interposição fictícia de pessoas, que ocorre quando o testamento indica uma pessoa como beneficiária mas o testador pretende realmente beneficiar outra pessoa e por conluio entre as três pessoas o verdadeiro beneficiário irá receber os bens da pessoa indicada no testamento.
A questão não é, por isso, a de saber se um testamento pode ser simulado (rectius, se podem existir disposições testamentárias simuladas), mas sim a de saber se ao testamento se aplicam as normas gerais do artigo 240.º do Código Civil quanto aos requisitos e efeitos da simulação, isto é, por outras palavras, se nos testamentos esse vício apenas releva no caso e nas condições do artigo 2200.º do Código Civil ou se aplicam sem mais as disposições dos artigos 240.º a 243.º do mesmo diploma, podendo o testamento enfermar desse vício fora da situação prevista no artigo 2200.º do Código Civil.
A questão coloca-se porque o título do Código Civil referente à sucessão testamentária possui um capítulo próprio relativo à «falta e vícios da vontade», nos artigos 2199.º e seguintes. Por isso não é possível sustentar sem mais a aplicação das disposições gerais dos artigos 240.º e seguintes do Código Civil respeitantes à «falta e vícios da vontade» da declaração negocial em geral, sem nos interrogarmos sobre o modo como elas se relacionam com o disposto nos artigos 2199.º e seguintes, atenta a natureza daquelas de normas gerais e destas de normas especiais.
Não pode ser irrelevante, por exemplo, que enquanto o artigo 2200.º do Código Civil estabeleça para um caso de simulação relativo quanto aos sujeitos a consequência da anulabilidade (independentemente de outros requisitos), o artigo 241.º do mesmo diploma consagra para a simulação relativa em geral a consequência da validade do negócio, embora valendo nos termos do negócio real (o dissimulado).
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, VI, 1998, nas anotações aos artigos 2199.º e seguintes acentuam que este regime é especial, pelo que a aplicação aos testamentos das normas do artigo 240.º e seguintes deve ser feita considerando que é nos artigos 2199.º e seguintes que estão fixados os requisitos de relevância dos vícios da vontade no domínio dos testamentos, os quais repelem os requisitos exigidos nos artigos 240.º e seguintes quando deles se afastam.
Na anotação ao artigo 2200.º, loc. cit., pág. 325, estes autores escrevem: «Como negócio unilateral não receptício que é, a disposição testamentária não comportaria, em princípio, o conceito da simulação (…). A figura que, na área das disposições de última vontade, mais se aproximaria assim da simulação seria a da reserva mental conhecida do destinatário (ou beneficiário) da disposição. E, tendo em conta a fisionomia verdadeira da generalidade dos casos em que o testador recorre ao conluio com certa pessoa para, através dela, beneficiar uma outra, dir-se-ia que, na prática, dentro da área dos testamentos, a ocorrência que mais se aproxima da simulação (propriamente dita) é a da interposição de pessoas destinada a iludir (com o normal conhecimento da pessoa interposta) qualquer dos chamados casos de indisponibilidade relativa. (…) Foi, todavia, com uma intenção mais precisa e esclarecida que Galvão Telles propôs no seu Anteprojecto (art. 209.º), sob a epígrafe da simulação, a implantação do preceito novo destinado a aplicar a sanção da nulidade às «disposições feitas aparentemente a favor de uma pessoa declarada no testamento, mas que, na realidade, e por acordo com essa pessoa, visam beneficiar outra». Não ignorando o proponente que o testamento, em geral, e a disposição testamentária, em especial, constituem negócios jurídicos unilaterais não receptícios, e que a simulação é considerada pela generalidade dos autores como um defeito da vontade declarada, próprio dos negócios bilaterais e dos negócios unilaterais receptícios (nesse sentido se orientando também a própria noção legal da simulação, dada no art. 240.º), o Autor do Anteprojecto entendeu (um pouco na sequência do ensinamento de Paulo Cunha, Sucessão Testamentária, pág. 119; Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 101) que a lei devia afastar de modo especial a validade da disposição testamentária em cuja elaboração se alegasse e provasse que houve um verdadeiro conluio, no sentido de a pessoa chamada na disposição a receber o benefício o transmitir a terceiro. Tratava-se de um vício autónomo, não necessariamente ligado aos casos de indisponibilidade relativa e em que a lei pretende castigar directamente o conluio arquitectado pelo testador com o beneficiário aparente da disposição testamentária (…)».
Nestes termos parece-nos defensável entender que atenta a natureza de negócio unilateral não receptício, apenas no caso previsto no artigo 2200.º do Código Civil podemos depararmo-nos com um vício relevante de simulação no testamento.
Como quer que seja parece-nos claro que a alegação do recorrente não contém os factos jurídicos concretos necessários ao preenchimento dos requisitos da simulação em geral, razão pela qual, ainda que se entenda que o testamento pode enfermar desse vício não apenas na situação prevista no artigo 2200.º do Código Civil, se justificava apreciar de imediato este pedido e julgá-lo improcedente.
Como vimos, são elementos constitutivos da simulação, para além do intuito de enganar terceiros, o acordo entre as partes com o fim de criar uma falsa aparência de negócio (o chamado acordo simulatório) e a divergência entre a vontade real e a vontade declarada, isto é, entre a aparência criada (negócio exteriorizado) e a realidade negocial (negócio realmente celebrado).
Na alegação do autor, o conteúdo do testamento resultou de um acordo entre a testadora e seu marido, tendo sido elaborado com a finalidade de prejudicar o autor nesse negócio jurídico (artigo 39.º da petição inicial), foi esse propósito em que se traduziu a vontade real de ambos os intervenientes: prejudicar o autor e beneficiar a ré sua irmã (artigos 40.º a 42.ª), a respectiva vontade real não correspondeu à declarada, na medida em que nenhum deles pretendia que fossem objecto do legado bens que integrassem a meação do ora 1º réu já que o seu intuito foi o de prejudicar o autor (artigos 43.º e 44.º), havendo por isso divergência entre a vontade declarada, pela testadora no testamento e pelo seu marido no consentimento que lhe prestou e a respectiva vontade real de ambos (45.º).
A simulação pressupõe a existência de uma divergência entre a aparência e a realidade: celebrou-se um negócio jurídico mas queria celebrar-se outro diferente ou nenhum, emitiu-se uma declaração de vontade correspondente a um efeito jurídico mas a vontade real era não emitir qualquer declaração negocial ou emitir outra declaração geradora de efeitos jurídicos diversos. A divergência pressupõe uma de duas coisas: que o declarante nada quis apesar do que declarou ou que quis algo mas a sua vontade é diferente do que declarou.
Ora a afirmação do autor de que a vontade da testadora não correspondeu à declarada na medida em que ela não pretendeu instituir legado bens que integrassem a meação do seu cônjuge mas apenas prejudicar o autor, é incongruente e não se ajusta a essa noção de divergência. Ela confunde a afirmação da divergência de vontades com a afirmação da intenção subjacente à vontade.
Devidamente lidas as suas palavras, o autor não sustenta que a testadora não quis fazer qualquer testamento ou que quis fazer outro negócio jurídico que não um testamento, apesar de ter sido este que foi formalizado, conforme seria necessário para o preenchimento da divergência intencional de vontades. Ao invés, o autor acaba por sustentar que a testadora quis verdadeiramente fazer o testamento e nos termos em que o fez precisamente porque a sua intenção foi prejudicar o autor e beneficiar a sua outra filha na sucessão dos respectivos bens. Foi a vontade declarada e, na versão do autor, querida, que gerou para o autor o prejuízo de que este se queixa. A testadora quis prejudicá-lo. Com quê? Precisamente com o testamento e a forma como nele instituiu os legados. Por outras palavras, segundo o próprio autor não há divergência entre a vontade declarada e a vontade real, esta foi precisamente no sentido da celebração do testamento e nos termos em que o mesmo se encontra elaborado, embora com a intenção de assim, desse modo, por essa via, prejudicar o autor.
Da mesma forma, a alegação do autor não consubstancia a alegação do acordo simulatório, leia-se, do acordo com o fim de criar uma falsa aparência de negócio.
Na verdade, o que o autor alega foi que as partes quiseram verdadeiramente fazer os legados tal como eles constam do testamento (e por isso, na alegação do autor, são-lhe prejudiciais), o que tiveram foi a necessidade de fazer intervir o marido da testadora para consentir nos legados uma vez que o seu objecto eram bens comuns. Mas essa intervenção não é nem simulada, nem aparente, nem indesejada. Ao invés, foi efectiva e desejada para assegurar as condições para a efectividade dos legados. Aliás, resulta já dos autos que no mesmo dia e local o marido da testadora celebrou também o seu testamento através do qual institui legados dos mesmos bens comuns a favor dos mesmos herdeiros, sendo para o efeito autorizado pela mulher cujo testamento o autor questiona.
Daqui resulta que mesmo que se admita ser possível a ocorrência do vício da simulação em relação a um testamento for dos casos previstos no artigo 2200.º do Código Civil – o que não concedemos – no caso concreto se nos afigura manifesto que a alegação do autor não consubstancia aquele vício por não conter, pelo menos, alguns dos respectivos requisitos. Por essa razão bem andou a Mma. Juíza a quo ao julgar de imediato improcedente o pedido de anulação do testamento por simulação.
Sustenta o recorrente, em alternativa, que o testamento deve ser anulado por fraude à lei.
Para o efeito, argumenta que a testadora, pelas disposições que fez, e o seu marido, ao consenti-las, quiseram defraudar normas imperativas de direito sucessório sobre a medida da legítima do herdeiro legitimário, pois que ao fazer legados de bens cujo valor ultrapassa a respectiva meação atingiu a legítima deste último que se vê reduzida a uma percentagem de 20% relativamente ao que licitamente lhe caberia a esse título.
O Código Civil contém uma disposição específica no âmbito da sucessão testamentária para os casos em que o testamento contém disposições de última vontade decididas para alcançar um fim contrário à lei. O artigo 2186.º estabelece que é nula a disposição testamentária, quando da interpretação do testamento resulte que foi essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.
Esta norma que é o correspondente ao disposto no artigo 281.º para os negócios inter vivos, reporta-se às disposições testamentárias cuja intenção seja alcançar um fim vedado pela lei. O que releva não é portanto o conteúdo da disposição, é a finalidade que através da mesma se visa alcançar. Destaca-se, no entanto, que enquanto para os negócios inter vivos a solução é a nulidade do negócio (artigo 281.º) para o testamento a solução é a validade do testamento, com invalidade apenas da disposição ferida do vício associado ao respectivo fim.
No título do Código Civil que trata da sucessão testamentária não existe uma norma equivalente ao artigo 280.º e que preveja a nulidade do testamento por o seu objecto ser contrário à lei. Essa circunstância levanta a dificuldade de saber se havendo no testamento alguma disposição contrária à lei, a consequência jurídica do vício deve ser a nulidade do testamento na totalidade ou somente a nulidade da disposição testamentária na qual se possa afirmar a presença desse vício.
Havendo normas no referido título que prevêem a nulidade do testamento no seu todo (v.g., artigos 2180.º, 2181.º, 2190.º) e normas que apenas estatuem a nulidade de disposições do testamento (v.g., artigos 2184.º, 2185.º, 2192.º, 2194.º, 2196.º), afigura-se-nos até por comparação entre o disposto no artigo 281.º e no artigo 2186.º que sendo o vício – a contrariedade à lei – atribuído não ao testamento no seu todo ou a todas as suas disposições de última vontade, mas somente a disposições que instituíram legados, a existir vício ele apenas pode conduzir à nulidade das disposições testamentárias afectadas e não ao testamento propriamente dito. Por esse motivo também não podia ser julgado procedente o pedido de declaração de nulidade do testamento por fraude à lei.
A segunda razão pela qual essa improcedência se impõe é a de que consistindo o vício num excesso dos legados, o regime legal da sucessão vigente entre nós possui um mecanismo para eliminar esse excesso precisamente no âmbito da própria partilha. É a chamada redução das liberalidades prevista nos artigos 2168.º e seguintes do Código Civil, em cujo âmbito se integram não somente as liberalidades entre vivos (v.g., doação) como também as disposições por morte, isto é, os legados (artigo 2171.º do Código Civil).
A própria lei admitindo a possibilidade de os legados excederem a quota disponível do testador, criou um mecanismo específico para evitar essa consequência, sem necessidade de estabelecer a invalidade da disposição de liberalidade. A previsão deste mecanismo tem duas implicações.
Desde logo, a de a consequência do excesso não ser a invalidade da disposição testamentária através da qual se fez a liberalidade excessiva, mas somente a possibilidade de a requerimento dos herdeiros legitimários a liberalidade ser reduzida na medida do estritamente necessário para eliminar o excesso.
A segunda é a de que esse excesso apenas é apurável no momento da abertura da herança pois é só nesse momento que é possível apurar que bens integram a herança e qual o seu valor e quem são os herdeiros legitimários, sem o que não é possível apurar se alguma liberalidade ofende ou não a legítima dos herdeiros legitimários. Apesar da outorga do testamento e de nele ter legado determinados bens, a testadora não está, por exemplo, impedida dispor deles ainda em vida, de modo a que por sua morte, no momento da abertura da herança, esses bens não lhe pertençam mais, o que contenderá com o cálculo da legítima.
Isso é assim porque a legítima é constituída pelos bens de que o de cujus não dispôs, por aqueles de que ele dispôs em testamento e ainda pelas doações feitas em vida. Logo, os legados são levados em conta para efeitos de cálculo da legítima; pode é suceder que o valor dos bens legados exceda a quota disponível do testador, caso em que haverá lugar à respectiva redução se e na medida do que for necessário para respeitar a legítima dos herdeiros legitimários.
O artigo 2171.º do Código Civil estabelece uma ordem específica para a redução das liberalidades. A redução far-se-á por acordo dos interessados na partilha; na falta de acordo, será necessário instaurar um processo de inventário para nele se realizarem todas as operações da partilha. Para a realização desses actos e o alcançar dessa finalidade está consagrada uma forma de processo especial na qual serão realizadas as operações de partilha da herança, entre as quais se contam o apuramento do valor da herança, da quota disponível e das quotas indisponíveis, dos quinhões dos herdeiros e a redução das liberalidades inoficiosas. Por esse motivo a redução não pode ser objecto de um pedido específico de uma acção comum nem constituir fundamento para através desta se obter a invalidade da disposição que a contenha.
No que concerne à intervenção do cônjuge não testador no testamento do seu cônjuge autorizando este a fazer legados não da sua meação nos bens comuns mas de coisa certa e determinada desse património comum, tal intervenção não apenas se encontra prevista na lei, como tem como único consequência a de o beneficiário do legado poder exigir não o respectivo valor em dinheiro mas a entrega da coisa legada em espécie (artigo 1685.º do Código Civil). Essa consequência não interfere com o cálculo da legítima e constitui um legítimo direito do titular do património de dispor deste por morte, obtido que seja o consentimento do outro cônjuge, pelo que não se vislumbra nessa disposição qualquer situação de contrariedade à lei, bem pelo contrário.
Por conseguinte, a decisão de no despacho saneador julgar de imediato improcedentes os pedidos de nulidade do testamento por simulação e/ou por fraude à lei mostra-se inteiramente acerta e deve aqui ser confirmada.
Improcede assim o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a douta sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente.
*
Porto, 2 de Julho de 2020.
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]