JUNÇÃO DE DOCUMENTO DO DECURSO DA AUDIÊNCIA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA
Sumário

I - A junção de documentos no decurso da audiência pressupõe, além do mais, a existência de uma ocorrência posterior fundada.
II - Não integra esse fundamento a necessidade de confrontar uma testemunha com esses documentos, pois os factos carecidos de prova são fixados em momento anterior.
III - Todavia regulamentação do art. 424º, do CPC não impede a aplicação de normas especiais ou princípios gerais.
IV - Por causa disso, os documentos devem ser juntos ao abrigo do principio do inquisitório se o interesse destes para a decisão da causa for superior às desvantagens provocadas na sua tramitação, e afectação do direito de defesa da parte contrária.
V - A utilização desse poder dever não afecta a independência do tribunal, pois, este desconhece e é alheio aos efeitos concretos da decisão; exerce um poder dever e visa carrear para os autos todos os elementos para uma decisão conforme com a realidade.

Texto Integral

Proc. nº 285/14.5TVPRT.P1

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Sumário:
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Nos presentes autos de acção declarativa de condenação intentados por B…, S.A., id a fls. 2 contra C…, S.A, veio esta interpor recurso da sentença final e do despacho que indeferiu a junção aos autos de prova documental.
Nesta matéria alega que:
“A A. requereu nos termos dos art.ºs 423.º e 424.º, que fossem juntos ao presente processo os seguintes documentos: - 4 documentos, correspondentes a faturas da matéria-prima mencionada nos artigos 80.º e 82.º da p.i. e para prova dos mesmos artigos, sendo que para além dos valores de tais faturas, a A. liquidou 293,59€ de despacho de tais matérias-primas para a D….
- Do mesmo modo, para prova dos artigos 64.º a 67.º da p.i. requer-se a junção aos presentes autos de 1 documento com o resumo mensal de vendas do E… pensos nos anos de 2010 a 2013, sendo que no ano de 2014 o produto já se encontrava em rutura de stock. Para além de tal mapa resumo, juntam-se 12 faturas do ano de 2010; 14 faturas do ano de 2011; 17 faturas do ano de 2012 e 9 faturas do ano de 2013.
Ademais, a A. teve o cuidado de justificar que a junção extemporânea da presente documentação, era absolutamente essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa fundamento que o fazia para prova dos referidos artigos da p.i. e que tais documentos se tornaram necessários para confirmação e esclarecimento do que já foi testemunhado pelas testemunhas inquiridas, dissipando qualquer dúvida que tenha ficado de tal produção de prova”.
Termina, nesta parte, formulando as seguintes conclusões:
VI. CONCLUSÕES
1.º O presente recurso tem por objeto o despacho elaborado na sentença em que foram apreciados os requerimentos com as referências n.ºs 22532293 e demais teor da sentença, quer quanto à matéria de direito, quer quanto à matéria de facto dada como provada, que absolveu a Ré do pedido.
(…)
14.º A Recorrente não se conforma igualmente com o despacho que aprecia o requerimento com a referência n.º 22532293, em que requereu nos termos dos art.ºs 423.º e 424.º, que fossem juntos ao presente processo os seguintes documentos:
-4 documentos, correspondentes a faturas da matéria-prima mencionada nos artigos 80.º e 82.º da p.i. e para prova dos mesmos artigos, sendo que para além dos valores de tais faturas, a A. liquidou 293,59€ de despacho de tais matérias-primas para a D…. - Do mesmo modo, para prova dos artigos 64.º a 67.º da p.i. requer-se a junção aos presentes autos de 1 documento com o resumo mensal de vendas do E… pensos nos anos de 2010 a 2013, sendo que no ano de 2014 o produto já se encontrava em rutura de stock. Para além de tal mapa resumo, juntam-se 12 faturas do ano de 2010; 14 faturas do ano de 2011; 17 faturas do ano de 2012 e 9 faturas do ano de 2013.
15.º A Recorrente teve o cuidado de justificar no seu requerimento que a junção extemporânea da presente documentação, era absolutamente essencial para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, fundamentando que o fazia para prova dos referidos artigos da p.i. e que tais documentos se tornaram necessários para confirmação e esclarecimento do que já foi testemunhado pelas testemunhas inquiridas, dissipando qualquer dúvida que tenha ficado de tal produção de prova. Acresce que tais documentos tornaram-se necessários porque a Ré impugnou os factos constantes dos artigos 80.º e 82.ºque eram do seu conhecimento pessoal, pois tal compra— como foi explicado pelas testemunhas inquiridas — foi efetuada a pedido da Ré, pelo que os mesmos deveriam ser exibidos às testemunhas arroladas pela mesma e que ainda seriam inquiridas, eventualmente, para contradita de depoimentos que viessem a prestar.
16.º Tal documentação seria também essencial para demonstrar a litigância de má-fé da Ré que nega factos de que tem conhecimento pessoal.
17.º Finalmente, a apresentação de tais documentos tornar-se-ia necessária para que os mesmos fossem confrontados à testemunha F… que ainda seria inquirida e que poderia confirmar que a D… recebeu a matéria-prima e mercadoria faturada a tal empresa e que destinava a ser entregue na Recorrida.
18.º A A. /Apelante considera justificada a apresentação tardia dos documentos, deduzindo razões e motivos com a pertinência necessária.
19.º Os documentos juntos pela A. não são impertinentes ou desnecessários, pelo contrário, demonstram a litigância de má fé da Ré, justificam a contradita de testemunhos e são imprescindíveis para o apuramento da verdade e justa composição do litígio, pelo que verificados os requisitos de admissão tardia dos mesmos, salvo melhor opinião, a Recorrente entende que teria de ser aceite a sua junção aos autos para demonstrar os factos cuja prova visam.
(….)[1].
Foram apresentadas contra-alegações, sobre esta matéria, nos seguintes termos:
1 - Pretendia a Autora, por requerimento com a Ref.ª 22532293, datado de 17.05.2019, e após a data limite dos 20 dias anteriores à data de julgamento, a junção aos autos de faturas de compra de matéria-prima e resumo mensal de vendas de 2010 a 2013, 12 faturas de venda do ano 2010, 14 faturas do ano de 2011, 17 faturas do ano 2012 e 9 faturas do ano 2013, pretendendo, com os mesmos, fazer prova dos factos mencionados nos artigos 64º a 67º e 80º a 82º da p.i.
2 - Após o limite temporal previsto no n.º 2 do artigo 423º do CPC, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
3 - A Autora não alega, no seu requerimento de junção de documentos, nem agora, em sede de alegações de recurso, qualquer facto impeditivo da sua apresentação junto com os articulados ou em até 20 dias antes do início da audiência de julgamento.
4 - Os documentos apresentados pela Autora sempre estiveram na sua disponibilidade, porquanto são documentos próprios da sua contabilidade e destinam-se a provar factos alegados na Petição Inicial, pelo que nenhuma ocorrência posterior pode ser (nem foi) alegada para justificar a sua junção.
5 - Pelo que nenhum reparo pode merecer o douto despacho que não admite a junção aos autos dos documentos requeridos pela Autora.
6 - Ainda que a sua junção fosse admissível, no que não se concede, não teriam os mesmos o efeito probatório pretendido pela Autora.
7 - Nenhum dos 4 documentos correspondentes à compra de matéria-prima pela Autora provam que tal matéria-prima foi entregue à Ré, conforme resulta dos factos provados em 36º b) da douta sentença e do depoimento da testemunha F…, gravado no Ficheiro: 20190614094103_2578602_2871438, da sessão de 14 de Junho de 2019, que expressamente confirma que os produtos foram entregues nas instalações da D… e ainda lá se encontram a aguardar instruções da Autora.
8 - Pelo que se confirma que a Autora não cumpriu a obrigação de entrega das matérias-primas à Ré.
9 - Com a junção dos documentos relativos a resumos mensal de vendas a Autora pretendia provar que as mesmas decaíram em 2013, comparativamente aos anos de 2010 a 2012[2].
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1. Questão prévia junção de documentos
A apelada, para além das contra-alegações, veio pronunciar-se sobre a junção de documentos no processo nos seguintes termos:
C…, S.A., Ré nos presentes autos, notificada do requerimento da Autora, com a ref.ª 32465363, vem, pela presente, expor e requerer o seguinte: 1 - A Ré desconhece se a Autora adquiriu, ou não, as matérias primas necessárias ao fabrico do medicamento, conforme expressamente se comprometeu.
2 - O que a Ré sabe, que as testemunhas inquiridas confirmam e que os documentos juntos não contrariam, é que tais matérias-primas nunca foram entregues à Ré, para que pudesse destiná-los à produção.
Sem prescindir,
3 - Dispõe o artigo 423º do CPC que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
4 - Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final.
5 - Após esse limite temporal, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
6 - Ora, os documentos ora apresentados pela Autora sempre estiveram na sua disponibilidade, porquanto são documentos próprios da sua contabilidade.
7 - Destinam-se a provar factos alegados desde a Petição Inicial, pelo que nenhuma ocorrência posterior pode ser alegada para justificar a sua junção.
8 - Pese embora se entenda que tais documentos nada provem, para além da incontornável constatação da desistência de comercialização do produto pela Autora após a alteração das condições contratuais de fabrico acordadas, não deve ser admitida a junção dos mesmos, devendo ordenar-se o seu desentranhamento e devolução à Autora, nos termos do artigo 443ºdo CPC.
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O despacho de 23.10.2019 não admitiu esse pedido de junção de documentos nos seguintes termos: “A questão que agora se coloca é saber se ao caso tem aplicação o nº 3 deste normativo legal ao estatuir que «[a]pós o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior», ou seja, terá o apresentante de demonstrar a impossibilidade da apresentação até então ou que a apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. Ora, salvo o devido respeito, não vislumbramos que tenham sido deduzidas razões ou motivos com a pertinência necessária que demostrem a impossibilidade da apresentação dos documentos até então. Por outra banda, não vislumbramos qual tenha sido a “ocorrência posterior”, suficientemente consistente e atendível, que tornou necessária a apresentação dos mesmos documentos.
Independentemente do teor das declarações das testemunhas, se a Autora entendia que determinados documentos eram pertinentes para a prova dos factos alegados, então, já deveria antecipadamente ter requerido a sua junção aos autos. Esta, a apresentação, nem sequer se tornou só possível ou necessária com as aludidas declarações da testemunha. Pelo exposto, não se admite a junção aos autos dos documentos requeridos. Custas a cargo da Autora, fixando-se a taxa de justiça em 1UC”.
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III. Com interesse para a questão estão fixados os seguintes factos
1. A audiência de julgamento iniciou-se em 6.5.2019 e foi interrompida para posterior produção de alegações designando-se a continuação para o dia 14.6.2019.
2. Em 17.5.2019 o apelante apresentou o requerimento de junção de documentos.
3. Esses documentos são 57 faturas datadas do ano 2013 e seguintes.
4. Num desses documentos consta o envio 91664 de papel siliconado e noutro um resumo da facturação de E… pensos entre 2010 e 2014.
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IV. Decidindo
De acordo com o art. 423.º, n.º 1, do C. P. Civil os documentos devem ser apresentados na fase inicial dos articulados quando sejam alegados os factos respectivos.
Excepcionalmente, podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, “mas a parte será condenada em multa, excepto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” – cfr. 423.º, n.º 2, do CPC.
E ainda mais excepcionalmente, podem os documentos ser juntos em duas circunstâncias:
1) se a apresentação não tenha foi possível até àquele momento,
2) ou se a apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
O elemento sistemático demonstra que o legislador optou por antecipar o momento preclusivo para a junção de documentos temperando essa exigência de economia, e auto-responsabilidade das partes, com uma cláusula geral de adequação que permite a introdução de novos meios de prova, quer no decurso do julgamento quer até num momento posterior ao da própria decisão em primeira instância.
Visa-se com estas normas, eliminar incidentes morosos na tramitação processual que a experiência demonstrava serem usados de forma habitual pelas partes impondo assim um dever de atuação célere às partes e seus mandatários.
Se foi esta, no fundo, a intenção do legislador, antecipar o termo final da junção para 20 dias antes do julgamento, parece seguro que os incidentes e produção de prova ocorridos no julgamento não podem justificar uma junção tardia. Se assim não fosse estar-se-ia a permitir um desvio injustificado à nova regulação permitindo a simulada arguição de incidentes ou necessidades processuais apenas para legitimar a inércia negligente na junção dos documentos.
Por isso é pacífico que a junção nunca poderia ser justificada pela ignorância sobre a existência do documento ou a dificuldade da sua junção (cfr. Rui Pinto, CPC, Anotado, Vol. II, Almedina, 2018, pág. 313).
Assim, será à luz desta conclusão teológica que teremos de interpretar, o sentido da previsão do artigo 423.º, n.º 2, do CPC, ou seja, quando é que se trata de documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior.
Ou dito de outro modo qual é o facto posterior à data limite, não previsível que pela sua relevância implique a necessidade da junção aferida de forma objetiva e à luz de um litigante normalmente diligente.
In casu, a autora admite que os documentos são pessoais, estavam na sua posse desde 2013 ou data da sua emissão e, como é evidente a sua pertinência, se dúvidas houvesse foi estabelecida com a apresentação da contestação e fixação dos temas de prova, ou seja, muito antes de maio de 2019.
Ou seja, parece claro que o motivo invocado (necessidade de demonstração de uma realidade) não era novo, mas já estava fixada em momento anterior e, qualquer parte diligente teria analisado os meios de prova de que dispunha, pelo menos, quando os temas de prova forma fixados.
Veja-se nesta matéria o recente Ac da RC de 22.10.2019, 1nº 958/19.1T8VIS.C1: “A necessidade da junção em virtude do julgamento proferido em 1ª instância (art.651 nº1 CPC) não abrange a hipótese de a parte pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª Instância.
Aliás se assim não for, a justificação apresentada (necessidade de contraditar testemunha) abre a janela para a completa deturpação do regime fixado na lei com a dedução de perguntas e incidentes visando já uma junção “fraudulenta”.
Por causa disso, é que existe uma posição jurisprudencial, pelo menos maioritária segundo a qual a junção de documentos em julgamento não é justificável para confrontação de testemunhas ou até através da “falsa” dedução de incidentes como os de contradita. (cfr. Acs da RL de 6.12.2017 e 8.2.2018, in processos 3410/12 e 207/14, e 25.9.2018, nº 744/11.1TBFUN-D.L1-1 (Rijo Ferreira)[3]; e em sentido concordante Abrantes Geraldes et all, CPC Anotado, pág. 500).
Nos mesmos termos o Ac da RG de 10.7.2019, nº 68/12.7TBCMN-C.G1: decidiu que: “O juiz não se encontra obrigado a determinar a junção de um documento só porque a parte, que não o apresentou oportunamente, invoca a importância daquele para a descoberta da verdade. A não se entender assim, perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar a sua essencialidade”.
Nestes termos e fundamentos o despacho proferido não merece qualquer censura.
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2. Do dever de junção oficioso
Mas, o regime supra descrito não impede a aplicação de normas gerais. Salienta Abrantes Geraldes et all que “não deve confundir-se com regime especifico como o de impugnação de depoimento testemunhal” e “apesar da rigidez o mesmo não pode deixar de ser compatibilizado com outros preceitos ou com outros princípios (…), à luz de um critério de justiça material”[4].
Ou seja, terá de existir no caso concreto um equilíbrio entre a responsabilização da parte pela sua inércia na junção e o interesse, pertinência e atendibilidade dos documentos no caso concreto, por forma a evitar junções de documentos com base em diligencias meramente dilatórias (ex. dedução do incidente previsto no art. 515º, do CPC), mas ao mesmo tempo, permitir a introdução no processo de todos os meios de prova relevantes e pertinentes para o interesse social de boa decisão da causa.
Nesta perspectiva estamos no fundo perante duas visões do processo civil[5], e do papel do juiz no mesmo, sendo que o legislador optou na revisão do CPC por impor ao tribunal um dever oficioso de aquisição de meios de prova.
Note-se aliás que segundo o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem[6] a garantia de processo equitativo (‘fair trial’) coloca o tribunal sob o dever de levar a cabo um exame aprofundado dos pedidos, fundamentos e provas aduzidos pelas partes; e se se reconhece uma larga margem de apreciação aos legisladores e tribunais nacionais para estabelecerem as regras de admissibilidade e apreciação das provas, não se deixa de afirmar que as restrições à apresentação de provas não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas, antes têm de ser consistentes com a exigência de julgamento equitativo e que sempre se deve exigir que o procedimento na sua globalidade, incluindo os aspectos relativos à admissibilidade das provas, seja equitativo.
Nesta medida é simples afirmar que a actividade do tribunal é norteada pelo poder dever do inquisitório e da cooperação.
O actual art.º 411 do CPC (e já antes o número 3 do artigo 265.º), dispõe que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.
Note-se aliás que o preâmbulo do velho Decreto-Lei n.º 329-A/95 de 12 de Dezembro: dispunha “além de se reforçarem os poderes de direcção do processo pelo juiz, conferindo-se-lhe o poder-dever de adoptar uma posição mais interventora no processo e funcionalmente dirigida à plena realização do fim deste, eliminam-se as restrições excepcionais que certos preceitos do Código em vigor estabelecem, no que se refere à limitação do uso de meios probatórios, quer pelas partes quer pelo juiz, a quem, deste modo, incumbe realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente e sem restrições, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”.(nosso sublinhado).
Ou seja, à luz deste princípio geral o requisito para a junção processual dos documentos é diferente e bem distinto. Já não importa saber se o mesmo é justificado por qualquer ocorrência posterior, mas apenas determinar se é relevante para a boa decisão da causa. Por outro lado, já não releva determinar se a parte foi ou não diligente, mas apenas apurar se as consequências negativas dessa junção (dilação da tramitação processual e garantia de defesa da parte contrária) são ou não superiores às vantagens da junção.
O critério é agora avaliar o grau de pertinência e relevância da junção que, logo à partida, delimita as situações de junções com fins limitados. E, depois, graduar e densificar esse interesse apurar as consequências negativas, efectuando por fim um juízo valorativo ponderando as vantagens e desvantagens, mas tendo sempre em vista que o princípio norteador é a admissão dos meios de prova úteis.
Tal só não acontece, como salienta Nuno Lemos Jorge[7] se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse”. (nosso sublinhado).
In casu, e usando apenas a posição da apelada (no seu recurso e resposta ao incidente), vemos que os documentos não apenas são úteis como dizem respeito a uma questão de central importância nesta causa, isto é, saber ou não se foram entregues mercadorias necessárias à fabricação do “medicamento”. Depois, esses documentos são ainda relevantes face à concreta versão da realidade explanada pela testemunha. E, por fim, a sua relevância é tanto mais saliente que a ré optou por contraditar o conteúdo dos documentos pondo em causa, já não a sua relevância, mas sim o seu conteúdo e eventual resultado probatório.
Quanto às desvantagens teremos de notar que os direitos de defesa da ré estão integralmente salvaguardados não apenas pelo prazo concedido, mas fundamentalmente porque esses documentos eram do seu conhecimento também da parte há largos anos. A dilação processual causada é diminuta, pois, o incidente foi deduzido numa pausa do julgamento, sendo que este poderia ter terminado sem maior dilação na data já fixada.
Temos, assim de concluir, que as vantagens e relevância dos documentos são ponderosas e as desvantagens da junção eram, na data, diminutas, pelo que o juízo global implica a violação do dever oficioso do tribunal
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3. Da violação do dever de independência
O grande problema da junção oficiosa de meios de prova, em particular neste processo, é que essa intervenção do tribunal na aquisição da prova pode (ou não) por em causa a sua independência.
Mas, desde logo, termos de notar que essa faculdade não é uma livre opção, mas sim um poder-dever, destinado a tutelar um interesse público de descoberta da verdade, instrumental em relação à realização da justiça. Depois, o resultado dessa diligência é desconhecido e por isso não sabemos se irá prejudicar ou favorecer qualquer uma das partes. Convém lembrar, que a diligência pode parecer útil e revelar-se, afinal, inútil nos seus resultados mantendo-se inalterada a decisão já proferida. Logo sem qualquer afectação concreta da posição das partes.
E, por fim, como salienta Lemos Jorge[8]: “não impressiona, como argumento demonstrativo da imparcialidade potencial inerente aos poderes instrutórios do juiz, a possibilidade de o resultado desta sua actuação acabar por favorecer uma das partes (…) O que resulta dessa prova há-de, normalmente, prejudicar uma parte e beneficiar outra”.
Deste modo e em conclusão o tribunal considera que os documentos podem ser úteis para a boa decisão da causa e a sua junção não causaria dilações processuais ou afectaria o direito de defesa da contraparte, pelo que, julga parcialmente procedente o recurso interposto pela apelante.
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4. Das consequências processuais
A apelante alegou que necessitaria desses documentos para confrontar/descredibilizar uma testemunha cujo depoimento aliás foi relevante para a decisão da matéria de facto[9].
Nos termos do art 195º, nº2, do CPC: “Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes”.
Deste modo as restantes questões suscitadas ficam prejudicadas e os actos praticados após requerimento de junção terão de ser anulados e substituídos por outros que incluam, se possível (comparência desta) a reinquirição da referida testemunha.
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V. Decisão
Pelo exposto o tribunal coletivo julga a questão prévia procedente por provada e por via disso determina a junção aos autos dos documentos conforme requerimento de 17.5.2019, com a repetição na parte afectada dos restantes actos praticados (julgamento e decisão), a serem efectuados pelo mesmo titular. Mais se julgam prejudicadas as restantes questões enunciadas.
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Custas a cargo da apelante com taxa de justiça reduzida ao mínimo legal, porque não obteve vencimento na questão prévia suscitadas.

Porto, 2.7.2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
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[1] Por economia processual dão-se por reproduzidas as restantes conclusões.
[2] Dão-se por reproduzidas, por economia processual, as restantes conclusões da apelada.
[3] Este aborda a impossibilidade de junção exigindo que: “a impossibilidade da prévia apresentação haverá de ser apreciada segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência”.
[4] Cfr. neste sentido António Geraldes et all, Código Processo Civil Anotado, I; pág. 500 e 501.
[5] Cfr. MOREIRA, José Carlos Barbosa, “O neoprivatismo no processo civil”, em Cadernos de Direito Privado, Braga, n.º 10 (Abril-Jun.2005), pág. 3 e segs; MACHADO, António Montalvão, “O dispositivo e os poderes do Tribunal à luz do novo Código de Processo Civil”, 2ª edição, Editora Almedina, Coimbra, 2001, pg.333 a 338; JOSÉ IGREJA MATOS, O JUIZ E O PROCESSO CIVIL (CONTRIBUTO PARA UM DEBATE NECESSÁRIO) revista JULGAR - N.º 2 – 2007; e NUNO DE LEMOS JORGE, OS PODERES INSTRUTÓRIOS DO JUIZ: ALGUNS PROBLEMAS, revista JULGAR - N.º 3 – 2007.
[6] Entre vários os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 18JUN2002 (Wierzbicki c. Polónia, queixa 24541/94) e 15JUN2004 (Tamminen c. Finlândia, queixa 40847/98).
[7] In Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, Revista Julgar, nº 3, pág. 70
[8] Loc cit.
[9] Nesse requerimento consta: “Finalmente, a apresentação de tais documentos torna-se necessária para que os mesmos sejam confrontados à testemunha F… que ainda será inquirida e que poderá confirmar que a D… recebeu a matéria-prima e mercadoria faturada a tal empresa”.