VALOR DO RECURSO
PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
DISPENSA DE LIQUIDAÇÃO DO PATRIMÓNIO
Sumário


1. No processo de insolvência, o valor da causa varia ao longo do processo, sobretudo em função do valor do activo apreendido para a Massa (artº 15º, do CIRE) e que determina a sua correcção.
2. O resultado da liquidação daquele património é dos que melhor exprimem a utilidade económica, logo o valor da causa.
3. Deste valor dependendo a recorribilidade de uma decisão proferida que dispensou a liquidação com fundamento naquele que o Administrador atribuiu ao activo existente (inferior ao da alçada do tribunal recorrido), mas que um credor reconhecido pretende impugnar, refutando o mesmo, o modo como ele foi fixado e sustentando que, para tal, deve ser efectuada peritagem cujo resultado (presumidamente superior ao da alçada) contenderá com os pressupostos da referida dispensa e com o próprio valor da causa, então a corrigir, está-se perante situação análoga à prevista na alínea b), do nº 2, do artº 629º, CPC.
4. Logo, o recurso deve ser admitido, atendendo também ao princípios do duplo grau de jurisdição ou da máxima recorribilidade e da tutela provisória da aparência que são emanação, ou pelo menos afloramento, do princípio do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (artº 20º, CRP) como tem sido considerado no caso dos incidentes de qualificação e de exoneração do passivo restante.
5. Nos termos do artº 171º, nº 1, do CIRE, sendo o devedor pessoa singular e não compreendendo a Massa Insolvente uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação desta, mesmo no todo, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
6. Deste modo, não se avançando para a liquidação efectiva e, portanto, não se expondo os bens à procura e à concorrência dos possíveis interessados em adquiri-los, designadamente no mercado, o valor desta contrapartida pela dispensa e libertação dos mesmos depende de uma estimativa ou prognóstico para cuja fixação depende, fundamentalmente, o “exercício intelectual” do Administrador sobre isso e, portanto, o seu Parecer.
7. No caso, além de cumpridos os requisitos, mormente de ordem formal, o Administrador emitiu o seu Parecer, justificou a sua avaliação e diligenciou por in loco apurar as circunstâncias relativas à sua justeza, valendo-se dos seus conhecimentos e experiência e fazendo-se acompanhar de pessoa entendida na matéria, igualmente referindo o porquê de ter considerado desnecessária e até economicamente desaconselhável a peritagem. Por isso, e tratando-se de liquidação de quota hereditária de 1/6 na raiz ou nua propriedade de património indiviso, é de confirmar a sua dispensa.

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

No processo de insolvência de pessoa singular instaurado, em 09-05-2019, no Tribunal de Vila Real, A. P. foi declarada insolvente por sentença proferida no dia 13 imediato.

Com o relatório a que se refere o artº 155º, do CIRE, o Administrador Judicial nomeado apresentou o inventário, integrado apenas por uma quota hereditária – abaixo melhor referida – da devedora na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de A. J., composta pela raiz ou nua propriedade de quatro imóveis, todos sitos em ..., ..., na qual mencionou “sujeito a avaliação, considerando o usufruto registado e o valor patrimonial dos imóveis que compõem o quinhão”. [1]

Apresentou também a Lista Provisória de Credores reconhecidos, na qual figuram, apenas:

-o Banco …, com o crédito, de natureza comum, no valor global de 9.475,26€ (resultante de um mútuo, de uma livrança e de um “descoberto” em conta);
-M. P., Ldª, com o crédito, também de natureza comum, no valor de 9.634,46€ (com origem numa letra).

Conforme Auto respectivo, o AJ apreendeu para a Massa Insolvente, como verba um, o quinhão hereditário, de 1/6 (um sexto), na herança ilíquida e indivisa aberta por A. J., composta pela raiz ou nua propriedade de quatro imóveis, todos sitos em ..., ..., a saber:

-1º - prédio rústico, de sequeiro, vinha e oliveiras, com 8350m2 de área;
-2º - prédio rústico, de pastagem, com a área de 1714m2;
-3º - prédio urbano, composto de casa de habitação de dois andares e quatro divisões, com 96m2 de área;
-4º - prédio rústico, composto por cultura arvense de sequeiro e oliveiras, com 430m2 de área.

De acordo com as cadernetas matriciais e fichas do registo predial, o valor patrimonial de tais imóveis, era [2]:

-1º - 3.181,23€ (atribuído em 1991);
-2º - 34,22€ (idem);
-3º - 5.311,46€ (atribuído em 1987, neste se incluindo ainda o da parte rústica, posteriormente desanexada) [3];
-4º - 42,50€ (data incerta, anterior a 1995).

À dita quota ideal de 1/6 da raiz ou nua propriedade de tal património atribuiu o AJ, no auto, o valor de 3.000,00€.

No requerimento em que pediu a dispensa de promoção de registo predial, o AJ requereu também, “sem negligenciar o pedido de dispensa de liquidação, nos termos do artº 171º, do CIRE, formulado pela insolvente”, o prosseguimento das diligências de venda do referido quinhão hereditário, fixando-se o valor base em 3.000,00€.

Com efeito, em 07-10-2019, a insolvente solicitou ao AJ a dispensa de liquidação da verba em causa por se tratar de “bens de família” integrantes de “unidade e exploração familiar” e por o prédio urbano ser, há muitos anos, a morada de família e uma sua irmã, comprometendo-se a depositar o valor total constante da avaliação.

Por isso, no dia 08-10-2019, o AJ, “atendendo à dificuldade de venda” de tal bem enquanto quota indivisa (um sexto, da raiz ou nua propriedade) e à sua “experiência em situações análogas”, considerou justificada a pretendida dispensa por ser a que “melhor responderá perante o interesse dos credores”, e requereu o seu deferimento.

No dia 16-10-2019, foi proferido o seguinte despacho – que é o recorrido:

“Em face do exposto pelo administrador da insolvência a fls. 61, quanto à dispensa de liquidação da verba apreendida – quinhão hereditário – sob a proposta de entrega pela devedora do valor correspondente (€3000) e a inexistência de outros bens, para além de uma quantia penhorada num processo executivo, dispensa-se a liquidação da verba n.º 1, de acordo com o preceituado no art. 171º n.ºs 1 e 2 do CIRE.
Notifique a devedora para, no prazo de oito dias, proceder ao depósito da quantia indicada (€ 3000), devendo os autos aguardar a realização de tal depósito, altura em que se apreciará liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. ”

Em 28-10-2019, a insolvente juntou aos autos comprovativo de haver transferido para a Massa a quantia de 3.000,00€.

A credora M. P., Ldª, não se conformou com aquela dispensa de liquidação e, em recurso, apelou a que esta Relação revogue tal despacho, tendo alegado e apresentado as seguintes conclusões:

“A)- Por despacho proferido a 16-10-2019 do Mmº Juiz do Tribunal a quo, foi dispensada a liquidação da verba apreendida, correspondente ao quinhão hereditário da qual a insolvente é proprietária, correspondente a 1/6 da nua propriedade de vários bens imóveis, pela proposta da insolvente de entregar a quantia de €3.000,00;
B)- Considera a Recorrente que tal proposta viola manifestamente os seus legítimos interesses enquanto credora reconhecida da insolvente;
C)- O Sr. Administrador da Insolvência não logrou em avaliar o referido quinhão hereditário, tendo discriminado no Relatório em conformidade com o art.º 155.º do CIRE que o direito da insolvente na herança carecia ainda de avaliação in loco, cuja diligência encontrava-se agendada com a insolvente e o seu ilustre Mandatário para o dia 10 de Julho de 2019;
D)- Contudo, nos autos do processo de insolvência, o Sr. Administrador de Insolvência não juntou qualquer avaliação do quinhão hereditário;
E)- No inventário conforme dispõe o art.º 153.º do CIRE junto pelo Sr. Administrador da Insolvência, relativamente à parcela do valor a atribuir ao quinhão hereditário fez constar: “sujeito a avaliação considerando o usufruto registado e o valor patrimonial dos imóveis que compõem o quinhão”.
F)- Por esta forma o inventário logrou em não cumpriu o seu objetivo de facultar aos credores o conhecimento mais completo quanto possível da situação patrimonial do devedor, pela omissão da concreta avaliação do quinhão hereditário.
G) Assim sendo, deveria o Tribunal a quo ter indeferido o requerido pela insolvente de dispensa de liquidação do activo, por manifesta insuficiência de elementos que comprovassem o valor do quinhão hereditário;
H)- As cadernetas prediais dos imóveis constantes dos Anexos ao Relatório do Sr. Administrador de Insolvência, em nada relevam para a determinação do valor real do direito da insolvente, uma vez que a maior parte foram avaliados há 28 anos, relevando apenas um imóvel que foi avaliado em 2018, ao qual o Serviço de Finanças atribuiu o valor patrimonial de €13.479,20.
I)- Posto isto, deveria o Tribunal a quo ter indeferido a dispensa de liquidação do activo por insuficiência de elementos que determinassem o valor do quinhão hereditário da insolvente.

Dado o exposto e o douto suprimento de V. Exªs. deve ser concedido provimento ao recurso e, consequentemente ser revogado o despacho proferido pelo Mº Juiz a quo que deferiu a dispensa de liquidação do verba apreendida.
ASSIM SE FARÁ JUSTIÇA!”

A insolvente contra-alegou, suscitando como questão prévia a da inadmissibilidade do recurso por o valor da causa ser inferior ao da alçada do Tribunal recorrido e, caso assim se não entenda, pugnando pela improcedência da apelação e confirmação do despacho. [4]

O AJ pronunciou-se nos autos, esclarecendo que em 10-07-2019, tal como anunciara no Relatório acima aludido, deslocou-se aos imóveis em causa para apurar a sua localização, estado e valor real, no que foi “acompanhado por entidade independente com experiência na transacção dos activos em apreço”, bem como a insolvente e seu mandatário, nenhum credor tendo comparecido ou manifestado nisso interesse apesar de terem conhecimento do acto. Ali constatou que, quanto ao prédio misto, a parte rústica foi desanexada e adquirida pelo Município de ... em 04-02-1997, dando origem a outro prédio e que foi na sequência disso que procedeu à elaboração do auto de apreensão, com a valorização por si atribuída, remetido aos interessados no processo. Acrescentou que entendeu e entende razoável e plausível a não contratação de perito dado que a Massa não tem liquidez para tal e o activo em causa não tem valor económico que permita a satisfação das custas do processo.

A isto contrapôs ainda a recorrente que não recebeu o auto de apreensão e que não reconhece ao AJ capacidade para proceder a tal avaliação.

Após vicissitudes geradas no tribunal recorrido por despacho que inicialmente não admitiu o recurso e deu azo a uma reclamação nos termos do artº 643º, CPC, em que, por sua vez, se determinou o suprimento das deficiências nele notadas em sede de apreciação daquela, mormente quanto à fixação do valor da causa e ao critério atendido (este ou o da sucumbência), foi proferido novo despacho, em 30-04-2020, no qual se fixou à causa o valor de 3.133,24,00€ (o do activo) e se consignou haver “falta de elementos que permitam aferir o valor da sucumbência que aliás é o fundamento do recurso interposto”, mas se considerou este “legalmente admissível, em razão do valor que supra se corrigiu” e por isso se admitiu como de apelação, com subida em separado e efeito devolutivo.

Subiu, então, o processo a esta Relação, onde foi distribuído.

Corridos os Vistos legais e submetido o caso à apreciação e julgamento colectivo, cumpre decidir.

II. QUESTÕES A RESOLVER

Pelas conclusões apresentadas pela recorrente, sem prejuízo dos poderes oficiosos do tribunal, se fixa o thema decidendum e se definem os respectivos limites cognitivos.

Assim é por lei e pacificamente entendido na jurisprudência – artºs 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 4, 637º, nº 2, e 639º, nºs 1 e 2, do CPC.

No caso, importa apreciar:

a) Questão prévia: o recurso é admissível?
b) Questão recursiva: o despacho que dispensou a liquidação deve ser revogado por a quota hereditária apreendida ter sido indevidamente avaliada?

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Relevam os descritos no relato antecedente, emergentes das peças com que os autos vêm instruídos.

IV. APRECIAÇÃO

Questão prévia – artº 641º, nº 5, CPC

Nos termos dos artºs 17º e 14º, do CIRE, regula a admissibilidade do recurso o artº 629º, do CPC.

De acordo com o seu nº 1, ele só é admissível quanto a causa tenha valor superior à alçada do tribunal recorrido, ou seja, mais do que os 5.000,00€ previstos no artº 44º, nº 1, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto.

Sendo ele menor e tratando-se de um dos dois requisitos legais cumulativos, afastada fica logo, obviamente, a hipótese de recorribilidade.

No caso, após dúvidas e tergiversações, em 1ª instância e sem que se conheça objecção alguma, acabou por, no despacho acima relatado, ser fixado o valor (corrigido) de 3.133,24€, com base no do activo apreendido (sendo o da quota atribuído pelo AJ de 3.000,00€ mas questionado neste recurso).

Além disso, nos termos da citada disposição, para o recurso ser admissível, é, ainda, necessário que a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada do tribunal recorrido, atendendo-se em caso de dúvida acerca da sucumbência somente ao valor da causa.

Se, como, neste caso, afirma o tribunal recorrido, faltam elementos para aferir o valor da sucumbência, então deve prevalecer o da causa.

E sendo este de, apenas, 3.133,24€, então o recurso não devia ter sido admitido, como defende a recorrida. Tal como não o deveria ter sido mesmo considerando o valor de 188,68€ que, antes e até ali, prevalecia como sendo o fixado na sentença que declarou a insolvência e, entretanto, nunca corrigido. [5]

Não devia, ao que parece, segundo o referido critério geral expresso em letra de lei.

Mas nem sempre o que parece é.

A recorrente, embora sem ser bem clara e assertiva na respectiva fundamentação, sugeria, na reclamação que outrora apresentou, um outro.

Não estando tal reclamação [6], como é evidente, ora e aqui, em causa, mas cabendo-nos, sempre, apreciar as condições de admissibilidade do recurso independentemente de o tribunal recorrido as ter considerado verificadas (citado artº 641º, nº 5), importa ir mais fundo e mais longe, para lá das aparências.

A fixação do valor da causa no processo de insolvência tem, no decurso do processo, um carácter especialmente provisório, mesmo efémero.

Prevendo o artº 15º, do CIRE, a sua determinação em função do valor do activo do devedor – compreensivelmente porque face aos típicos pressupostos e finalidades do processo de insolvência este é a pedra de toque com que melhor se avalia e contrasta a sua utilidade económica para os devidos efeitos, designadamente o da relação da causa com a alçada, nos termos do artº 296º, nºs 1 e 2, CPC –, este vai-se sucessivamente alterando, para mais ou para menos, conforme a evolução dos autos, desde o indicado na petição inicial, passando pelo do inventário (dependente dos bens que forem sendo apreendidos para a Massa ou a esta restituídos) no qual é indicado (estimado) pelo administrador ou em função do parecer de peritos (artº 153º, nºs 1 a 3) e podendo ir até ao da venda (porventura o mais expressivo do do mercado, logo e justamente do real).

Com efeito, será da “actividade efectiva de liquidação”, a mais “capaz de equiparar os bens e direitos a dinheiro” [7] – dinheiro para o almejado pagamento aos credores reclamantes – que melhor resultará a utilidade económica.

Como referem os reputados autores citados [8], “o que interessa para a correcção do valor da causa é o que se possa traduzir e concretizar o valor do activo do insolvente em operações realmente praticadas, porquanto só elas exprimem, verdadeiramente, o seu valor real, que é a variável a considerar na rectificação, de acordo com o próprio texto da lei”.

A ideia de provisoriedade do valor quando a sua expressão varia ao longo do processo está presente também no nº 4, do artº 299º, CPC: “Nos processos de liquidação ou noutros em que analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da acção, o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários.”

A ideia da sua incerteza emerge ainda a propósito do respectivo reflexo na determinação das custas.

Diferentemente do que a tal respeito prevê o nº 3, do artº 296º, CPC, o artº 301º, do CIRE, estabelece, para o efeito, regras específicas: o equivalente ao da alçada da Relação, se a insolvência não chegar a ser declarada ou se o processo for encerrado antes da elaboração do inventário do artº 153º; o do artº 15º (o do activo indicado na petição ou corrigido, se inferior); nos demais casos, o atribuído ao activo no inventário, “atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for caso disso.”

Bem se vê, portanto, como a recorribilidade depende das alterações sucessivas do valor da causa no decurso dos autos, alteração sobretudo condicionada pela descoberta, por vezes paulatina, de novos bens e da sua avaliação.

Ora, uma das situações extremas em que tal recorribilidade se patenteia como mais periclitante é precisamente aquela em que objecto do recurso é a decisão proferida respeitante ao valor da causa ou dos incidentes mas impugnada com o fundamento de que ele excede o do tribunal de que se recorre.

Face a tal incerteza abandona-se o critério do valor da causa – o alvo da discussão e, portanto, coberto pela dúvida – e propicia-se a reapreciação pelos tribunais superiores da decisão sobre ele proferida tutelando-se a aparência em função da provisoriedade e garantindo-se, assim, o exercício do direito fundamental de acesso à justiça efectiva.

No caso ora em apreço, a situação apresenta contornos análogos.

O despacho recorrido decidiu dispensar a liquidação do activo considerando o valor ao mesmo atribuído (3.000,00€) e, portanto, só exigindo o depósito deste valor para a Massa (o qual, aliás, foi feito).

Em função do valor da causa, seja o fixado na sentença seja o resultante do atribuído pelo Administrador [9], o recurso, como se disse, seria de rejeitar.

Porém, o que o recorrente pretende discutir através dele é precisamente o valor de tais bens (presumindo-se que o entende superior mesmo ao da alçada do tribunal recorrido), refutando a capacidade e bondade da avaliação feita pelo próprio Administrador e defendendo que deveria esta ser efectuada por peritos.

A lograr procedência tal recurso e a ter sucesso tal pretendida avaliação, o resultado desta contenderia não só com o valor a depositar para efeitos da dispensa de liquidação mas também com o próprio valor da causa.

Com efeito a ser ele mais alto, mormente superior ao da alçada do tribunal recorrido, devendo, subsequentemente, ser corrigido em função do mesmo pelo tribunal recorrido e ao abrigo do artº 15º, então aquele valor (o da causa) já permitiria o recurso, o que agora não acontece, mas, portanto, depende precisamente da reapreciação do respectivo despacho que decidiu a dispensa e apenas determinou o depósito do valor avaliado alvo da crítica.

Não tendo, é certo, o recurso por alvo, directamente, o valor da causa, acaba por tê-lo indirectamente, na medida em que a ser-lhe reconhecido mérito, revogada a decisão, ordenada a avaliação e caso desta resulte valor superior ao da alçada, de 5.000€, então – mas só então – já a dispensa de liquidação seria impugnável na instância superior.

Algo de semelhante sucede quando se discute o valor da causa, pois se a decisão que sobre ele se pronunciou e o fixou em valor inferior ao da alçada não fosse recorrível em função precisamente deste valor e, portanto, da não verificação do critério geral, então a própria decisão estaria auto-blindada à impugnação de uma maneira que afectaria irremediavelmente o direito ao recurso.

Se, enfim, o recurso se fundamenta na ideia de que o valor dos bens, logo o valor a depositar, é superior e deve ser avaliado, e se tal valor necessariamente implicará a correcção do da causa, então não andará longe do espírito que motiva a norma da alínea b), do nº 2, do artº 629º, CPC, admitir-se o recurso na presente situação apesar de o valor (provisório) ora a considerar ser inferior ao da alçada. [10]

De outra perspectiva, não deve esquecer-se que, para os credores, a utilidade económica máxima que buscam através do processo de insolvência respeita à satisfação integral dos seus créditos possível através da sua liquidação, sendo certo que só em função desta aquela pode ser medida conforme os pagamentos a que o produto e as regras de distribuição respectivas possibilitarem.

Conquanto a dispensa de liquidação pressuponha um activo de reduzido valor e, portanto, as expectativas dos reclamantes se situem já num nível baixo, o certo é que pressupondo aquela o depósito do valor que se estima dela pudesse resultar se efectivamente levada a cabo e dependendo tal prognóstico do próprio valor já dado ao activo integrante da Massa, não repugna que, para a finalidade aqui em causa, se considere o valor dos créditos reclamados, designadamente o do recorrente, que é de 9.634,46€, o qual, em tese geral, por efeito do provimento do recurso e da avaliação por que pugna, há-de admitir-se como susceptível de influir de tal modo na referida dispensa e na determinação do consequente valor a depositar pelo insolvente dela condicionante que, no limite, assim conseguisse obter satisfação do crédito.

Para o credor reclamante recorrente a utilidade económica do seu pedido (na reclamação, o reconhecimento, graduação e pagamento; e, no recurso, a avaliação, no pressuposto de que ela será superior e nessa medida potenciará o valor a depositar em contrapartida e, na respectiva proporção, o do recebimento) estará, pois, mais, tendo em conta a perspectiva concorrente dos demais e a contraposta do próprio devedor insolvente, no valor do seu crédito do que no do activo integrado na Massa.

Tudo isto resulta da especificidade do incidente em causa (dispensa de liquidação) e da circunstância de a sua índole própria não coincidir com a do processo de insolvência para o qual está talhado o critério do artº 15º, do CIRE.

De outro modo, sendo o valor do activo apreendido inferior ao da alçada, nem o devedor ou o Administrador poderiam impugnar a decisão de indeferimento da dispensa nem o credor a do seu deferimento, apesar de sempre poder estar em causa o “valor que resultaria dessa liquidação” e pressupostamente o do activo, assim ficando a questão vedada à discussão em sede de recurso.

Embora reconhecendo-se que os fundamentos assim alinhados não são isentos de dúvida, afigura-se-nos contudo, e até precisamente por isso, que, atendendo ao princípios do duplo grau de jurisdição ou da máxima recorribilidade e da tutela provisória da aparência que são emanação ou, pelo menos, afloramento do princípio do acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efectiva (artº 20º, CRP), tal via é a que melhor quadra com o espírito da Lei Fundamental, apesar de redundar num desvio à regra acolhida na lei ordinária, afinal de contas não inédito, uma vez que já percorrido, no âmbito da insolvência, em matérias relativas aos incidentes de qualificação e de exoneração do passivo restante [11].

De resto, sendo de 9.634,46€ o valor do crédito reclamado e para seu pagamento ficando, na melhor das hipóteses (esquecendo agora as custas e o crédito do outro credor comum), disponível o valor depositado (3.000,00€), é claro que, a tornar-se este definitivo mormente por efeito do trânsito em julgado da decisão impugnada, o valor da sucumbência (medido pela não satisfação daquele) será, segura e inevitavelmente, sempre superior ao de metade da alçada (2.500,00€), não podendo, pois, dizer-se, como disse o tribunal recorrido, que não há elementos para aferição do referido critério.

É por tudo o exposto que se prosseguirá com o conhecimento do objecto deste recurso, admitido em 1ª instância.

*
Questão recursiva: deve o despacho ser revogado?

Nos termos do artº 171º, nº 1, do CIRE, sendo o devedor pessoa singular e não compreendendo a massa insolvente uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação desta, mesmo no todo, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.

Para esta, em tal caso, não se avançando e, portanto, não se expondo os bens à procura e à concorrência dos possíveis interessados, designadamente no mercado, em adquiri-los nos termos do artº 164º, o valor desta contrapartida pela dispensa e “libertação” dos bens [12] depende de uma estimativa ou prognóstico para cuja fixação depende, fundamentalmente, o “exercício intelectual” do AJ sobre isso e, portanto, o seu Parecer.

Assim, “obtém-se de uma assentada, o efeito útil que a liquidação lograria produzir, com igual salvaguarda dos interesses dos credores, evitando todavia, as delongas e as despesas a que ela sempre conduz e assegurando ao devedor a possibilidade de, não obstante a sua situação, poder manter para si ou encaminhar para quem melhor entender a propriedade dos bens, o que, não havendo prejuízo dos credores, se aceita ser um interesse atendível” [13].

Para o efeito, o AJ – recorde-se o papel e a responsabilidade que o CIRE lhe comete, atenta a natureza e latitude das suas funções e respectivo Estatuto – “à vista dos elementos disponíveis, faz uma estimativa do resultado que, razoavelmente, a liquidação efectiva dos bens produziria, de forma a encontrar o valor mínimo que o devedor há-de entregar, para assegurara a dispensa da venda” [14].

Nessa tarefa e “para poder calcular o valor justo, o administrador tem de proceder à apreensão e inventariação dos bens, em conformidade com os artºs 152º e 153º.” [15]

De facto, o nº 1, do artº 152º, comete-lhe o dever (responsabilidade) de indicar o valor dos bens.

Apenas no caso de a respectiva avaliação ser “particularmente difícil” e de, portanto, entender não assumir por si próprio em exclusivo o inerente risco de erro associado, poderá confiá-la a peritos.

Isto sem prejuízo de outras diligências que repute de “apropriadas ao melhor esclarecimento da situação e à devida formação da convicção sobre o quantum previsível da liquidação”, devendo, aliás, “fazê-lo sempre que possível, pois cumpre-lhe actuar diligentemente na defesa dos interesses dos credores” [16].

De resto, sendo o exercício das suas funções orientado predominantemente pelo princípio da pessoalidade (artº 55º, nºs 1 e 2), só excepcionalmente deve socorrer-se da coadjuvação, sob sua responsabilidade, de técnicos ou outros auxiliares e de outros trabalhadores (nºs 3 e 4, da mesma norma).

Sendo imprescindível tal avaliação, cometendo-a a lei, em primeira linha, ao administrador e embora o juiz não esteja vinculado ao seu requerimento, pois “deve recusar o pedido sempre que, em função dos elementos de que disponha no processo, se aperceba de o valor da contrapartida oferecida ser inferior ao que previsivelmente pode obter-se”, todavia “o juiz deverá atender o pedido se nada fundadamente justificar o contrário” [17].

Como, enfim, se refere na obra que se vem citando [18] e se entendeu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 02-11-2017 [19] “este regime encontra justificação na intersecção de três vectores: economia processual, celeridade e tutela mínima do devedor, com igual salvaguarda dos interesses dos credores”.

Ora, ´já acima se referenciaram os créditos aqui reclamados e os bens apreendidos – recorde-se que se trata de mera quota hereditária de 1/6 (artº 159º, do CIRE) mas apenas da raiz ou nua propriedade, visto que onerados com usufruto –, bem como o valor (como justo e adequado) atribuído pelo AJ e os fundamentos por este para tal efeito aduzidos e, ainda, as razões por que entendeu dar sequência e subscrever o pedido da insolvente no sentido da dispensa mediante depósito (aliás, feito) de tal quantia.

Acolhendo-os, o despacho recorrido, salientando, ainda, a inexistência de outros bens (além de pequena quantia penhorada num processo executivo), autorizou a dispensa de liquidação.

O recorrente, porém, contesta a decisão, alegando, fundamentalmente, que a dispensa deveria ter sido indeferida por “manifesta insuficiência de elementos”, por as cadernetas prediais “em nada relevarem”, uma vez que o administrador “não logrou em avaliar o referido quinhão hereditário” e “não juntou qualquer avaliação” do mesmo, tratando-se de “omissão concreta” que obstou aos credores o conhecimento da situação patrimonial do devedor.

Sucede que a apelante carece de razão atendível.

Além de cumpridos os requisitos, mormente de ordem formal, o AJ emitiu o seu Parecer, justificou a sua avaliação e diligenciou por in loco apurar as circunstâncias relativas à sua justeza, valendo-se dos seus conhecimentos e experiência e fazendo-se acompanhar de “entidade independente” (supõe-se que pessoa entendida, como terá querido dizer) na matéria, igualmente referindo o porquê de ter considerado desnecessária e até economicamente desaconselhável a peritagem.

Trata-se, afinal, da quota hereditária, apenas de 1/6, do património composto, somente pela raiz ou nua propriedade, de três prédios rústicos e um prédio urbano, numa freguesia ribeirinha do concelho de ....

O valor atribuído à quota (1/6) é superior ao dobro do que resultaria considerando o valor patrimonial (8.569,41€) constante do Registo e Matriz (mesmo não descontando o do terreno desanexado e que já não integra o património hereditário).

Relativamente a terrenos rústicos, na área, tal como no interior do país, é do conhecimento comum que pouco ou nada valem porque quase ninguém os procura e lhe dá destino útil, produtivo e rentável.

Mesmo tratando-se da região do Douro, é da experiência comum que só as vinhas com “benefício” efectivamente têm valor porque propiciadoras, sem embargo das vicissitudes da agricultura em geral e das que assolam a região em particular e dos riscos inerentes a tal actividade. As outras, pouco interesse têm para além do da “subsistência”.

Só um dos prédios rústicos é composto por vinha, não se sabe em que extensão, nem se “beneficiada”.

Embora a recorrente alegue que a casa foi avaliada em 2018 em 13.479,20€, a verdade é que dos autos nada consta sobre isso e, de qualquer modo, tal valor somado ao dos demais (16.737,15€) é ainda inferior ao sêxtuplo da quota da devedora aqui apreendida.

Nada mostra que, em liquidação, atenta a natureza, localização e características conhecidas dos prédios e, sobretudo, o facto de se tratar de mera quota indivisa e apenas da raiz, portanto dependente da subsistência do usufruto e do convívio com os demais cinco herdeiros do grupo, haja interessados na disputa da sua compra e a oferecer valor superior.

Tal não se aventurou sequer a recorrente a sugerir, para si ou para outrem.

Aliás, acabou por deixar referido nas alegações que “com isto não se está a dizer que o valor do quinhão hereditário da insolvente seja superior aos 3.000,00€ que esta propôs” embora, algo contraditoriamente acrescente que não lhe “parece figurável que a nua propriedade de todo este património possa valer apenas 18.000,00€”, mas sem adiantar qualquer número plausível e sem dizer porquê.

O seu parecer descrente deveria ser densificado com dados concretos capazes de tornar perspectivável um valor superior e de por em causa a estimativa ou prognóstico formulados pelo AJ e suas razões. Nada disso fez.

Como resulta do regime exposto e do entendimento doutrinal e jurisprudencial em torno dele tecido, a necessidade de avaliação – de peritagem, entenda-se – não é “imperativa”, na sua expressão cremos que mais retórica ou enfática do que jurídica.

De resto avaliação in loco fê-la o AJ. E nada se contrapôs nem contrapõe à mesma, de concreto, capaz de sustentar uma superior, se efectuada por peritos terceiros.

Assim como nada mostra que tal avaliação seja “particularmente difícil”, que a tarefa ultrapasse as potencialidades do consenso obtido na negociação pressuposta entre a devedora e o AJ e as capacidades, diligência e sentido de responsabilidade deste.

Em suma, não se vê qualquer razão nem utilidade para, seja pela peritagem seja por qualquer outra via, porfiar na busca de outro valor, quiçá mais elevado, da quota apreendida e de modo a sustentar outro prognóstico de um eventual resultado da liquidação melhor do que o tomado em conta. Não se encontra, pois, na solução encontrada e nos seus fundamentos, motivo pelo qual o juiz devesse ter recusado a autorização e, menos ainda, determinar qualquer diligência.

Assim como não se descortina prejuízo para os credores, mas antes razoável e criteriosa gestão do caso pelo AJ, com notórias vantagens, poupanças e respeito pelas regras legais.

Logo, total acerto do assim decidido.

O recurso, enfim, não merece provimento, devendo confirmar-se a decisão recorrida.

V. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
*

Custas da apelação pela recorrente – (artºs 527º, nºs 1 e 2, e 529º, do novo CPC, e 1º, nºs 1 e 2, 3º, nº 1, 6º, nº 2, referido à Tabela anexa I-B, 7º, nº 2, 12º, nº 2, 13º, nº 1 e 16º, do RCP).
*
*
*

Notifique.
Guimarães, 18 de Junho de 2020

Este Acórdão vai assinado digitalmente no Citius, pelos Juízes-Desembargadores:

Relator: José Fernando Cardoso Amaral

Adjuntos: Helena Maria de Carvalho Gomes de Melo
Eduardo José Oliveira Azevedo



1. No inventário, quanto ao terceiro imóvel integrante do aludido património, constava que se tratava de prédio misto, com área total de 9360m2, que, além do urbano, integrava área rústica composta de vinha, oliveiras e fruteiras. No entanto, no auto de apreensão, pelas razões que mais tarde esclareceu e abaixo referidas, passou a constar apenas a parte urbana.
2. Valor unitário, pleno, ou seja, sem discriminar quota hereditária nem raiz e usufruto, e constante daquelas Repartições, não valor de mercado.
3. Diz a recorrente que o valor da parte urbana, avaliada em 2018, seria de 13.479,20€. Porém, não se encontra nestes autos prova disso.
4. Não se transcrevem as pretensas conclusões uma vcz que, além de não obrigatórias, elas não o são verdadeiramente, pois limitam-se a apresentar um copy past do texto das alegações, antecedendo cada parágrafo de um número, não observando, por isso, qualquer critério técnico-prático nem a regra jurídica plasmada no artº 639º, nº 1, CPC.
5. Remontando o acto recorrido e a interposição do recurso respectivo a data anterior ao da presente fixação do valor da causa e, portanto, vigorando aí o fixado na sentença (188,68€€), era até, mais rigorosamente, a este que devia ter-se atendido ao apreciar-se a admissibilidade do recurso e não ao posteriormente corrigido (3.133,24€). Como é lógico e assinalam os autores abaixo citados (cfr. nota 7), “A rectificação não tem eficácia retroactiva, não interferindo, por isso, com a legalidade dos actos processuais legitimados pelo valor primitivamente atribuído. Mas, se, por hipótese, à data da rectificação, estiverem em curso diligências que são inadmissíveis processualmente [caso do recurso] em face do valor daquela resultante, então tais diligências não podem ter sequência.
6. Esta acabou por não voltar a subir, possivelmente por se ter considerado inútil ou prejudicada.
7. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Iuris, 2008, página 116, nota 5.
8. Cfr. ob e loc. Citados na nota anterior.
9. No qual pesa predominantemente o dos referidos bens (3000,00€).
10. Recorde-se que o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam.
11. Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 328/2012, publicado no DR, nº 222/2012, II série, de 16 de Novembro, e nº 280/2015, publicado no DR nº 115/2015, II série, de 16 de Junho. Ainda, A. Geraldes, Recursos no Novo Código de Ptocesso Civil, edição de 2013, página 41 e nota 57.
12. Que se conservarão, assim, na titularidade do devedor.
13. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. citada, página 570, nota 2.
14. Ob. cit,. páginas 570 e 571, nota 5.
15. Idem, página 571, mesma nota.
16. Idem, página 571, mesma nota.
17. Idem, nota 7, página 571.
18. Notas 1 e 2, páginas 569 e 570,
19. Processo 17451/15.9T8SNT-D.L1-2ª secção.