EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
FALTA DE CITAÇÃO DO CÔNJUGE DO EXECUTADO
ANULAÇÃO DO PROCESSADO
VENDA POR NEGOCIAÇÃO PARTICULAR
DIREITO DE REMIÇÃO
Sumário

I – Nas execuções para pagamento de quantia certa a falta de citação do cônjuge do executado tem por efeito a anulação de todo o processado após a efectivação da penhora, sem prejuízo das vendas, adjudicações, remições e pagamentos já realizados, nos termos prescritos no n.º 6 do art.º 786.º do CP Civil. A justificação é linear: entre o interesse do cônjuge do executado ou do credor prejudicado pela falta de citação e o interesse do comprador, adjudicatário, remidor ou interessado que obteve um pagamento a lei dá prevalência a estes últimos interesses.
II - Tal como em qualquer outra modalidade de venda, a venda por negociação particular necessita de ter um valor base, em face da aplicação da estatuição do art.º 812.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Civil, de carácter geral. No entanto, o agente de execução, na qualidade de encarregado da venda, poderá efectuar a venda por valor inferior se, decorrido um lapso de tempo razoável, não lograr efectuar a mesma pelo valor inicialmente previsto. Esta venda por valor inferior tem sempre que ser precedida de apreciação judicial, com vista a garantir a defesa dos interesses de todos os interessados (exequente, executada e eventuais credores reclamantes), sindicando a necessidade e a medida da redução do preço, ponderando as particularidades do caso concreto.
III – O direito de remição é uma realidade processual diversa e autónoma da citação do cônjuge do executado, tratando-se de um direito de preferência qualificado, tendo por finalidade a protecção do património familiar. Assim sendo, a falta de citação do cônjuge do executado não pode ser invocada como fundamento para legitimar um exercício tardio do direito de remição.

Texto Integral

Processo n.º 615/14.0T8AGD-C.P1
Comarca: [Juízo de Execução de Águeda, Comarca de Aveiro]

Relatora: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
Adjunto: Vieira e Cunha

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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - RELATÓRIO

“B…, LDA.”, sociedade com sede na Rua …, n.º …, Trofa, interpôs acção executiva comum, para pagamento de quantia certa, contra “C…, LDA.”, sociedade com sede no …, …, e D…, residente na Rua …, n.º .., Estarreja, invocando ter fornecido à sociedade Executada vários produtos da sua comercialização.
Afirma que a sociedade Executada assumiu a dívida correspondente, no valor de € 8 408,44, acrescida de juros, por meio de confissão de dívida, a liquidar em 21 prestações mensais. Acrescenta que, no mesmo documento, o Executado D… constituiu-se avalista e principal pagador da quantia em causa, liquidando a quantia exequenda em € 8.718,05.
Em 17/11/14, foi penhorado o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e 1.º andar e sótão, logradouro e quintal, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º 1379 e descrito na Conservatória do Registo sob o n.º 241.
Sequencialmente a Agente de Execução diligenciou no sentido de citar a cônjuge do Executado, E…, tendo, no dia 14/12/14, deixado aviso para citação com dia e hora certa, tendo ficado consignado que a diligência seria realizada no dia 22/12/14, pelas 20.00 horas.
Depois, consta da respectiva Certidão de Citação, entre o mais, que “A citação/notificação foi efectuada mediante afixação na morada supra referida da nota de citação com a indicação de que o duplicado dos documentos anexos ficam à disposição do citando/notificando na secretaria judicial, tendo testemunhado este acto F… (…).”
Através de carta registada datada de 24/02/15, a Agente de Execução diligenciou no sentido de notificar a cônjuge do Executado para, no prazo de 10 dias, indicar a modalidade da venda pretendida.
Entretanto, agendou-se venda por propostas em carta fechada para o dia 23/11/15, com vista a serem aceites propostas iguais ou superiores a 85 % do valor base de € 127.753,93.
Com data de 24/10/15, foi emitida pela Agente de Execução “Certidão de Afixação de Imóvel Penhorado”, assinada pela cônjuge do Executado, com a seguinte observação: “Fui recebida pela esposa do executado que assistiu à afixação, tendo assinado a presente certidão.”
Na data designada não foram apresentadas quaisquer propostas, tendo os autos prosseguido para venda por negociação particular.
Neste âmbito, foi apresentada uma proposta de adjudicação pelos credores reclamantes “G…, S.A.” e “H…, S.A.”, à qual a Exequente se opôs.
Sequencialmente, com data de 29/05/18, foi proferido despacho, com a seguinte fundamentação resumida: “(…) A venda mediante negociação particular, quando feita nos termos da alínea d) do supre citado artigo 832 do Código de Processo Civil, é uma modalidade de recurso em relação à venda por propostas em carta fechada, esta tida como regime regra e que “in casu” se frustrou dada a ausência de propostas. (…) Volvendo ao caso dos autos, há que considerar que a presente execução deu entrada em juízo em 30.10.2014, que em 23.11.2015 se frustrou a venda mediante propostas em carta fechada, encontrando-se os autos na fase da venda por negociação particular desde então, recusando a exequente a proposta apresentada, mas sem diligenciar pela obtenção de melhor proposta, que seja do seu interesse. Atendendo ao supra exposto e ao facto de a venda por negociação particular não se encontrar sujeita a nenhum valor mínimo, bem se encontrar dependente da aceitação do executado e muito menos do exequente, uma vez que não está em causa o seu património, autorizo que a agente de execução proceda à venda do imóvel penhorado nos autos pelo valor de 96.559,51€.”
Esta venda foi concretizada em 24/07/18.
Com data de 25/02/19, a cônjuge do Executado veio apresentar requerimento nos autos alegando que somente em 11/02/19 teve conhecimento de uma notificação enviada por um Agente de Execução, que lhe concedia 10 dias para entregar o imóvel livre de pessoas e bens, bem como as respectivas chaves.
Diz que, confrontado o marido com esta notificação, o mesmo lhe respondeu que lhe omitiu a existência deste processo de execução, com o propósito de a poupar a preocupações e por se sentir culpado dessa situação.
Alega nunca ter recebido a notificação de citação.
Acrescenta que a certidão de citação apenas alude a uma testemunha, em oposição à imposição legal que impõe a presença de duas testemunhas. Bem como que não existe comprovativo nos autos de que, subsequentemente a tal afixação de edital, lhe tenha sido enviada carta registada.
Defende que, não obstante ter sido penhorada a residência familiar do casal, ela não foi validamente citada, o que a impediu de deduzir oposição à penhora e exercer todos os direitos que a lei processual lhe confere.
Afirma ainda que a assinatura que fez na certidão de afixação para venda não a levou a ter conhecimento do processo, já que nada lhe foi explicado na ocasião.
Remata pedindo que se tenha como verificada a falta de citação da Executada e, em consequência, declarada nulidade de tudo quanto se processou após a petição inicial, incluindo a adjudicação do imóvel, requerendo-se o cancelamento dos registos efectuados a favor dos credores reclamantes que adjudicaram o imóvel. Ou que a venda/adjudicação, nos termos em que se verificou, seja considerada nula, por se consubstanciar num quadro de abuso de direito. Ou, caso assim se não entenda, que seja considerado o justo impedimento e por consequência, seja admitida a exercer o seu direito de remição, de acordo com o previsto nos art.º 842.º e ss, do CP Civil, caso em que lhe deve ser concedido um prazo para efectuar o depósito.
Juntou um documento e arrolou prova testemunhal.
Foi proferido despacho, com a seguinte fundamentação e decisão resumidas: “(…) No caso dos autos, a afixação da nota de citação não foi presenciada por duas testemunhas, mas sim apenas por uma, pelo que, de facto, a citação da requerente realizada nos termos e para os efeitos do artigo 740 do Código de Processo Civil é nula. Mais quais os efeitos da nulidade da citação da requerente, cônjuge do executado, na tramitação da acção executiva que se seguiu? Provoca a nulidade da venda já concretizada? (…) No caso dos autos, não foi a exequente a compradora ou adjudicatária do imóvel penhorado, mas sim os credores reclamantes, pelo que de acordo com a doutrina supra citada não tem acolhimento legal a nulidade da venda efectuada. Assim, tendo presente o disposto no artigo 786/6 do Código de Processo Civil, não é anulável a venda realizada nos autos, pelo que deverá a requerente lançar mão da segunda parte deste normativo legal. (…) Acresce, ainda e por outro lado, que a requerente, no artigo 35 do seu requerimento reconhece que assinou a certidão de afixação edital para a realização da venda por propostas em carta fechada. (…) Não obstante alegar que só o fez a pedido do seu marido e executado, a mesma não alega que não saiba ler, não sendo crível que assinasse o edital, a agente de execução o afixasse na porta da sua casa e a mesma não lhe perguntasse quem era e para o que vinha ou, no mínimo, que não o lesse para saber do que se tratava, pelo que há que considerar, nos termos previstos no artigo 197/2 do Código de Processo Civil que renunciou à arguição da nulidade por falta de citação para o processo de execução. Em face do exposto, indefiro a requerida nulidade da venda. (…) Do pedido de exercício do direito de remição por parte do requerente: (…) O executado não veio aos autos invocar a ausência de notificação da data em que iria realizar-se a escritura pública, para que os titulares do direito de remição o pudessem vir exercer, conforme prevê o artigo 842 do Código de Processo Civil, pelo que há que indeferir o exercício do direito de remição por parte da requerente. Em face do exposto, indefiro o requerido pela requerente E…, mantendo a venda realizada nos autos aos credores reclamantes G…, SA e H…, SA.”
Inconformado com esta decisão, a cônjuge do Executado interpôs o presente recurso, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Na qualidade de cônjuge do executado, veio a recorrente, perante o tribunal a quo, alegar factos que consubstanciam a falta de citação nos termos e para os efeitos do art.º 740.º C.P.C. e, por consequência a nulidade da mesma, assim como a falta de notificação para todos os actos subsequentes, incluindo a venda do imóvel – casa de habitação, bem comum do casal.
II. No mesmo acto, requereu que lhe fosse reconhecido o direito de remição, atendendo a que, por lhe ter sido deliberadamente omitido, só teve conhecimento da existência do presente processo de execução quando recentemente foi confrontada com uma notificação do Agente de Execução dirigida ao executado, estabelecendo um prazo para a entrega do imóvel – casa de habitação.
III. Assim, na qualidade de cônjuge do executado, por requerimento datado de 25-02-2019, invocou a falta de notificação e de todas as notificações que se seguiram, incluindo a venda do imóvel.
IV. Fez referência a um único documento constante do processo, respeitante à fase da venda do imóvel, certidão de afixação para venda por propostas em carta fechada, datada de 24-10-2015 por si assinado, mas que não teve consciência nem o alcance do seu conteúdo.
V. Como prova dos factos que alegou, indicou a recorrente três testemunhas.
VI. De facto, é um dado adquirido que a Recorrente nunca tomou conhecimento dos actos processuais que a si lhe diziam respeito, quer por incompetência, negligência ou flagrante omissão da Agente de Execução.
VII. A M.ª Juíza a quo, por despacho datado de 14-03-2019, indeferiu o requerido, sem que previamente inquirisse as testemunhas, sendo certo que não fundamentou o motivo da sua não inquirição.
VIII. No Despacho, deu como assente que a recorrente foi notificada de uma série de actos.
IX. No entanto, nenhuma das comunicações ali referidas chegou ao conhecimento da recorrente, tal como esta referiu no requerimento que apresentou.
X. De facto, do processo consta o envio da referida correspondência, mas nada consta que confirme que a recorrente a recebeu.
XI. Doutro modo, alegou a recorrente não ter sido notificada nos termos da al. a), do n.º 1, do art.º 786.º do CPC, o que conferiria à recorrente, o direito de, nos termos do n.º 1, do art.º 787.º do CPC, deduzir oposição à penhora e a exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei confere ao executado.
XII. Certo é que do processo não consta qualquer correspondência, naqueles termos e para aqueles fins, dirigida á recorrente, facilmente se concluindo pela sua não notificação.
XIII. Na decisão, a M.ª Juiz não se pronunciou acerca desta omissão concreta, limitando-se a considerar apenas a existência de uma nulidade, por inobservância da formalidade prescrita no n.º 4 do art.º 232.º do CPC – presença de uma só testemunha na citação com hora certa.
XIV. Pelo que, face ao que foi alegado, o tribunal deveria ter providenciado pela realização da inquirição das testemunhas, ao invés de considerar como assente, sem qualquer prova fidedigna, factos impugnados expressamente pela recorrente.
XV. Irregularidade que, nos termos do n.º 1 do art.º 195.º do CPC, teve influência na decisão da causa, na medida em que tais testemunhas visavam provar que à requerente não foi dado conhecimento da existência do processo de execução.
XVI. A omissão de certa diligência probatória não se encontra a coberto de decisão explícita, a omissão do poder-dever instrutório do juiz constitui uma nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, n.º 1 do CPC, uma vez que se trata da omissão de um acto que a lei prescreve.
XVII. DA NULIDADE DA VENDA DO IMÓVEL POR ABUSO DE DIREITO: para garantir o integral pagamento de uma quantia mutuada, recorrente e executado constituíram a favor dos reclamantes uma hipoteca sobre o imóvel em causa.
XVIII. Os reclamantes em 15-12-2014, após a citação que lhe fizeram como credores com garantia real, reclamaram os seus créditos, referindo, no entanto, que os mutuários liquidaram todas as prestações vencidas.
XIX. Frustrada a venda por propostas em carta fechada, seguiu-se a modalidade de venda por negociação particular, pelo valor de 136.000,00 €, correspondente a 85 % dos valor da casa (160.000,00 €), segundo a avaliação obtida pelos próprios reclamantes.
XX. Por sugestão do Agente de Execução, os credores reclamantes requereram a adjudicação do imóvel, pelo exacto valor da quantia que os mutuários ainda deviam, ou seja, 96.559,51 €.
XXI. Pedido, esse, que teve em 10-07-2015, a oposição expressa da própria exequente B….
XXII. De nada valeu a posição da exequente, tendo-se adjudicado o imóvel aos credores reclamantes, por valor muito inferior ao valor base e real do bem, a coberto de autorização judicial nesse sentido.
XXIII. Em claro prejuízo do executado e da recorrente, esta que de nada sabia.
XXIV. Foi assim o imóvel adjudicado aos credores reclamantes pelo montante de 96.559,51 euros, quando o valor base do bem havia sido considerado no montante de 160.000 euros, por despacho da M.ª Juiz a quo, datado de 13-10-2015.
XXV. Como referiu no requerimento e embora não se recorde, a recorrente admite ter assinado um documento, certidão de afixação para venda por propostas em carta fechada, datada de 24-10-2015, atendendo à semelhança com a sua assinatura.
XXVI. No entanto, como também já referiu, nada lhe foi explicado, bem pelo contrário tudo lhe foi ocultado.
XXVII. A M.ª Juiz concluiu, com base em meras suposições, que a recorrente ao assinar a certidão de afixação para venda por propostas em carta fechada, renunciou tacitamente à arguição da nulidade por falta de citação para o processo de execução (!).
XXVIII. Por outro lado, a M.ª Juiz dá como certo ter sido afixado o edital na porta da casa, quando isso não aconteceu, nem a recorrente viu que tivesse sido afixado qualquer documento.
XXIX. Acresce que, o facto de a recorrente não ter alegado não saber ler, não pode significar que, por isso tomou conhecimento do conteúdo do documento que assinou.
XXX. Até porque, como referiu não o leu! Confiou na indicação dada pelo seu marido e, depois de assinar, ausentou-se.
XXXI. Prescreve o art.º 334.º do C. Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
XXXII. Acerca do abuso de direito na venda do imóvel, invocado pela recorrente, limitou-se a M.ª Juiz a referir: “Acresce que tendo sido judicialmente autorizada a realização da venda, não se verifica qualquer situação de abuso de direito por parte dos bancos credores reclamantes na concretização da venda realizada.”
XXXIII. Ora, o abuso do direito, no entender da recorrente, consubstancia-se em todos os actos conducentes à venda/adjudicação do imóvel nas condições em que foi realizada.
XXXIV. Tratando-se da casa de morada da família e bem comum da recorrente, impunha-se a observância de todos os procedimentos legais e outra ponderação.
XXXV. No caso concreto, o valor pelo qual foi adjudicado o imóvel é muito inferior a 85 % do seu valor base, acrescentando-se que, atendendo ao grande aumento do património imobiliário nos últimos anos, na data da escritura pública de adjudicação, em Julho de 2018, o imóvel valeria bem mais de 160.000 euros, valor base considerado em 2015.
XXXVI. Adjudicação que aconteceu à revelia da recorrente, tratando-se da casa de morada da família e um bem comum do casal.
XXXVII. O que redunda num flagrante e grave prejuízo para a recorrente e numa vantagem desmesurada para os adjudicantes.
XXXVIII. Adjudicantes que, por se tratar de instituições financeiras, se encontram numa posição de clara supremacia em relação ao executado e exequente.
XXXIX. Pelo que, a nosso ver, foram manifestamente excedidos, os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.
XL. Pelo que a venda deve ser tida como nula, por manifesto Abuso de Direito.
XLI. A recorrente alegou/acusou que lhe havia sido ocultado todo o processo de execução, nomeadamente para a escritura pública, arrolando testemunhas, requerendo, por conseguinte, que lhe seja admitido exercer o seu direito de remição, o qual, pelas razões expostas, não foi exercido dentro dos limites previstos no art.º 843.º do CPC.
XLII. Face a esta acusação a M.ª Juiz, depois de mencionar até quando é admitido o direito de remição, refere: “O executado não veio aos autos invocar a ausência de notificação da data em que iria realizar-se a escritura pública, para que os titulares do direito de remição o pudessem vir exercer, conforme prevê o artigo 842.º do Código de Processo Civil, pelo que há que indeferir o exercício do direito de remição por parte da requerente” (I).
XLIII. No entanto, salvo melhor opinião, afigura-nos que à M.ª Juiz não assiste razão, carecendo até de fundamentação.
XLIV. Em primeiro lugar porque não pode a recorrente arcar com um ónus, por um facto imputável ao executado.
XLV. Depois porque, e em segundo lugar, o facto de o executado não ter sido, efectivamente, notificado da data da escritura pública, reforça a alegação, da recorrente, de que esta, e também o executado, se viram impedidos de exercer o direito de remição.
XLVI. Pelo que, o despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que considere a venda nula, ou que admita a recorrente a exercer o seu direito de remição.
Não foram apresentadas contra-alegações.
O presente recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil[1], aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
As questões a dirimir, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
• Nulidade processual decorrente da omissão de inquirição das testemunhas arroladas em sede de incidente de falta de citação;
• Nulidade da venda do imóvel penhorado por abuso de direito;
• Exercício do direito de remição por parte do cônjuge do executado.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foram os seguintes os factos dados como provados na decisão recorrida:

1) A ora requerente é casada com o executado D…, no regime de comunhão de adquiridos desde 15.08.1084.
2) Em 17.11.2014 foi penhorado à ordem dos presentes autos o prédio urbano composto por casa de habitação de rés do chão, 1.º andar e sótão, sito em …, … freguesia … e concelho de Estarreja, descrito na matriz predial urbana sob o artigo 1397 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Estarreja sob o n.º 241.
3) A agente de execução deixou aviso no dia 14.12.2014 para citação com hora certa tendo ficado consignado que a diligência teria lugar no dia 22.12.2014, pelas 20h00.
4) No dia 21.12.2014, pelas 20 horas, a agente de execução procedeu à afixação na morada Rua …, n.º .., …, Estarreja da nota de citação com a indicação de que o duplicado dos documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial, tendo testemunhado o acto F….
5) A agente de execução procedeu à citação dos credores na sequência da qual o G…, SA e o H…, SA reclamaram créditos.
6) Por carta datada de 24.02.2015, a agente de execução notificou a requerente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 812 do Código de Processo Civil.
7) Em 23.04.2015, a agente de execução proferiu decisão de venda, tendo procedido à notificação da mesma à requerente na mesma data.
8) Foi designada data para a realização da venda por carta fechada para o dia 23.11.2015.
9) Na data designada não foram apresentadas quaisquer propostas, pelo que os autos prosseguiram com a venda por negociação particular.
10) Os credores reclamantes identificados em 5) vieram requerer a adjudicação do imóvel.
11) Em 29.05.2018 foi autorizada a venda do prédio penhorado aos referidos credores pelo valor de 96.559,51 €.
12) A venda concretizou-se em 24 de Julho de 2018.
13) Em 31.07.2018, a agente de execução procedeu à notificação do executado para procederem à entrega à entrega voluntária do imóvel vendido nos autos.
14) Em 25.01.2019, a agente de execução requereu o auxílio da força pública para a entrega do imóvel aos adquirentes.
15) O que foi deferido em 04.02.2019.
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IV – NULIDADE DA CITAÇÃO DO CÔNJUGE DO EXECUTADO E RESPECTIVAS CONSEQUÊNCIAS

A Recorrente sustenta - em síntese – que nunca tomou conhecimento dos actos processuais que a si lhe diziam respeito, quer por incompetência, negligência ou flagrante omissão da Agente de Execução.
Insurge-se contra a decisão da Exm.ª Sr.ª Juíza recorrida ao indeferir o requerido, sem previamente inquirir as testemunhas por si arroladas nem fundamentar o motivo da sua não inquirição.
Defende que esta irregularidade, nos termos do n.º 1 do art.º 195.º do CP Civil, teve influência na decisão da causa, na medida em que tais testemunhas visavam provar que à requerente não foi dado conhecimento da existência do processo de execução.
Invoca sequencialmente a nulidade da venda do imóvel por abuso de direito, alegando que o valor pelo qual este foi adjudicado é muito inferior a 85 % do seu valor base, o que redunda num flagrante e grave prejuízo para si e numa vantagem desmesurada para os adjudicantes.
Insurge-se igualmente com a não admissão do por si requerido direito de remição, alegando que não pode arcar com um ónus, por um facto imputável ao executado e reiterando que não foi efectivamente notificada dos actos processuais relevantes do processo de execução.
Pretende que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que considere a venda nula, ou que admita a recorrente a exercer o seu direito de remição.
Vejamos:
A Recorrente, no seu requerimento, pediu que se tivesse como verificada a sua falta de citação e, em consequência, declarada a nulidade de tudo quanto se processou após a petição inicial, incluindo a adjudicação do imóvel, requerendo o cancelamento dos registos efectuados a favor dos credores reclamantes que adjudicaram o imóvel. Ou que a venda/adjudicação, nos termos em que se verificou, seja considerada nula, por se consubstanciar num quadro de abuso de direito. Ou, caso assim se não entenda, que seja considerado o justo impedimento e por consequência, seja admitida a exercer o seu direito de remição, de acordo com o previsto nos art.º 842.º e ss, do CP Civil, caso em que lhe deve ser concedido um prazo para efectuar o depósito.
O despacho recorrido declarou a nulidade da citação da Recorrente, com base na omissão de presença de duas testemunhas. Ou seja, com base em razões meramente procedimentais.
Uma vez que – nos termos alegados pela própria Recorrente – a inquirição das testemunhas por si arroladas visava provar que não lhe foi dado conhecimento da existência do processo de execução, a decisão em causa prejudicou a utilidade da diligência requerida.
Como é pacífico, o princípio da gestão processual, consagrado no art.º 6.º do CP Civil, inclui o poder-dever de recusar as diligências impertinentes ou meramente dilatórias.
Consequentemente, a omissão de inquirição de tais testemunhas não se pode considerar uma nulidade insanável, nos termos e para os efeitos previstos no art.º 195.º do CP Civil.
A este propósito, já Alberto dos Reis[2] explicava, então por referência ao equivalente art.º 201.º do CP Civil: “O que há de característico e frisante no art.º 201.º é a distinção entre infracções relevantes e infracções irrelevantes. Praticando-se um ato que a lei não admite, omitindo-se um ato ou uma formalidade que a lei prescreve, comete-se uma infracção, mas nem sempre esta infracção é relevante, quer dizer, nem sempre produz nulidade. A nulidade só aparece quando se verifica um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”
No entanto, apesar de a Recorrente invocar expressamente esta nulidade processual, analisados atentamente os fundamentos do recurso, percebe-se que o que esta pretende é a alteração das consequências jurídicas da declaração de nulidade da sua citação: a decisão recorrida entendeu não ser anulável a venda realizada nos autos e que a Recorrente teria que lançar mão dos mecanismos previstos no n.º 6 do art.º 786.º do CP Civil enquanto esta quer ver declarada a nulidade de tudo quanto se processou após a petição inicial, incluindo a adjudicação do imóvel, requerendo o cancelamento dos registos efectuados a favor dos credores reclamantes que adjudicaram o imóvel.
Em nosso entendimento, não lhe assiste razão.
Nos termos prescritos pelo art.º 786.º do CP Civil, o cônjuge do executado deve ser citado pelo agente de execução, logo que concluída a fase da penhora, desde que a mesma tenha recaído sobre bens imóveis, estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente ou quaisquer bens comuns do casal (cf. art.º 786.º, n.º 1, alínea a), do CP Civil).
Com tal citação, este cônjuge passa a ter um estatuto paralelo ao do próprio executado (cf. art.º 787.º do CP Civil), podendo deduzir oposição à penhora e exercer todos os demais direitos que a lei processual confere ao executado[3].
Contudo, a falta da sua citação não tem os efeitos gerais decorrentes dos art.º 186.º e ss. do CP Civil, cabendo-lhe um regime especial, nos termos do qual “A falta das citações prescritas tem o mesmo efeito que a falta de citação do réu, mas não importa a anulação das vendas, adjudicações, remições ou pagamento já efectuados, dos quais o exequente não haja sido exclusivo beneficiário; quem devia ter sido citado tem direito a ser ressarcido, pelo exequente ou outro credor pago em sua vez, segundo as regras do enriquecimento sem causa, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos gerais, da pessoa a quem seja imputável a falta de citação.” (cf. art.º 786.º, n.º 6, do CP Civil).
Ou seja, a falta de citação do cônjuge do executado tem por efeito a anulação de todo o processado após a efectivação da penhora[4], com excepção das vendas, adjudicações, remições e pagamentos já realizados.
A interpretação deste preceito é absolutamente linear e tem sido feita de forma coincidente pela doutrina e pela jurisprudência.
Aliás, a respectiva justificação é facilmente perceptível: entre o interesse do cônjuge do executado ou do credor prejudicado pela falta de citação e o interesse do comprador, adjudicatário, remidor ou interessado que obteve um pagamento a lei dá prevalência a estes últimos interesses.
Como referem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo[5] “Compreende-se esta limitação imposta pelo legislador. Ao fazer depender a manutenção das vendas e de outros actos processuais da circunstância de não ter sido e exequente o exclusivo beneficiário, pretende-se tutelar os legítimos interesses e direitos das outras partes processuais e dos terceiros de boa-fé.” Ou, no mesmo sentido, Marco Gonçalves[6] “Com efeito, conforme tem vindo a ser pacificamente entendido pela jurisprudência, esta regra visa proteger o adquirente do bem vendido em sede executiva – o qual é alheio a esta anomalia processual – e, indirectamente, acautelar a posição dos credores reclamantes a quem já tenham sido liquidados os seus créditos.”
No caso dos autos, tendo o cônjuge do executado vindo arguir a falta da sua citação apenas em 25/02/19, muito depois da concretização da venda aos credores reclamantes, ocorrida em 24/07/18, não pode a declarada nulidade da citação ter os efeitos pretendidos pela Recorrente, mas somente os previstos no n.º 6 do art.º 786.º do CP Civil, nos termos decididos na 1.ª instância.
Improcede, assim, este fundamento de recurso.
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V – NULIDADE DA VENDA DO IMÓVEL PENHORADO POR ABUSO DE DIREITO

Como se referiu acima, a Recorrente invoca igualmente a nulidade da venda do imóvel por abuso de direito, alegando que o valor pelo qual este foi adjudicado é muito inferior a 85 % do seu valor base, o que entende redundar num flagrante e grave prejuízo para si e numa vantagem desmesurada para os adjudicantes.
Já ficou decidido acima que os únicos direitos que assistem à Recorrente em consequência da nulidade da sua citação são os previstos no art.º 786.º, n.º 6, do CP Civil.
Por inerência, não tendo chegado a assumir a posição de parte, não lhe assistem – em princípio – os direitos inerentes a estas no processo executivo, entre eles o de impugnar os actos praticados no mesmo.
No entanto, o abuso de direito é de conhecimento oficioso e, nessa medida, deverá ser por nós conhecido.
Vejamos então:
Como se sabe, as normas que regulam a venda dos bens penhorados no CP Civil foram sendo, ao longo dos anos, objecto de várias e relevantes alterações[7].
Com a reforma introduzida pelo D.L. n.º 38/2003, de 08/03, passou a caber ao agente de execução a tramitação da venda, reservando-se, no entanto, as intervenções mais relevantes para o juiz do processo[8].
Em concreto, passou a ser atribuição do agente de execução a decisão sobre a modalidade da venda, o valor base dos bens a vender e a eventual formação de lotes, ouvindo previamente o exequente, o executado e os credores com garantias sobre os bens a vender (cf. art.º 812.º do CP Civil).
Afinando a nossa análise, temos que a venda por negociação particular é a modalidade de venda em que o encarregado da venda procura no mercado, por contacto directo, potenciais compradores interessados na aquisição dos bens penhorados.
Actualmente, resulta do disposto no art.º 832.º do CP Civil que esta venda tem natureza residual[9], estando reservada para os casos de acordo dos interessados, de urgência na realização da venda, de se frustrar a venda por propostas em carta fechada ou de o bem a vender tiver um valor inferior a 4 UC.
No caso dos autos, foi determinada a venda mediante propostas em carta fechada, por 85 % do respectivo valor base.
Não tendo aparecido proponentes, determinou-se que a venda prosseguiria mediante negociação particular.
Ou seja, a venda prosseguiu para negociação particular nos termos prescritos no art.º 832.º, alínea d), do CP Civil, em virtude da ausência de quaisquer propostas.
Tal como em qualquer outra modalidade de venda, a venda por negociação particular necessita de ter um valor base, em face da aplicação da estatuição do art.º 812.º, n.º 2, alínea b), do CP Civil, de carácter geral.
Contudo, a fixação de um valor base não impede que a venda possa vir a realizada por valor inferior a este.
Com efeito, em sede de funções do processo executivo, e tal como se refere no Acórdão da Relação de Lisboa de 06/03/07, tendo como Relator Arnaldo Silva[10]: “O fundamento e a justificação da venda executiva encontra-se na eficácia do título executivo: este cria para o credor o direito à acção executiva, cria para o executado um estado de sujeição, o devedor fica sujeito às medidas que órgão executivo (o juiz) está autorizado, por lei, a pôr em prática para dar satisfação ao direito do credor (responsabilidade executiva do devedor) - o executado, deixando de cumprir a obrigação que contraíra, tem de sofrer a sanção necessária e adequada ao restabelecimento da ordem jurídica violada, isto é, fica submetido à responsabilidade executiva -, e faz emergir para o órgão executivo (o juiz) o poder dever de pôr em movimento a sua actividade em ordem à realização do direito do credor e à efectivação da responsabilidade do devedor. A venda executiva tem a feição de um autêntico acto de expropriação, pois que o executado é privado, sem ou contra a sua vontade, do seu direito de propriedade, direito este do executado que é transferido para um terceiro: o arrematante.”
A venda judicial efectiva, portanto, a responsabilidade patrimonial do devedor, na medida em que o produto da venda paga, de forma total ou parcial, a dívida exequenda.
É esta a finalidade principal do processo executivo, estando plenamente justificada a restrição aos direitos fundamentais do executado, em especial ao direito de propriedade privada, consagrado no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa.
Além disso, especificamente nestas situações de venda por negociação particular por frustração da venda por propostas em carta fechada, há ainda que atender a que se trata de uma modalidade de recurso e que, não tendo surgido propostas de valor superior a 85 % do valor base nas propostas em carta fechada num período de tempo razoável, com grande probabilidade não será possível encontrar no mercado propostas de compra superiores a esse valor.
A rigidez do valor base na venda por negociação particular levaria a que as execuções se prolongassem indefinidamente, com os bens a serem negociados por um preço superior ao valor do mercado.
A solução terá que ser a de pôr de parte a imperatividade da fixação de um preço mínimo para a venda.
O agente de execução, na qualidade de encarregado da venda, poderá efectuar a venda por valor inferior se, decorrido um lapso de tempo razoável, não lograr efectuar a mesma pelo valor inicialmente previsto.
No entanto, esta venda por valor inferior tem sempre que ser precedida de apreciação judicial, com vista a garantir a defesa dos interesses de todos os interessados (exequente, executada e eventuais credores reclamantes).
Esta tem sido, aliás, a posição maioritariamente defendida pela doutrina e jurisprudência.
Cita-se, a título meramente exemplificativo, O Acórdão desta Relação de 20/06/16, tendo como Relator Sousa Lameira[11], onde se decidiu precisamente que “A venda por negociação particular subsequente à frustração de venda por propostas em carta fechada não está sujeita a qualquer valor mínimo.”[12]
Bem como a opinião de Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes[13]: “Embora a lei nada diga, releva do poder jurisdicional a decisão de dispor do bem penhorado, pertença do executado e garantia dos credores, mediante a obtenção de um preço inferior àquele que, de acordo com o resultado das diligências efectuadas pelo agente de execução (artigo 886.º-A, n.º 3), corresponde ao valor de mercado do bem; nem faria sentido que, quando o agente de execução é encarregado da venda ou escolha a pessoa que a fará, lhe coubesse baixar o valor base dos bens com fundamento na dificuldade em o atingir. O juiz conserva o poder que já tinha de autorizar a venda por valor inferior ao valor-base.”[14]
A decisão judicial deve sindicar a necessidade e a medida da redução do preço, ponderando as particularidades do caso concreto.
Em concreto, deve ter em conta o período de tempo decorrido desde o início das diligências de venda, as potencialidades da venda do bem, a evolução das condições do mercado de venda e o interesse manifestado pelo mercado.
No caso dos autos, está cabalmente justificada a venda por valor inferior, no despacho judicial proferido em 29/05/18: “(…) a presente execução deu entrada em juízo em 30.10.2014, que em 23.11.2015 se frustrou a venda mediante propostas em carta fechada, encontrando-se os autos na fase da venda por negociação particular desde então, recusando a exequente a proposta apresentada, mas sem diligenciar pela obtenção de melhor proposta, que seja do seu interesse. Atendendo ao supra exposto e ao facto de a venda por negociação particular não se encontrar sujeita a nenhum valor mínimo, bem se encontrar dependente da aceitação do executado e muito menos do exequente, uma vez que não está em causa o seu património, autorizo que a agente de execução proceda à venda do imóvel penhorado nos autos pelo valor de 96.559,51€.”
Ou seja, foram ponderados os factores relevantes, tais como o período de tempo decorrido e, implicitamente, as potencialidades da venda do bem e a falta de interesse manifestado pelo mercado.
A nosso ver, nenhuma censura merece o despacho recorrido, face às especificidades da causa à luz das considerações jurídicas acima feitas.
Não é razoável que os autos fiquem à espera que a conjectura de mercado melhore e/ou surja um comprador disposto a oferecer quantia superior pelo bem penhorado.
Por outro lado, é incontestável que o exequente não pode ser obrigado a esperar indefinidamente pela cobrança judicial do seu crédito, sendo que o decurso do tempo contribui para o contínuo acumular da dívida dos Executados e para a desvalorização do bem.
Consequentemente, a nossa conclusão é a de que a venda autorizada nos moldes que o foi não constitui qualquer abuso de direito, nos termos defendidos pela Recorrente.
Improcede, portanto, este fundamento de recurso.
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VI – EXERCÍCIO DO DIREITO DE REMIÇÃO

Finalmente, a Recorrente insurge-se com a não admissão do por si requerido direito de remição, alegando que não pode arcar com um ónus, por um facto imputável ao executado e reiterando que não foi efectivamente notificada dos actos processuais relevantes do processo de execução.
Tal como explica Gonçalves Sampaio[15], “A remição consiste no direito concedido a certos parentes (cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, descendentes e ascendentes) de remir todos ou parte dos bens vendidos ou adjudicados, no processo executivo, pelo preço que tiver sido feita a venda ou adjudicação.”
Ou seja, e seguindo a terminologia usada por grande parte da doutrina e jurisprudência, trata-se de um direito de preferência qualificado[16]
Conforme resulta do art.º 843.º do CP Civil, o prazo em que o direito de remição deve ser exercido varia consoante a modalidade de venda. No caso específico da venda por negociação particular, o direito de remição deve ser exercido até ao momento da assinatura do título que a documenta.
No caso em apreciação, e tendo em conta que a venda se concretizou em 24/07/18, é manifesto que a Recorrente não exerceu tempestivamente este direito – tal como se decidiu no despacho recorrido.
No presente recurso, esta vem invocar em seu benefício a falta de citação e, com base nesta, pretender justificar o accionar tardio deste direito.
Entendemos não lhe assistir razão, por se tratar de realidades processuais diversas, autónomas e sem conexão uma com a outra.
Tal como já explicava Alberto dos Reis[17] - ensinamentos que permanecem actuais – “O cônjuge do executado pode, no processo de execução, exercer um direito: o de remição (art.º 912.º). Mas não é certamente com o exercício deste direito que se relaciona a citação ordenada no artigo 864.º, porque igual direito compete aos ascendentes e descendentes do executado e todavia não são citados; além de que a remição tanto pode recair sobre bens imobiliários como sobre bens mobiliários e a citação do cônjuge só tem lugar no caso de penhora de bens imobiliários.”
Isto é, a citação do cônjuge do executado no âmbito do processo de execução, após a penhora de bens imóveis, estabelecimento comercial ou bens comuns, visa especificamente a compatibilização das regras processuais com o regime substantivo previsto no Código Civil, em especial atinentes aos efeitos do casamento quanto aos bens dos cônjuges (cf. art.º 1678.º e ss.).
Diversamente, o direito de remição – nos termos já aflorados acima – é um direito de preferência qualificado tendo por finalidade, nas palavras de Lebre de Freitas[18], “a protecção do património familiar, evita, quando exercido, a saída dos bens penhorados do âmbito da família do executado.”
Assim sendo, a falta de citação não pode ser invocada como fundamento para legitimar um exercício tardio do direito de remição.
Improcede, portanto, este fundamento de recurso, improcedendo o recurso na totalidade.
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VII - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso do cônjuge do Executado/Recorrente, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas a cargo da Recorrente – art.º 527.º do CP Civil.
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Notifique e registe.
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Porto, 28 de Abril de 2020
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
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[1] Doravante designado apenas por CP Civil, por questões de operacionalidade e celeridade.
[2] In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, pág. 484.
[3] Para mais esclarecimentos, veja-se José Lebre de Freitas in A Acção Executiva à luz do código de processo civil de 2013, 7.ª Edição, Gestlegal, pág. 166, que defende que, após a citação, o cônjuge do executado passa a assumir a posição de uma parte principal.
[4] Por ser este o momento em que a citação deveria processualmente ter tido lugar.
[5] In A Acção Executiva Anotada e Comentada, 2017, 2.ª Edição, Almedina, pág. 414.
[6] In Lições de Processo Civil Executivo, 3.ª Edição, Almedina, pág. 451.
[7] Em especial, as alterações decorrentes do D.L. n.º 329-A/1995, de 12/12, do D.L. n.º 38/2003, de 08/03, do D.L. n.º 226/2008, de 20/11 e da Lei n.º 60/2012, de 09/11.
[8] Lê-se no respectivo Preâmbulo do D.L. n.º 38/2003, de 08/03, que “Quanto à venda executiva, nela tem papel fundamental o agente de execução, que pode, em certas circunstâncias, ser encarregado da própria realização da venda por negociação particular. À abertura das propostas em carta fechada continua a presidir o juiz da execução, quanto é imóvel o bem a vender ou quando, tratando-se dum estabelecimento comercial, ele próprio, solicitado para tanto, o determine. Tão-pouco é dispensável a intervenção do juiz na autorização da venda urgente. Mas, nos outros casos, a venda será realizada, em princípio, sem intervenção judicial.”
[9] Veja-se, neste sentido, Virgínio Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo, ob. cit., pág. 469.
[10] Proferido no Processo n.º 85047/206-7 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[11] Proferido no Processo n.º 1576/11.2TBVCD-I.P1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[12] Veja-se, no mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Coimbra de 08/03/16, tendo como Relatora Maria João Areias, proferido no Processo n.º 1037/10.7TJCBR-B.C1, o Acórdão desta Relação de 24/09/15, tendo como Relator Fernando Baptista, proferido no Processo n.º 1951/12.5TBVNG-P1, e o Acórdão da Relação de Lisboa de 06/11/13, tendo como Relator António Valente, proferido no Processo n.º 30888/09.3T2SNT.L1-8, todos disponíveis em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[13] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3, 2003, Coimbra Editora, pág. 601 e ss.
[14] Veja-se, no mesmo sentido, Marco Gonçalves, ob. cit., pág. 487.
[15] In A acção executiva e a problemática das execuções injustas, 2.ª Edição, 2008, Almedina, pág. 385.
[16] Veja-se, a título exemplificativo, Rui Pinto in A acção executiva depois da reforma, 2004, Lex, pág. 196 e Acórdão da Relação de Guimarães de 15/03/2016, tendo como Relator Jorge Seabra, proferido no Processo n.º 1846/14.8TBVCT-V.G1 e disponível em www.dgsi.pt na data do presente Acórdão.
[17] In Processo de Execução, Vol. 1.º, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1982, pág. 206.
[18] Ob. cit, pág. 388.