REGULAMENTO COMUNITÁRIO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PROCESSO DE REGULAÇÃO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS
Sumário

I - Decorre do preceituado no artigo 8º, da Constituição da República, e no artigo 59º, do Código de Processo Civil, que os Regulamentos Comunitários fazem parte integrante do direito português, onde têm aplicação directa e prevalecem sobre o direito nacional (princípio do primado do Direito Comunitário).
II - Se a situação dos autos (processo de alteração das responsabilidades parentais atinente a menores que, à data da instauração do processo, se encontram em território de outro Estado-Membro) estiver abrangida pelo Regulamento (CE) n.º 2201/2003, de 27.11, deve o Tribunal português aferir da sua competência internacional à luz do Regulamento, afastando a aplicação das regras de direito interno previstas nos artigos 62º e 63º, do CPC.
III - Segundo o princípio de proximidade consagrado no artigo 8º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, é internacionalmente competente para decidir de matérias relativas à regulação de responsabilidades parentais o tribunal do Estado-Membro onde a criança tenha a sua residência habitual.
IV - Encontrando-se as crianças entregues à guarda e a viver com o seu progenitor há mais de um ano na Alemanha (fruto de acordo homologado por sentença proferida por Tribunal português) e integrando, por isso, o respectivo agregado familiar, o meio escolar e o meio social naquele país, a sua residência habitual deve considerar-se situada na Alemanha, por ser aí que os mesmos vivem, em termos permanentes e estáveis, junto do seu progenitor.
V - Como assim, é internacionalmente competente para o processo de alteração das responsabilidades parentais o Tribunal Alemão, salvo se ocorrer alguma das hipóteses previstas nos artigos 9º, 10º e 12º, do citado Regulamento e que podem, em termos excepcionais, conduzir à extensão de competência do Tribunal português.

Texto Integral

Processo nº 129/18.9T8MTS-B.P1
Origem: Juízo de Família e Menores de Vila do Conde – Juiz 2
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Des. Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desª Maria de Fátima Andrade

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Sumário (elaborado pelo Relator):
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I. RELATÓRIO:
1. Nos presentes autos de alteração da regulação das responsabilidades parentais foi proferido o seguinte despacho: (itálico e sublinhados nossos)
A (in)competência absoluta deste tribunal:
B… intentou a presente ação de alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos menores, C… e D…, nascidos em 08.01.2009 e 23.01.2014, demandando o progenitor guardião, E….
A requerente reside na Póvoa de Varzim; o requerido reside na Alemanha, onde foi fixada a residência das crianças, por força da regulação acordada e judicialmente homologada nos autos principais, em 12.03.2018.
O Ministério Público sustentou a incompetência absoluta deste tribunal conforme promoção de fls. 43.
Notificada para se pronunciar sobre a competência dos tribunais portugueses, a requerente a fls. 46, sustenta a injustiça da situação, por não dispor de “meios, posses ou sequer contactos na Alemanha ou conhecimentos de língua alemã” para acionar a justiça daquele país.
Apreciando.
Em causa nos autos está alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais da C… e do D…, em matéria de alimentos a cargo da progenitora não residente, que pretende seja dada “sem efeito tal obrigação”.
Ora, como dito, as crianças são residentes na Alemanha, desde (muito) antes da propositura da acção.
Assim, à data da instauração da presente acção, e já antes, os menores e o seu guardião tinham e têm residência habitual e permanente fora do território nacional, o que, mais uma vez, faz chamar à colação a o Regulamento (CE) nº 2201/2003.
Nos termos do disposto no artigo 8º do dito Regulamento, os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
O que vale por dizer que, no espaço da União Europeia, o elemento definidor/atribuidor da competência do tribunal para o conhecimento da matéria que respeite a responsabilidade parental é o da residência da criança, elemento propositadamente eleito em função “do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade” – ponto 12 do preâmbulo.
Estas regras sobrepõem-se às normas do direito ordinário português – artigo 8º da Constituição da República Portuguesa.
O que vale por dizer que, a semelhança do critério do artigo 9º do RGPTC, também por força deste instrumento internacional, o elemento definidor/atribuidor da competência do tribunal para o conhecimento da matéria que respeite a responsabilidade parental é o da residência da criança, elemento seguramente eleito em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade, necessário para uma decisão justa, na certeza de que a justiça de que se fala é para a criança, não necessariamente coincidente com os interesses ou propósitos dos progenitores.
De regresso ao caso dos autos, à semelhança do que já decidimos no apenso A, temos que as crianças residem na Alemanha, perante cujos tribunais deve correr qualquer acção por via da qual se pretenda definir, regular ou alterar o exercício das responsabilidades parentais quanto às mesmas.
Excepcionaria esta regra o facto de a competência do tribunal português ter “sido aceite explicitamente ou de qualquer outra forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo é instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança” – artigo 12º, 3, b) do cit. Regulamento, com destaque nosso.
Ora, aquando da instauração do processo neste tribunal, a requerente não demonstrou (sequer alegou) o acordo do requerido quanto à atribuição da competência a este tribunal, menos ainda de que a tramitação destes autos em estado que não o da residência habitual dos menores fosse no superior interesse das crianças (e não apenas no interesse/conveniência da requerente).
Somos assim a concluir, como o Ministério Público, que os tribunais portugueses são absolutamente incompetentes para o conhecimento pretendido – artigos 62º e 96º do Código de Processo Civil.
Em conformidade, nos termos dos artigos 576º, nº 2, 577º, alínea a), 578º, 97º, nº 1, e 99º nº1, todos do CPC, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta deste Juízo de Família e Menores de Vila do Conde e, consequentemente, determino a absolvição da instância do requerido.
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2. Inconformada com esta decisão, veio a progenitora interpor recurso de apelação, no âmbito do qual ofereceu alegações e aduziu, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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3. O Ministério Público (junto do Tribunal de 1ª instância) ofereceu contra-alegações, nas quais ofereceu as seguintes
CONCLUSÕES
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO do RECURSO.
Como resulta das conclusões do recurso – que, como é pacífico, delimitam, salvo matéria de conhecimento oficioso, o objecto do recurso e da actividade jurisdicional do tribunal ad quem – a questão a decidir contende com a incompetência internacional do tribunal recorrido e, de modo essencial, consiste em saber se o Tribunal de 1ª instância (Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde) é competente para decidir do presente litígio, ou, ao invés, se essa competência internacional radica nos tribunais alemães.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
Os factos relevantes à decisão e conforme resulta dos autos são os seguintes:
- B… e E… são os progenitores dos menores C… e D…, nascidos, respectivamente, a 8.01.2009 e 23.01.2014.
- Os menores, no âmbito de acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais que correu seus termos pelo Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde, foram, por acordo, homologado por sentença transitada em julgado, confiados à guarda do seu pai, o aludido E….
- Ao abrigo desse acordo, os menores passaram, pelo menos, desde 12.03.2018, a residir com o seu pai, na Alemanha, onde vivem actualmente.
- A progenitora B… reside na Póvoa do Varzim.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Como resulta do despacho recorrido e dos termos do recurso, o Tribunal de 1ª instância, em função do previsto no Regulamento CE n.º 2201/2003, de 17.11., julgou-se internacionalmente incompetente para decidir da alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais deduzida pela ora Recorrente, estribando-se, no essencial, no facto de, à data da instauração do aludido processo, os menores terem residência habitual na Alemanha (junto de seu pai).
Contra este sentido decisório rebela-se a Recorrente que, por seu turno, sustenta que estão reunidas as condições para o Tribunal português ora em causa se considerar competente (como fez no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais onde foi obtido o acordo que ora se pretende alterar), sendo certo, ademais, que não tem condições para instaurar e fazer prosseguir na Alemanha processo para os fins ora em causa, pois que não dispõe de condições económicas para tanto, nem domina a respectiva língua.
Vejamos.
A propósito da questão da competência internacional dos tribunais portugueses para dirimirem determinada acção, como bem se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.04.2010 [1], justifica-se que a mesma seja trazida à discussão quando a causa, através de qualquer um dos seus elementos, tenha conexão com outra ordem jurídica, além da portuguesa, ou, melhor, quando determinada situação, apesar de possuir, na perspectiva do ordenamento jurídico português, uma relação com uma ou mais ordens jurídicas estrangeiras, apresenta também uma conexão relevante com a ordem jurídica portuguesa, sendo que é aos tribunais portugueses que cabe aferir da sua própria competência internacional, no confronto com os tribunais de outras ordens jurídicas, de acordo com as regras de competência internacional vigentes no ordenamento jurídico português.
Neste sentido, como refere A. Varela [2], “A competência internacional designa a fracção do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros, para julgar as acções que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras. Trata-se, no fundo, de definir a jurisdição dos diferentes níveis de tribunais dentro dos limites territoriais de cada Estado.”
Dito isto, importa, ainda, referir que é em face do pedido formulado pelo autor e em função dos seus fundamentos (causa de pedir) em que o mesmo se apoia, ou seja, em função da relação jurídica material controvertida, tal como delineada pelo autor na petição inicial, que cabe aferir e determinar a competência do tribunal para poder/dever conhecer de determinada acção.
Aqui chegados, no âmbito da lei do processo civil português, rege o artigo 59º, do CPC, que preceitua o seguinte:
Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.” (sublinhado nosso)
Resulta, assim, claro da disposição processual antes referida que ela própria declara que, no âmbito da aferição da competência internacional dos tribunais portugueses, importa salvaguardar ou acautelar a aplicação das normas constantes dos tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais ratificadas e aprovadas, que vinculem internacionalmente o Estado Português.
Trata-se, pois, em suma, do reconhecimento, a nível adjectivo, do primado do direito internacional convencional ao qual o Estado Português se encontra vinculado sobre o direito nacional, designadamente, no que ora releva, a prevalência do direito comunitário, em particular dos regulamentos comunitários, directamente aplicáveis na ordem jurídica portuguesa, sobre o direito nacional, em conformidade, aliás, com o princípio que emerge do artigo 8º, n.º 4, da nossa Constituição da República. [3]
Destarte, a aplicação das disposições legais do CPC que fixam e estabelecem os factores de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses, mostra-se negativamente delimitada pelo conteúdo das convenções internacionais regularmente ratificadas e/ou aprovadas, razão porque, caindo determinada situação no âmbito de aplicação de um concreto Regulamento Comunitário, as normas deste último prevalecem sobre as normas de direito interno (artigos 62º e 63º) que regulam a competência internacional.
Nestes termos, porque as regras internacionais, nomeadamente as que emergem dos Regulamentos Comunitários, se integram directamente no ordenamento jurídico do Estado Português e prevalecem sobre o direito interno, quando o Tribunal português é chamado a conhecer de uma causa que convoque tais regras, deve ignorar as regras de competência internacional da lei interna, aplicando antes as regras do Regulamento.
Em suma, como se refere no Acórdão desta Relação de 6.03.2018, a propósito de situação muito similar à dos presentes autos, “tratando-se de um Regulamento Comunitário (referia-se o acórdão ao Regulamento 2201/2003, ora em causa), o mesmo é directamente aplicável e prevalece sobre qualquer outra disposição de direito interno nacional. Haverá, pois, de procurar-se no seu dispositivo a solução para a questão que nos ocupa, apenas recorrendo ao direito nacional se ela ali não se encontrar.” [4]

No caso dos autos, está em causa, precisamente, aferir da competência internacional dos tribunais portugueses (no caso, o Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde) em face do regime instituído pelo aludido Regulamento CE n.º 2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003 (que revogou e substituiu o anterior Regulamento CE n.º 1347/2000), regime este que diz respeito à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
Com efeito, como se prevê no artigo 1º do dito Regulamento, o seu âmbito de aplicação abrange, além do mais, as matérias civis relativas (alínea b) à “Atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental”, sendo esta definida (artigo 2º, n.º 7) como “o conjunto dos direitos e obrigações conferidos a uma pessoa singular ou colectiva por decisão judicial, por atribuição de pleno direito ou por acordo em vigor relativo à pessoa ou aos bens de uma criança. O termo compreende, nomeadamente, o direito de guarda e o direito de visita.”
Dentro do citado âmbito de aplicação do Regulamento, ao nível da competência, o princípio geral fundado no critério da «residência habitual» da criança mostra-se vincado no ponto 12 dos considerandos que antecedem a parte dispositiva do Regulamento, no qual se consagra que “As regras da competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério da proximidade.”
Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro de residência habitual da criança, excepto em determinados casos de mudança da sua residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental.” (sublinhados nossos)
No seguimento deste princípio ou critério da proximidade, prevê o artigo 8º, da secção 2, sob o título Responsabilidade Parental, como regra geral em matéria de competência o seguinte:
1. Os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
2. O n.º 1 é aplicável sob reserva do disposto nos artigos 9, 10º e 12º.” (sublinhado nosso)
Destarte, por princípio, é competente em matéria de responsabilidade parental (no que se engloba a eventual alteração do acordado nesse âmbito pelos progenitores e salvo as hipóteses excluídas no n.º 3, do artigo 1º, que não relevam ao caso), o tribunal do Estado-Membro em que se situa a residência habitual da criança à data da instauração do processo, sendo este o factor ou critério primordial, segundo o Regulamento, à determinação da competência do tribunal, sem prejuízo das excepções (reservas) previstas nos artigos 9º, 10º e 12º.
O próprio regulamento não define, no entanto, o conceito de residência habitual, não obstante erigir esse factor como o elemento definidor da competência do tribunal no conjunto dos tribunais dos vários Estados-Membros com que o caso apresente alguma conexão relevante.
A propósito do conceito de “residência habitual” à luz do referido Regulamento (CE) 2201/2003, escreveu Maria Helena Brito [5] que, na ausência de uma definição (cfr. artigo 2º), o mesmo deve interpretar-se autonomamente, de acordo com a jurisprudência do TJCE (se bem que em domínios diferentes do da Convenção de Bruxelas de 1968), como o local onde o interessado fixou, com a vontade de lhe conferir caracter estável, o centro permanente ou habitual dos seus interesses, entendendo-se que, para efeitos de determinação dessa residência, é necessário ter em conta todos os elementos de facto dela constitutivos.”
Por outro lado, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.2016, antes citado, o próprio Tribunal de Justiça (Primeira Secção), por acórdão de 22.12.2010, pronunciando-se no âmbito de um pedido de reenvio prejudicial sobre a interpretação do conceito de residência habitual na acepção dos artigos 8º e 10º do Regulamento (CE) ora em causa, considerou que, não remetendo o regulamento expressamente para o direito interno dos Estados-Membros, a determinação daquele conceito há-de ser feita à luz das disposições e do objectivo do dito regulamento, nomeadamente do constante do seu considerando 12º (supra referido), daí ressaltando que “as regras da competência nele fixadas são definidas em função do superior interesse da criança, em particular do critério da proximidade.” [6]
E prosseguindo, escreveu-se também no mesmo aresto que “A fim de que este superior interesse da criança seja respeitado da melhor forma, o Tribunal de Justiça já declarou que o conceito de «residência habitual», na acepção do artigo 8º, n.º 1, do regulamento, corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar.” E mais adiante refere-se ainda que “para determinar a residência habitual de uma criança, além da presença física deste num Estado-Membro, outros factores suplementares devem indicar que essa presença não tem caracter temporário ou ocasional.”
Dir-se-á, como refere Tomé d’Almeida Ramião [7], que “por residência habitual do menor deve entender-se o lugar onde a criança reside habitualmente, isto é, o local onde se encontra organizada a sua vida, em termos de maior estabilidade e permanência, onde se desenvolve habitualmente a sua vida, onde está radicado”, o que há-de emergir de uma ponderação casuística dos factos aportados aos autos.
Em suma, se bem interpretamos a doutrina firmada pelo aludido acórdão do TJ, o apuramento da residência habitual de uma criança para efeitos do preceituado no artigo 8º, n.º 1, do Regulamento 2201/2003 supõe uma apreciação casuística, em função do apuramento de todos os seus elementos constitutivos, que demonstre a sua integração social e familiar naquele Estado-Membro, não sendo, pois, bastante, para esse efeito, a mera presença física da criança e/ou, ainda, a sua presença a título ocasional ou temporário num determinado Estado-Membro.

Nesta ordem de ideias, como factores suplementares tendentes à demonstração que a presença da criança em determinado Estado-Membro não é apenas temporária ou ocasional relevam a duração dessa permanência, a regularidade, as condições e as razões da permanência no território de um Estado-Membro, as razões da mudança, a nacionalidade da criança, a sua idade e bem assim os laços familiares e sociais que a criança tiver no referido Estado. [8]
Em suma, perante os contornos do conceito de residência habitual da criança acima definidos para efeitos de determinação da competência internacional relativamente ao processo de regulação ou alteração da regulação das responsabilidades parentais, será em função da factualidade concretamente revelada nos autos, das circunstâncias relevantes de cada caso, que se concluirá pela existência ou não de residência habitual da criança no Estado-Membro onde se encontra na data em que o respectivo processo ou processos foram iniciados.
No caso dos autos, os menores encontram-se a viver na Alemanha com o seu pai, integrando, pois, o agregado familiar deste último, naquele país, sendo certo que a deslocação dos menores não resultou de qualquer acto unilateral do progenitor a quem está confiada a sua guarda, antes resultou de acordo dos progenitores (ambos), homologado por sentença proferida nos autos de regulação de poder paternal.
Dir-se-á, pois que, estando os menores, por decisão judicial (homologatória de acordo dos progenitores), entregue a um deles, a residência dos menores é, logicamente, a residência desse progenitor, pois que é com este que os menores vivem com caracter de estabilidade e permanência, integrando e compondo o respectivo agregado familiar, ali tendo radicada a sua vida escolar e social.

Por outro lado, os menores encontram-se a viver com o seu pai naquele país (Alemanha) desde Março de 2018, ou seja, considerando a data de propositura do presente processo (há mais de um ano), não havendo notícia de que os mesmos tenham regressado (a não ser, eventualmente, em período de férias escolares) a Portugal e que aqui mantenham, pois, qualquer actividade escolar ou aqui se mostrem integrados, sem prejuízo da sua natural (e duradoura) ligação ao nosso país, em função da circunstância de a progenitora aqui residir.
Por outro lado, ainda, estando em causa menores com 10 anos à data da propositura do presente processo de alteração da regulação (a C…, pois que nasceu a 8.01.2009) e 5 anos (o D…, pois que nasceu a 23.01.2014), os mesmos estão, seguramente, em face do período de permanência na Alemanha (mais de um ano à data da propositura do processo), integrados no respectivo sistema escolar e social.
Dito de outra forma, mais objectiva, não emerge do conjunto de factos aportados aos autos que os menores se encontrem provisoria ou temporariamente na Alemanha, antes tudo revela o contrário, ou seja, que os menores ali têm a sua residência habitual há mais de um ano – tomando como referência a data da propositura do presente processo -, junto de seu pai, integrados no respectivo agregado familiar, inseridos no meio escolar próprio às suas idades e no meio social do seu pai.
Destarte, em nosso ver, à luz do preceituado no artigo 8º, n.º 1, do Regulamento (CE) n.º 2201/2003, a competência internacional para conhecer da alteração da regulação das responsabilidades parentais atinente aos menores C… e D… não radica nos tribunais portugueses, nomeadamente no Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde, mas antes na jurisdição Alemã, por os ditos menores, à data da propositura dos presentes autos, terem a sua residência habitual na Alemanha, não obstante tenham eles nacionalidade portuguesa, assim como os seus progenitores e, ainda, que a progenitora tenha residência em Portugal.
Na verdade, a despeito destes elementos de conexão, o critério para a determinação da competência internacional dos vários tribunais dos Estados-Membros não contende com os mesmos, mas antes, à luz do Regulamento já citado, com o referido critério de proximidade, isto é, da «residência habitual» das crianças, enquanto melhor forma de acautelar o seu superior interesse.
Nesta perspectiva, diga-se, que, em nosso ver, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, a qual, à luz do preceituado no artigo 8º, n.º 1, do Regulamento que vimos de citar, fez correcta aplicação do dito princípio da proximidade e em função da definição casuística da residência habitual da C… e do D…, afastando, pois, neste contexto, a competência internacional em favor da Justiça Alemã, país onde os menores tinham a residência habitual à data da instauração do presente processo.
É certo, diga-se, que o n.º 1 do artigo 8º está sujeito a derrogações ou reservas, como logo o n.º 2 do mesmo normativo não deixa de prever.
Sucede, no entanto, que, com o devido respeito, nenhuma das excepções ou reservas ali previstas é aplicável ao caso dos autos.
O artigo 9º não tem aplicação pois que, como se vê do seu n.º 1, o prolongamento de competência que ali se consigna a favor do Estado-Membro onde antes os menores tinham a sua residência habitual (ou seja, no caso em favor de Portugal e dos seus tribunais – pois que os menores, antes de irem residir com o seu pai para a Alemanha, residiam no nosso país) só é invocável “durante um período de três meses após a deslocação.
Ora, como já se viu e resulta demonstrado dos autos (sem impugnação), os menores encontram-se a residir com o seu pai na Alemanha, pelo menos, há um ano, tomando por referência a data de propositura dos presentes autos.
O artigo 10º é aplicável apenas em caso de rapto de crianças, o que também não se coloca, pois que, como já se salientou e resulta indiscutido, os menores foram para a Alemanha sob o manto da sentença proferida nos autos de regulação das responsabilidades parentais que homologou o acordo ali obtido pelos progenitores nesse sentido.
Esta excepção ou reserva não tem, pois, aqui qualquer cabimento.
A questão pode, no entanto, colocar-se no âmbito do artigo 12º do Regulamento e, segundo julgamos, a pretensão da Recorrente estriba-se na previsão do n.º 3 do dito normativo.
Vejamos.
O artigo 12º do Regulamento (“Extensão da competência”) estabelece o seguinte:
1. Os tribunais do Estado-Membro que, por força do artigo 3º, são competentes para decidir de um pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento, são competentes para decidir de qualquer questão relativa à responsabilidade parental relacionada com esse pedido quando:
a) Pelo menos um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança; e
b) A competência desses tribunais tenha sido aceite, expressamente ou de qualquer forma inequívoca pelos cônjuges ou pelos titulares da responsabilidade parental à data em que o processo é instaurado em tribunal, se seja exercida no superior interesse da criança.
2. (…)
3. Os tribunais de um Estado-Membro são igualmente competentes em matéria de responsabilidade parental em processos que não os referidos no n.º 1, quando:
a) A criança tenha uma ligação particular com esse Estado-Membro, em especial devido ao facto de um dos titulares da responsabilidade parental ter a sua residência habitual nesse Estado-Membro ou de a criança ser nacional desse Estado-Membro; e
b) A sua competência tenha sido aceite explicitamente ou de qualquer forma inequívoca por todas as partes no processo à data em que o processo instaurado em tribunal e seja exercida no superior interesse da criança.”
O preceito ora em causa versa sobre hipóteses de extensão de competência do tribunal de um Estado-Membro a processos para os quais, à partida, não seria, segundo o Regulamento, competente.
Relativamente à extensão de competência prevista no n.º 1 do dito artigo 12º a mesma é, em termos manifestos, de excluir, pois que ali se versa a hipótese de extensão de competência do tribunal que conheceu do pedido de divórcio, de separação ou de anulação do casamento para efeitos de proferimento de decisões atinentes à responsabilidade parental relacionada com esse pedido, desde que um dos cônjuges exerça a responsabilidade parental em relação à criança, exista acordo de ambos os cônjuges quanto à aceitação da competência do tribunal e, ainda, essa extensão de competência tenha em vista o superior interesse da criança.
Não estando, como não está, em causa a existência de qualquer processo com aquele fim (divórcio, separação ou anulação de casamento), a extensão de competência ali admitida em tal contexto não tem, obviamente, qualquer aplicação ao caso dos autos.
O n.º 3 do mesmo artigo 12º contempla, no entanto, uma outra hipótese de extensão de competência, pois que a competência do tribunal de um Estado-Membro, que tenha proferido decisão em outro processo de natureza distinta dos previstos no n.º 1 (v.g., atribuição de casa de morada de família), ver-se-á estendida ou prolongada a outro processo atinente a matéria de responsabilidade parental (v.g., regulação das responsabilidades parentais ou alteração da regulação antes decretada), para o qual, à partida, esse mesmo tribunal não disporia de tal competência. Trata-se, portanto, de um artificialismo jurídico que permitirá, em certas condições, fazer prolongar a competência do tribunal a um outro processo conexo com o primeiro, para o qual o mesmo não teria, por princípio e sem essa regra de extensão, competência.
Em suma, aplicando a hipótese ao caso dos autos, tendo o tribunal do Estado Português decidido sobre o processo de regulação das responsabilidades parentais (para o qual se julgou competente), à luz do citado n.º 3, do artigo 12º, do Regulamento, essa sua anterior competência estender-se-ia ao posterior processo de alteração de regulação das responsabilidades parentais, ainda que, à luz do Regulamento e por aplicação do artigo 8º, n.º 1, o mesmo não fosse já, em função da actual residência habitual das crianças (Alemanha), internacionalmente competente.
Julgamos que é, no fundo, esta a pretensão da Recorrente quando sustenta que, tendo o Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde decidido (mesmo que em outro contexto) da regulação das responsabilidades parentais relativa aos seus filhos menores, reconhecendo, pois, em termos inequívocos, a sua competência, essa competência deverá manter-se, não colhendo sentido, agora, na sua perspectiva, declinar essa competência.
Nesta sede, cabe, em primeiro lugar, dizer que o facto de o Tribunal em 1ª instância (em certo contexto, que não nos cumpre aqui dirimir, pois que o objecto do recurso é a decisão recorrida e não qualquer outra antes proferida e transitada em julgado) ter admitido e reconhecido a sua própria competência para decidir da regulação das responsabilidades parentais dos menores (em função dos elementos de que, naturalmente, à data dispunha, nomeadamente quanto à sua residência), não o inibe, nem o condiciona a alterar essa sua decisão em processo ulterior e autónomo em relação ao primeiro, desde que as circunstâncias relevantes para o efeito (de facto e/ou de direito) se tenham alterado.
Por outro lado, em segundo lugar, a extensão de competência prevista no citado n.º 3 do artigo 12º do Regulamento não é de aplicação irrestrita, antes exige a verificação cumulativa dos requisitos previstos nas alíneas a) e b).
Ora, se quanto aos elementos de conexão previstos na alínea a) não se nos suscitam dúvidas quanto à sua verificação (pois que os menores mantêm a sua nacionalidade portuguesa e a progenitora tem a sua residência habitual em Portugal), falham, em nosso ver, os pressupostos da alínea b) do citado n.º 3.
Com efeito, e como se deu devida nota no despacho ora recorrido, não só não há qualquer evidência que o progenitor/requerido tenha aceite de forma explícita ou inequívoca a competência do tribunal português para dirimir e decidir da alteração de regulação de responsabilidades parentais ora em causa (que constitui, apesar de ser deduzido por apenso, um processo autónomo em face da anterior regulação – cfr. artigo 42º, n.º 2 al. b), do RGPTC) – não se podendo, pois, neste contexto, dizer que a aceitação da competência para o processo de regulação importa a aceitação explícita ou inequívoca por parte do requerido da competência para o processo de alteração da regulação -, como, ainda, a própria Requerente e ora Recorrente não invoca um qualquer interesse dos menores a proteger ou salvaguardar com a dedução do presente processo perante os Tribunais portugueses.
Na verdade, o que a mesma invoca para justificar a competência internacional dos tribunais portugueses e, em particular, já na ordem interna, do Tribunal de Família e Menores de Vila do Conde é a circunstância de não ter possibilidades económicas para fazer seguir na Alemanha a presente acção de alteração da regulação de responsabilidades parentais – o que, com o devido respeito, terá que ser mitigado e acautelado por via da aplicação neste âmbito do regime do apoio judiciário legalmente previsto – vide, sobre essa matéria, a Directiva 2002/8/CE do Conselho de 27.01.2003 – e, ainda, a circunstância de não dominar a língua Alemã, o que lhe trará, naturalmente, dificuldades acrescidas no acompanhamento e conhecimento desse processo.
Ora, dir-se-á que, ainda que sejam, naturalmente, respeitáveis e dignas as dificuldades evidenciadas pela ora Recorrente, certo é que as mesmas não relevam no âmbito da definição e aplicação dos critérios previstos no citado Regulamento n.º 2201/2003 (que é directamente aplicável no nosso ordenamento jurídico e prevalece sobre o direito nacional, como antes se salientou) para efeitos de delimitação da competência internacional dos tribunais portugueses no confronto com os tribunais do Estado-Membro (Alemanha) onde os menores residiam habitualmente à data da instauração do presente processo de alteração das responsabilidades parentais.
Destarte, em nosso julgamento, à luz do antes exposto, sendo aplicável ao caso dos autos o Regulamento n.º 2201/2003, de 27.11. e, em particular, o disposto no seu artigo 8º, n.º 1, terá que improceder a apelação, sendo de confirmar o despacho recorrido, que dele fez adequada e legal aplicação ao caso sub judice.
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V. DECISÃO:
Pelo antes exposto, acordam os Juízes desta Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pela Recorrente B…, mantendo, em consequência, o despacho recorrido.
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Custas pela Recorrente, que ficou vencida (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Porto, 23.03.2020
(Processado em computador e assinado electronicamente pelos subscritores)
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] AC STJ de 8.04.2010, relator Cons. SANTOS BERNARDINO, disponível in www.dgsi.pt
[2] A. VARELA, M. BEZERRA, S. NORA, “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, pág. 198. Vide, no mesmo sentido, ainda, por todos, FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, “Direito Processual Civil”, I volume, 2ª edição, pág. 315.
[3] Vide sobre a matéria, com maiores desenvolvimentos, JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa Anotada”, 1º volume, UCE, 2ª edição, 2017, pág. 129 e segs., ou, ainda, ANA MARIA GUERRA MARTINS, “Manual de Direito da União Europeia”, Almedina, 2ª edição, 2018, pág. 517 e segs.
[4] AC RP de 6.03.2018, relator RUI MOREIRA; No mesmo sentido, quanto à aplicação directa do Regulamento Comunitários e sua prevalência sobre o direito interno, vide, ainda, por todos, AC RP de 21.02.2017, relator FERNANDO SAMÕES, AC RP de 6.12.2016, relator ESTELITA MENDONÇA, AC RP de 29.04.2013, relator MARIA JOSÉ SIMÕES, ou, ainda, AC STJ de 28.01.2016, relator FERNANDA ISABEL PEREIRA, todos in www.dgsi.pt.
[5] MARIA HELENA BRITO, “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor António Marques dos Santos”, I volume, Almedina, 2013, pág. 323, citado no AC STJ de 28.01.2016, já antes referido.
[6] AC TJ de 22.12.2010, acessível em hptt://curia.europa.eu/júris/document.jsf;jsessionid.
[7] TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO, “Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentado”, Quid Iuris, 2ª edição, 2017, pág. 45.
[8] Vide, neste sentido, além do citado AC STJ de 28.01.2016, ainda, AC STJ de 20.01.2009, relator GARCIA CALEJO, AC RC de 5.11.2019, relator ARLINDO OLIVEIRA, todos in www.dgsi.pt.