IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DA ORALIDADE
Sumário

I - Baseando-se o pedido de reapreciação da prova em elementos de características subjetivas - como a prova testemunhal e declarações de parte - o tribunal de 2.ª instância só deve alterar a decisão da matéria de facto relativamente a matéria incorporada em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos, que houve erro na 1.ª instância;
II - E só o deve fazer se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados. Na dúvida, e quando o pedido de reapreciação se baseie em elementos de características subjetivas (como a prova testemunhal ou declarações de parte) deve manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais sempre resultam elementos relevantes, e mesmo decisivos, na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação;
III - Dependendo a reapreciação da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto fixada e mantendo-se esta fica, necessariamente, prejudicado o conhecimento daquela (nº2, do artigo 608º, ex vi da parte final, do nº2, do art. 663º, e, ainda, do nº6, deste artigo, ambos do CPC).
IV - Em caso de incumprimento do ónus da prova, a ação é julgada contra quem impende tal ónus que, não o cumprindo, não pode deixar de ver a sua pretensão soçobrar.

Texto Integral

Apelação nº 22262/17.4T8PRT.P1
Processo do Juízo Central Cível do Porto – Juiz 1

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…
Recorridos: C… e marido D…

C… e marido, D…, propuseram ação, com processo comum, contra B…., pedindo:
a) que se reconheça o direito de propriedade dos Autores sobre prédio urbano sito na Rua … nºs … e …, Porto, correspondente a uma casa de quatro pavimentos com quintal;
b) que se declare que não existe, nem está constituído qualquer encargo ou direito de servidão, designadamente de passagem, em beneficio da habitação clandestina da R..
c) que se determine que a Ré se abstenha de utilizar o R/C do imóvel dos AA., o quintal e o logradouro do mesmo, para aceder à habitação clandestina que construiu nas traseiras do prédio sito nos números …/… da Rua …, Porto,
fundamentando a ação no seu direito de propriedade sobre o prédio acima referido e na abusiva utilização que a Ré vem fazendo do mesmo para aceder à sua mencionada habitação.
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A Ré ofereceu contestação, onde apresenta a sua defesa, invocando a existência de um direito seu, adquirido por usucapião, e deduz reconvenção pedindo a condenação dos Autores/Reconvindos a reconhecer a existência do seu direito de servidão de passagem sobre o prédio destes para acesso ao prédio da Ré/Reconvinte bem como a absterem-se de quaisquer atos que perturbem essa servidão.
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Procedeu-se à audiência de julgamento, com a observância das formalidades legais.
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Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente por provada e consequentemente:
a) Reconhece-se o direito de propriedade dos Autores sobre prédio urbano sito na Rua … nºs … e …, Porto, correspondente a uma casa de quatro pavimentos com quintal;
b) declara-se que não existe, nem está constituído qualquer encargo ou direito de servidão, designadamente de passagem, em beneficio da habitação clandestina da R., devendo a Ré abster-se de utilizar o R/C do imóvel dos AA., o quintal e o logradouro do mesmo, para aceder à habitação que construiu nas traseiras do prédio sito nos números …/… da Rua …, Porto.
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Mais se julga o pedido reconvencional improcedente por não provado, absolvendo-se os Autores/reconvindos do pedido.
Custas da acção e da reconvenção a cargo da Ré.
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A Ré apresentou recurso de apelação, pugnando por que seja revogada a decisão e substituída por outra que conceda provimento ao recurso, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Os Autores apresentaram contra alegações pugnando pela improcedência do recurso, com base nas seguintes CONCLUSÕES:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações da recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª – Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto: do alegado erro na apreciação da prova e, consequentemente, se é de alterar a decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo quanto aos pontos mencionados pela recorrente nas conclusões das suas alegações;
2ª - Da modificabilidade da fundamentação jurídica.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instância, com relevância, para a decisão (transcrição):
1º. Os AA. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano sito na Rua … nºs … e …, Porto, correspondente a uma casa de quatro pavimentos com quintal, por o terem adquirido em 5 de Abril de 2017 aos herdeiros de E….
2º. A parte da frente do imóvel dá para a Rua …, e a traseira do imóvel, dá para o logradouro do mesmo que se encontra murado, e para uns terrenos que foram ocupados para a plantação de hortas e para a construção da casa da R.
3º. O identificado prédio urbano, apesar de não estar constituído em propriedade horizontal, tem inúmeras “fracções” que são autónomas e independentes entre si, e que se encontram arrendadas desde pelo menos 1964.
4º. Em 6 de Março de 1964, os à data proprietários do imóvel arrendaram a F…, os primeiro, segundo, terceiro e quarto andares do prédio supra identificado, pelo prazo de 12 meses, renovável pelo mesmo período, “enquanto por qualquer das partes não houver despedida com antecipação legal”, mediante o pagamento de uma renda mensal de dois mil escudos.
5º. Os andares arrendados destinavam-se a habitação do arrendatário e de mais familiares, podendo o mesmo sublocar ou ceder por qualquer outra forma os direitos do arrendamento no todo ou em parte, com conhecimento por escrito do senhorio.
6º. A renda era paga no G…, à senhora D. H…, antiga funcionária do consultório do pai dos herdeiros de E…, que emitia os competentes recibos.
7º. Os “inquilinos” pagavam a renda por intermédio uns dos outros, e a senhora D. H… entregava-lhes os recibos correspondentes ao pagamento que efetuavam relativamente a cada uma das frações.
8º. No decurso do processo que culminou com a venda do imóvel, os anteriores proprietários realizaram deslocações ao edifício, e aperceberam-se que existiam “frações” desocupadas pelas quais eram pagas rendas, por sujeitos que nunca se encontravam no locado.
9º. E com vista a apurar quem efetivamente ocupava as “frações” do prédio da Rua …, solicitaram à D. H… que avisasse os “inquilinos” que as rendas teriam que ser pagas pelos próprios, e não por interposta pessoa, como vinha sendo feito até aí.
10º. E nessa altura confirmaram que algumas das “frações” foram sendo “ocupadas” após a morte do respetivo arrendatário, e como a renda era paga da forma que se explicou, os senhorios não tiveram conhecimento do óbito do respetivo arrendatário.
11º. A ora R. é filha do falecido arrendatário da fração sita no terceiro andar traseiras da referida habitação, que tinha tomado de subarrendamento ao primitivo arrendatário F….
12º. A anterior proprietária do imóvel dos AA., detetou que nas traseiras do mesmo, onde se encontra o logradouro, foi destruído parte do muro, de modo a permitir a passagem para uma habitação da R..
13º. No seguimento de participação realizada à Câmara Municipal … pela anterior proprietária, os AA. apuraram o seguinte:
a) A existência de uma edificação no terreno referido, cujo acesso é efetuado através do nº … da Rua …;
b) A edificação existente encontra-se a ser utilizada como habitação e está implantada no local assinalado na planta;
c) Que a construção identificada possui cerca de 103m2;
d) Que não existem elementos licenciadores para o local;
e) Que foi violado o artigo 4º nº 2 c) do RJUE;
f) Que a proprietária da habitação sita nas traseiras do prédio nº …/… da Rua … é a R., que indica como morada o nº … da Rua …, 3º traseiras, ….-… Porto.
14º. Em face desta informação, os AA. interpelaram a R. por via epistolar, questionando a razão pela qual esta indicava a fração destes como sendo a sua residência (Rua …, nº …, 3º traseiras, ….-… Porto), e comunicando-lhe que não autorizavam que utilizasse a propriedade destes para aceder à sua habitação.
15º. A esta interpelação responde a R. em 4 de Outubro de 2017, referindo que:
- é arrendatária do prédio, em concreto da habitação correspondente ao 3º andar traseiras;
- tal arrendamento foi celebrado com o pai, que faleceu há 13 anos;
- que à data do óbito comunicou o falecimento, mas que os senhorios mantiveram a emissão de recibos em nome do primitivo arrendatário;
- que relativamente ao imóvel, sito em prédio não descrito, o acesso ao mesmo sempre foi feito pelo nº …;
- há mais de 27 anos;
- com conhecimento dos proprietários, sem oposição de quem quer que seja, o que legitima a servidão de passagem .
16º. A habitação referida é visível do imóvel dos AA.
17º. A R. para aceder à habitação que construiu nas traseiras do prédio nº …/… da Rua …, tem que entrar no imóvel dos AA. pelo número …, percorrer o corredor do mesmo até ao pátio, subir ao logradouro, e sair do mesmo em direcção à sua habitação, pela parte do muro que foi posta abaixo.
18º. A Ré possuiu a chave da entrada do imóvel dos Autores;
19º. A Autora residiu na “fração” arrendada ao seu falecido pai.
20º. A Ré não possuiu caderneta predial da habitação, não possuiu certidão de teor predial da habitação e não possuiu licença de habitabilidade da habitação.
21º. A passagem dá-se pela “zonas comuns” do prédio.
22º. Foram efetuadas reparações no local, nomeadamente no telhado do mesmo, há cerca de dois anos.
23º. Tendo um dos senhorios (ou filho de um deles a Ré não sabe precisar em qualidade tinha) falado com a Ré quando precisou de aceder ao telhado por intermédio da “fracção” arrendada ao pai da Ré.
24º. Toda a zona nas traseiras do prédio dos AA. e prédios adjacentes é constituída por terrenos a mato, na sua maioria cobertos por densa vegetação.
25º. Esses prédios foram sendo ocupados pelos habitantes das habitações em redor.
26º. Nos quais plantaram hortas, plantações várias, árvores de frutos e casebres.
27º. Durante todo este tempo nunca apareceu quem quer que fosse a reclamar a propriedade desses prédios.
28º. A Ré, perante a falta de condições de habitabilidade do arrendado, construiu a sua habitação num prédio rústico então desocupado.
29º. O que fez sem oposição de quem quer que fosse.
30º. A Ré tem procurado legalizar, a todos os níveis, a sua habitação quer junto da Câmara Municipal …, quer junto da Repartição de Finanças, quer junto da Conservatória de Registo Predial.
31º. A Repartição de Finanças aceitou a inscrição do prédio em seu nome, conferindo-lhe um artigo matricial provisório.
32º. Encontra-se a aguardar artigo matricial definitivo.
33º.A Ré ocupa o prédio, edificando-o, e fazendo beneficiações, reparações e quejandas, há cerca de 20 anos.
34º. O acesso através do prédio dos AA é o único possível, ou pelo menos viável.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
1. A Ré desde que nasceu viveu no local arrendado até aos 19 anos, altura em que construiu a habitação sita em terreno contíguo.
2. Continuando contudo a ocupar igualmente o arrendado, até ao presente.
3. Os óbitos, quer do pai da Ré, quer de outros moradores, sempre foram comunicados à secretária que, em representação dos senhorios, recebia as rendas e emitia os correspondentes recibos.
4. A representante dos senhorios visitava periodicamente o local, falando com os inquilinos e inteirando-se do que se passava no local.
5. Nomeadamente quem residia, quem tinha falecido, etc.
6. Tendo a Ré conversado por diversas vezes com o mesmo, que se inteirou do falecimento do seu pai e da construção da habitação da Ré.
7. A Autora construiu a sua habitação à vista de todos.
8.Até ao presente a CMP nunca moveu qualquer acção ou procedimento administrativo ou outro contra a Ré.
9. Os funcionários da CMP sempre se mostraram muito surpreendidos com a situação, tendo incentivado a Ré a desenvolver esforços no sentido de legalizar a situação.
10. Procurou junto da Conservatória de Registo Predial apurar a quem teria pertencido o prédio em causa.
11. Tendo as buscas revelado não ter sido destacado de qualquer prédio limítrofe, nomeadamente do dos AA ou do prédio onde se situa a Repartição das Finanças.
12. Que são os mais próximos e situados no “enfiamento” do prédio da Ré.
13. Foi-lhe dito na CRP que seriam, todos aqueles prédios a mato, prédios omissos.
14. A Autor há cerca de 27 anos ocupa o prédio em causa.
15. O qual já era ocupado pelos seus antepossuidores.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Refira-se, desde já, que, pese embora a Ré Apelante, na conclusão XVII das alegações, mencione “Na sentença recorrida encontram-se erradamente interpretadas e aplicadas, salvo o devido respeito, os arts. … e 615º nº 1 c) do CPC”, certo é que nenhuma concreta nulidade vem apontada à sentença nas conclusões das alegações e sendo o recurso por elas balizado, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil –, nenhuma nulidade da sentença cabe apreciar.
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- Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Conclui a recorrente ter havido deficiente análise da prova, impondo as provas produzidas decisão diferente.
Impugnada a decisão da matéria de facto, cumpre, antes de mais, decidir se a apelante/impugnante observou os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, que vêm enunciados nos arts 639º e 640º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os artigos citados sem outra referência, os quais constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação e decidi-la, para, uma vez fixada a matéria de facto, apreciar da modificabilidade da fundamentação jurídica.
O nº1, do art. 639º, consagrando o ónus de alegar e formular conclusões, estabelece que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal.
E o art. 640º, consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (negrito nosso).
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:
a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sobpena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (negrito nosso).
Como resulta do referido preceito, e seguindo a lição de Abrantes Geraldes, quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente[1].
Ora, como resulta do corpo das alegações e das respetivas conclusões, a Recorrente, que impugna a decisão da matéria de facto, deu cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c), pois que faz referência aos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, indica os elementos probatórios que conduziriam à alteração daqueles pontos nos termos por ela propugnados, a decisão que, no seu entender, deveria sobre eles ter sido proferida e indica, ainda, as passagens da gravação em que funda o recurso (nº 2 al. a) do citado normativo).
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Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objeto de recurso, cabe observar que se não vai realizar novo julgamento nesta 2ª Instância, mas tão só reapreciar os concretos meios probatórios relativamente aos pontos de facto impugnados, como a lei impõe.
O art. 662º, nº1, ao estabelecer que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, que vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, deve, pois, conter-se dentro dos seguintes parâmetros:
a)- o Tribunal da Relação só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo Recorrente;
b)- sobre essa matéria de facto impugnada, o Tribunal da Relação tem que realizar um novo julgamento;
c)- nesse novo julgamento o Tribunal da Relação forma a sua convicção de uma forma autónoma, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não só os indicados pelas partes).
Dentro destas balizas, o Tribunal da Relação, assumindo-se como um verdadeiro Tribunal de Substituição, que é, está habilitado a proceder à reavaliação da matéria de facto especificamente impugnada pelo Recorrente, pelo que, neste âmbito, a sua atuação é praticamente idêntica à do Tribunal de 1ª Instância, apenas ficando aquém quanto a fatores de imediação e de oralidade.
Na verdade, este controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deitar por terra a livre apreciação da prova, feita pelo julgador em 1ª Instância, construída dialeticamente e na importante base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova[2] (consagrado no artigo 607.º, nº 5 do CPC) que está atribuído ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também, elementos que escapam à gravação vídeo ou áudio e, em grande medida, na valoração de um depoimento pesam elementos que só a imediação e a oralidade trazem.
Com efeito, no vigente sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo adquirido no processo. O que é essencial é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado[3].A lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4).
O princípio da livre apreciação de provas situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas de experiência aplicáveis[4]
E na reapreciação dos meios de prova, o Tribunal de segunda instância procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção - desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria - com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância. Impõe-se-lhe, assim, que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação (seja ela a testemunhal seja, também, a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser, também, fundamentada).
Ao Tribunal da Relação competirá apurar da razoabilidade da convicção formada pelo julgador, face aos elementos que lhe são facultados.
Porém, norteando-se pelos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e regendo-se o julgamento humano por padrões de probabilidade, nunca de certeza absoluta, o uso dos poderes de alteração da decisão sobre a matéria de facto, proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, pelo Tribunal da Relação deve restringir-se aos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[5], devendo ser usado, apenas, quando seja possível, com a necessária certeza e segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Assim, só deve ser efetuada alteração da matéria de facto pelo Tribunal da Relação quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam para direção diversa e impõem uma outra conclusão, que não aquela a que chegou o Tribunal de 1ª Instância.
Na apreciação dos depoimentos, no seu valor ou na sua credibilidade, é de ter presente que a apreciação dessa prova na Relação envolve “risco de valoração” de grau mais elevado que na primeira instância, em que há imediação, concentração e oralidade, permitindo contacto direto com as partes e as testemunhas, o que não acontece neste tribunal. E os depoimentos não são só palavras; a comunicação estabelece-se também por outras formas que permitem informação decisiva para a valoração da prova produzida e apreciada segundo as regras da experiência comum e que, no entanto, se trata de elementos que são intraduzíveis numa gravação.
Por estas razões, está em melhor situação o julgador de primeira instância para apreciar os depoimentos prestados uma vez que o foram perante si, pela possibilidade de apreensão de elementos que não transparecem na gravação dos depoimentos.
Em suma, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se formar a convicção segura da ocorrência de erro na apreciação dos factos impugnados.
E o julgamento da matéria de facto é o resultado da ponderação de toda a prova produzida. Cada elemento de prova tem de ser ponderado por si, mas, também, em relação/articulação com os demais. O depoimento de cada testemunha tem de ser conjugado com os das outras testemunhas e todos eles com os demais elementos de prova.
Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjetivas – como declarações de parte e prova testemunhal -, a respetiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e o tribunal de 2.ª instância só deve alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando, efetivamente, se convença, com base em elementos lógicos ou objetivos e com uma margem de segurança elevada, que houve erro na 1.ª instância.
Em caso de dúvida, deve, aquele Tribunal, manter o decidido em 1ª Instância, onde os princípios da imediação e oralidade assumem o seu máximo esplendor, dos quais podem resultar elementos decisivos na formação da convicção do julgador, que não passam para a gravação.
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Tendo presentes os mencionados princípios orientadores, vejamos se assiste razão à Apelante, nesta parte do recurso que tem por objeto a impugnação da matéria de facto nos termos por ela pretendidos.
Conclui a Ré/apelante que a sentença proferida nos autos julgou incorretamente os seguintes itens:
-factos dados como provados nos pontos 20º, 31º e 32º da matéria dada como provada, que devem ser considerados não provados,
-os factos dados como não provados nos pontos1, 7, 14 e 15, que devem ser considerados provados,
em ambos os casos “por isso resultar dos documentos dos autos, bem como dos depoimentos das testemunhas acima transcritos”.
Os Apelados sustentam, e bem, não dever ser alterada a decisão da matéria de facto, pois:
- quanto aos factos provados 20, 31 e 32 para não provados, nenhuma testemunha ouvida pelo Tribunal se pronunciou acerca desta matéria, sendo que o depoimento transcrito pela recorrente na motivação do recurso é o dela própria, que é parte, com evidente interesse direto no desfecho do processo, e, no que se refere ao facto 20º dado como provado, este resulta da ausência de prova documental que o infirme e a recorrente assumiu, na contestação, que a Repartição de Finanças aceitou a inscrição provisória do prédio, sendo que o Instituto dos Registos e Notariado fez constar que na base de dados do SIRP não foi encontrado nenhum prédio inscrito a favor de B…, e a Câmara Municipal … conclui que “as obras da habitação e respetivos anexos não estão legalizadas e não reúnem condições para se proceder à sua legalização”, pelo que é óbvio que o imóvel da recorrente não tem licença de habitabilidade.
- quanto aos factos não provados 1, 7, 14 e 15 para provados, na medida em que até 2017, a recorrente assumia que residia na Rua … nº …, 3º traseiras, …. - … Porto, conforme ofício da Camara Municipal … datado de 21.07.2017, bem como carta enviada pela mesma aos Senhorios em 4.10.2017, acrescendo que, a versão da Ré e o referido pelas suas testemunhas foi contrariada pelas testemunhas dos recorridos, que explicaram a razão por que a habitação referida nos autos não pode ter 27 anos, sendo que num mapa do ano de 2004 a casa da recorrida não aparece evidenciada, acrescendo, ainda, e no que em concreto diz respeito ao facto não provado 7, ser óbvio que a construção da casa, nas traseiras do prédio dos Autores, não foi à vista de todos, mas apenas da comunidade residente no prédio dos recorridos, que se protege, conforme referido em tribunal por uma das testemunhas da recorrente. A casa clandestina da recorrente não é visível da Rua …, nem da Rua ….
Após análise da posição das partes assumida nos articulados e de toda a prova produzida - declarações de parte da Ré, depoimentos prestados pelas testemunhas e documentos juntos aos autos - e visto o despacho que fundamentou a decisão da matéria de facto, ficou-nos a convicção, como acabado de referir, de que, in casu, não existe qualquer erro de julgamento, ao invés a matéria de facto foi bem decidida.
Motivou o Tribunal a quo a sua convicção relativamente aos referidos factos provados e não provados com base “na análise crítica e conjugada da globalidade da prova produzida nos autos, designadamente na análise dos documentos juntos ao processo, em conjugação com o depoimento das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, devidamente articulados entre si”, referindo que os factos dados como não provados o foram pois que “não foi feita qualquer prova” e quanto aos dados como provados que “Os documentos de fls. 58, 120 a 123, 130 a 133, espelham as diligencias levadas a cabo pela Ré para proceder à legalização da sua habitação, sobretudo a partir de 2017”, “A correspondência trocada entre as partes encontra-se a fls. 25, 26 33 v” acrescentando “A testemunha H… (antiga funcionária do consultório do pai dos herdeiros de E…) confirmou o recebimento das rendas no G… e que não conhecia a maioria dos inquilinos porque alguns inquilinos encarregavam-se de pagar as rendas dos outros e levar os recibos.
Só àcerca de dois anos, antes do prédio ser vendido, é que passou a entregar os recibos directamente aos inquilinos por imposição dos donos do prédio que só visitou muito ocasionalmente. Não conhece a aqui ré.
I… (filho da anterior proprietária) referiu só ter conhecido o prédio em causa em 2015 quando foram realizadas obras, nomeadamente ao nível do telhado.
Quando começaram a tratar da venda do imóvel é que se aperceberam quem eram os inquilinos, tendo dado ordens à D. H… para só passar recibos a quem tinha contratos. Apercebeu-se também que o andar arrendado ao pai da Ré estava devoluto e em muito mau estado e só nessa altura se apercebeu da casa da dona B… num terreno que não lhe pertencia e que ela utilizava o caminho mas ainda pensava que era uma inquilina.
Não faz ideia quem derrubou o muro e a casa da D. B… não parece ter 20 anos.
J… (realizou obras no prédio) ficou com a ideia que I… não conhecia as pessoas que habitavam no prédio. Aliás pensavam que a D. B… vivia no prédio e não na casa lá no fundo que lhe pareceu uma construção com cerca de 15 anos. Existem outras pessoas que vivem nuns arrumos.
O andar do pai da D. B… parecia não estar habitado há muito tempo.
A testemunha K… referiu que não conhece outro caminho de acesso à habitação da Ré e que a B… vive naquela casa há cerca de 27 anos
L…, confirma que a B… vive naquela casa há cerca de 26 anos e a mesma sofreu remodelações recentes. Referiu que a D. H…. foi ao prédio uma vez visitar uma senhora doente. Desconhece qualquer oposição à passagem da ré para a sua habitação.
M… (companheiro da Ré) referiu que a casa já existe há cerca de 25 anos mas só a 3 ano começaram o processo de legalização. Não sabe a que titulo a B… ou o pai ocuparam o terreno onde a casa foi construída.
N… (inquilina que reside numa habitação construída em terrenos nas traseiras do prédio dos Autores) explicou como os inquilinos foram ocupando com construções, jardins e hortas os terrenos que existiam nas traseiras do prédio, o desinteresse dos senhorios (embora reconheça que um filho dos senhorios se deslocou ao locado e realizou algumas obras) e a utilização do caminho pela Ré.
Do conjunto destes depoimentos conjugados com as fotografias, nomeadamente a de fls. 105, pode extrair-se que a habitação da Ré existe há cerca de vinte anos, apesar de ela afirmar que habitava com o Pai quando este faleceu em carta dirigida aos senhorios e que todos os factos (derrube do muro, construções, hortas) se passaram com desconhecimento dos senhorios e perante a sua indiferença ou desinteresse pelo locado”.
Os referidos factos provados têm a seguinte redação:
20º. A Ré não possuiu caderneta predial da habitação, não possuiu certidão de teor predial da habitação e não possuiu licença de habitabilidade da habitação.
31º. A Repartição de Finanças aceitou a inscrição do prédio em seu nome, conferindo-lhe um artigo matricial provisório.
32º. Encontra-se a aguardar artigo matricial definitivo.
E, na verdade, quanto à matéria impugnada tida como provada, importa referir que os factos impugnados dados como provados nos pontos 20, 31e 32 foram considerados provados com base na posição das partes assumida nos articulados e nas declarações de parte da Ré, conjugadas com os documentos juntos aos autos, sendo que não foi apresentada a caderneta predial nem a licença de habitabilidade, que inexiste, não estando, ainda, legalizada a casa, como bem reconhece a Ré, pelo que não cabe a este Tribunal alterar a decisão da matéria de facto, que, fundamentadamente e bem, considerou os referidos factos provados.
Os factos não provados impugnados têm a seguinte redação:
1. A Ré desde que nasceu viveu no local arrendado até aos 19 anos, altura em que construiu a habitação sita em terreno contíguo.
7. A Autora construiu a sua habitação à vista de todos.
14. A Autor há cerca de 27 anos ocupa o prédio em causa.
15. O qual já era ocupado pelos seus antepossuidores.
Na verdade, onde nos referidos pontos se fala em Autora/Autor, pretende referir-se, como não pode deixar de ser face ao que dos autos consta, Ré reconvinte, lapso que aqui e desde já se corrige.
E cada elemento de prova de livre apreciação, designadamente depoimentos de testemunhas e declarações de parte, não podem ser considerados de modo estanque e individualizado. Há que proceder a uma análise crítica, conjunta e conjugada dos aludidos elementos probatórios, para que se forme uma convicção coerente e segura. Fazendo essa análise crítica, conjunta e conjugada de toda a prova produzida, e com base nas regras de experiência comum, não pode este Tribunal, com segurança, divergir do juízo probatório efetuado, e bem, pelo Tribunal a quo.
Na verdade, a sentença deixou claro que não foi produzida prova credível e segura que permitisse resposta diversa. E não ficou este tribunal convencido de que a Ré, à vista de todos, aos 19 anos, construiu a habitação em causa e que venha a ocupar o dito prédio há cerca de 27anos e, também, não resultou provada ocupação anterior do mesmo.
Efetuou o Tribunal a quo análise crítica da prova e como bem referem os apelados não há elementos probatórios produzidos no processo que imponham decisão diversa – como exige o artigo 662.º, n.º 1, do mesmo diploma, para que o Tribunal da Relação possa alterar a decisão da matéria de facto.
A prova produzida orienta-se no sentido da verificação daqueles factos dados como provados, como bem decidiu o Tribunal a quo de acordo com a sua livre convicção e da falta de prova relativamente aos dados como não provados, sendo certo que a casa da Ré se encontra oculta nas traseiras do prédio dos Autores, não sendo visível da rua.
Com efeito, não foi feita prova segura, convincente e credível de a casa da Ré ter sido construída há 27 anos (com rigor, nem sequer que o tenha sido, sequer, há vinte), não tendo este Tribunal ficado convencido de que as testemunhas K…, padrinho da Ré, M…, companheiro daquela, e L…, amiga da mesma, desde a infância, tenham dito inteiramente a verdade quando falaram em datas, tendo, ao invés, ficado este Tribunal com a convicção de não poderem precisar, com rigor, a data da construção.
Também não ficou este Tribunal convencido, por falta de prova, que a casa tenha sido construída à vista de toda a gente.
O Tribunal Recorrido decidiu de uma forma acertada quando considerou a referida factualidade (a provada e a não provada), de acordo com a livre convicção que formou de toda a prova produzida.
Assim, tendo-se procedido a nova análise dos articulados e da prova, e ponderando, de uma forma conjunta e conjugada e com base em regras de experiência comum, os meios de prova produzidos, que não foram validamente contraditados por quaisquer outros meios de prova, pode este Tribunal concluir que o juízo fáctico efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, no que concerne a esta matéria de facto, se mostra conforme com a prova, de livre apreciação, produzida, (declarações de parte da Ré, depoimento das testemunhas e documentos juntos) não se vislumbrando qualquer razão para proceder à alteração do ali decidido, que se mantém, na íntegra.
Na verdade, e não obstante as críticas que são dirigidas pela Recorrente, não se vislumbra, à luz dos meios de prova invocados qualquer erro ao nível da apreciação ou valoração da prova produzida – sujeita à livre convicção do julgador –, à luz das regras da experiência, da lógica ou da ciência.
Ao invés, a convicção do julgador tem, a nosso ver, apoio nos ditos meios de prova produzidos, sendo, portanto, de manter a factualidade provada e, também, a não provada, tal como decidido pelo tribunal recorrido.
Não resultando os pretensos erros de julgamento, antes convicção livre e adequadamente formada pelo julgador (ante a prova prestada perante si e, por isso, com oralidade e imediação), tem de se concluir pela improcedência da apelação, nesta parte.
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3ª. Da modificabilidade da fundamentação jurídica
Insurge-se a Ré, não contra o reconhecimento do direito de propriedade dos Autores sobre prédio urbano sito na Rua … nºs … e …, Porto mas, tão só, contra a decisão dos dois outros pedidos dos Autores e do pedido reconvencional.
Evidente se mostra que servidão de passagem limita o direito de propriedade dos Autores, verificando-se, desde logo, este inerente, implícito e consequente prejuízo.
E bem considerou o Tribunal a quo, dependendo o pedido de alteração do decidido na sentença proferida nos autos, no que à interpretação e aplicação do direito respeita, do prévio sucesso da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo a apelante logrado impugnar, com sucesso, a matéria de facto, que assim se mantém inalterada, fica, necessariamente, prejudicado o seu conhecimento, o que aqui se declara, nos termos do nº2, do art. 608º, aplicável ex vi parte final, do nº2, do art. 663º e do nº 6, deste artigo.
Em todo o caso sempre se dirá que, bem decidiu o Tribunal a quo ao considerar não resultar o direito da Ré Reconvinte referindo que o facto de a Ré ter conservado a chave do pai, arrendatário de uma das fracções do prédio dos Autores após o seu falecimento, que segundo a mesma ocorreu há 13 anos, para poder usar essa chave que lhe permite o acesso ao rés-do-chão do prédio dos AA., e assim realizar a passagem para a sua casa indicia que falta à sua posse o “animus”, uma vez que a Ré nunca se comportou como verdadeira titular do direito correspondente ao acto material praticado sobre a coisa, socorrendo-se de uma chave de seu falecido pai para ter acesso à passagem que agora reclama. Acresce que apesar de ter a sua habitação a Ré não entregou ao senhorio a fracção locada pelo seu pai após a sua morte, e que legitimava a utilização que a Ré fazia da entrada pela no nº … da Rua … para aceder à sua habitação.
Deste modo, a Ré não logrou demonstrar a factualidade indispensável à aquisição, pela via invocada (usucapião), da servidão que alega existir, o que, nos termos anteriormente expostos, deve conduzir à procedência dos pedidos negatórios de tal servidão.
Verifica-se, pois, que a Ré não logrou provar os factos constitutivos do direito que pretende fazer valer, pelo que, sempre, a reconvenção tem de improceder, procedendo, pois, os referidos pedidos formulados na ação, como decidido. Na verdade, consagra, desde logo, o nº1, do artigo 342º, do C. Civil, que regula a questão do ónus da prova, que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. Não tendo a Ré/Reconvinte logrado provar os factos que alegou, constitutivos do direito de que se arroga, tem de sofrer as consequências desvantajosas de o não ter conseguido.
Assim, e sem necessidade de mais considerações, verifica-se que não tem a Ré o direito de que se arroga já que não logrou provar os factos em que fundamenta a reconvenção, nenhuma servidão de passagem resultando constituída por usucapião. E porque nenhuma alteração na matéria de facto foi introduzida, por absoluta falta de prova credível e convincente, é de manter a fundamentação de direito e o decidido, tendo a Ré de sofrer as consequências do incumprimento de tal ónus da prova - a improcedência da reconvenção e procedência dos pedidos formulados na ação e que constituem objeto do recurso, como bem se decidiu.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo violação de qualquer normativo invocado pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, pois que ficou vencida – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 30 de abril de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Edição, Almedina, págs 155-156
[2] Acórdãos RC de 3 de Outubro de 2000 e 3 de Junho de 2003, CJ, anos XXV, 4º, pág. 28 e XXVIII 3º, pág 26
[3] Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 348.
[4] Lebre de Freitas, Código de Processo Civil, vol II, pag.635.
[5] Acórdão da Relação do Porto de 19/9/2000, CJ, 2000, 4º, 186 e Apelação Processo nº 5453/06.3