EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

No caso de os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão terem sido fixados no montante de um salário mínimo e meio, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês.

Texto Integral

Processo nº2441/16.2T8AVR-D.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 2441/16.2T8AVR-D.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 07 de agosto de 2019, a Sra. Fiduciária nomeada neste processo de insolvência nº 2441/16.2T8AVR que corre termos no Juízo de Comércio de Aveiro J1, Comarca de Aveiro, em que é insolvente e devedora B… expôs, além do mais, o seguinte:
A fiduciaria vem requerer a Vª Exª que seja admitida nova apresentação do relatório do 1º e 2ºano de fiducio, uma vez que a insolvente após a entrega do 1º relatório em 11 de julho, veio juntar a documentação que agora se apresenta.
No 1º ano não houve qualquer informação
No 2º não há informação do mês de Natal
Há um valor a ceder de € 535,66
Não foi feito deposito desse valor
O 3º ano iniciou-se em dezembro de 2018 e vai terminar em nov de 2019”.
Em 09 de agosto de 2019, B… ofereceu o seguinte requerimento:
1.º
Juntar aos autos recibos de vencimento referentes ao ano de 2017.
2.º
Tal junção só agora foi efectuada, uma vez que só muito recentemente foi solicitada pela senhora Administradora Judicial, nomeada Fiduciária nos presentes autos.
3.º
Acresce que tal informação só se veio a justificar após o enceramento da liquidação, o que aconteceu já no presente ano, motivo pelo qual não o foi efectuado anteriormente.
4.º
Assim, e face ao exposto, requer-se que sejam admitidos os documentos que ora se juntam, sendo considerada a falta involuntária em que a Requerente se encontrava.
5.ª
Acresce que é referido no relatório a que alude o artigo 240.º do CIRE, que a Insolvente deveria ter entregue e não o fez o valor de €535,66.
6.º
Ora, salvo melhor entendimento que se não concebe, a Insolvente nada tem que entregar à senhora Fiduciária a título de rendimento que excede o mínimo sustento condigno doutamente fixado, porquanto o mesmo deve ser aferido aos 12 meses do ano, conforme já é plenamente aceite pela doutrina e jurisprudência.
7.º
Pelo que, se assim o fizermos, verifica-se que os rendimentos auferidos pela Insolvente não excederam o doutamente fixado como o mínimo condigno para a sua subsistência e do respectivo agregado familiar.
Termos em que, e nos melhores do direito e que V. Exa. doutamente suprirá,
Deverá o presente requerimento ser admitido, bem como os recibos de vencimento referentes ao ano de 2017 da Insolvente;
Deverá ser rectificado o relatório efectuado pela Senhora Fiduciária, nos termos supra requeridos, sendo considerada suprida a falta de entrega de documentação, bem como considerado que a insolvente nada tem a entregar à fidúcia”.
Em 30 de setembro de 2019, foi proferido despacho determinando a notificação da Sra. Administradora da Insolvência para, querendo, em 10 dias se pronunciar sobre o requerimento da insolvente que precede.
Em 14 de outubro de 2019, a Sra. Administradora da Insolvência ofereceu o seguinte requerimento:
A fiduciária vem responder á notificação dizendo o seguinte
- que atuará de acordo com o que for determinado no douto suprimento de Vª Exª venha a realizar, porem notificada para se pronunciar informa que concorda com a jurisprudência que dispõe:
“se os rendimentos são recebidos mensalmente, também a entrega tem de ser mensal, o que afasta qualquer espécie de cálculo anual para apuramento dos rendimentos objecto da cessão.
A lógica é, então, muito simples: todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, independentemente da sua proveniência ou designação, que excedam o judicialmente fixado como rendimento indisponível, devem ser objecto de cessão, e, quando recebidos pelos insolventes, por si imediatamente entregues ao fiduciário”. Vide acórdão TRC de 28/03/2017 Informa que junto de alguns tribunais de comércio os subsídios de ferias e natal não são reconduzidos ao conceito de imprescindibilidade para o sustento minimamente condigno e que a obrigação de entrega dos montantes disponíveis tem de ser mensal, afastando qualquer calculo anual para apuramento dos rendimentos a ceder e a fiduciária perfilha dessa opinião a qual verte no seu relatório, caso não haja determinação de sentença em contrario.
2 – Não se mostra praticamente viável, por ilegibilidade dos documentos juntos, o preenchimento do mapa de fiducio com os documentos ora juntos pelo Mandatário da Insolvente, Requer a reiteração desses documentos mas de modo legível para que possam ser vertidos no mapa
3 – Requer também que seja a insolvente notificada a apresentar digitalizado mensalmente os recibos, para que quando chegada a data de apresentação do relatório, possa o mapa estar preenchido com os dados do estado financeiro da insolvente”.
Em 01 de dezembro de 2019, foi proferido o seguinte despacho[1]:
Requerimento datado de 09.08.2019:
A insolvente, notificada dos relatórios de cessão, veio alegar que nada tem a entregar à Fiduciária, a título de rendimento disponível, porquanto o rendimento auferido dever ter sido aferido aos 12 meses do ano e não mensalmente.
Notificada, a Administradora da Insolvência veio defender que, sendo os rendimentos recebidos mensalmente, a entrega a exigir à insolvente deverá, de igual modo, ser mensal.
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Ora, por despacho proferido a 17.11.2016 foi determinado que «durante os 5 anos subsequentes ao trânsito (…), designado período de cessão, o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir considera-se cedido a fiduciário».
Mais se determinou que «o rendimento disponível do insolvente, objeto da cessão ora determinada, será integrado por todos os rendimentos que ao mesmo advenham a qualquer título, com exclusão do montante correspondente a uma vez e meia (1,5) o SMN (salário mínimo nacional) para cada ano fixado acrescido do necessário para, no cômputo total dos rendimentos do agregado familiar (insolvente e respetivo cônjuge) perfazer o correspondente a duas vezes e dois terços o SMN».
Conforme se decidiu no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 07.05.2018 [proferido no processo n.º 3728/13.1TBGDM.P1], a pretensão da insolvente, de que a verificação dos valores recebidos apenas seja efetuada anualmente, face ao disposto no art.239.º, n.º 2, e n.º 3, alínea b), sub alínea i), do CIRE, não tem qualquer fundamento legal.
É certo que as disposições conjugadas dos arts. 240.º, n.º 2, e 60.º, n.º 1, ambos do CIRE, impõem ao fiduciário o dever de prestar anualmente informação a cada credor e ao juiz sobre a situação da exoneração do passivo restante. E no art. 241.º, n.º 1, do CIRE, estabelece-se que o Fiduciário deve afetar os rendimentos recebidos a determinados pagamentos e que tal afetação é feita no final de cada ano de duração da cessão.
Não obstante, tais normativos dizem respeito apenas ao estatuto e às funções do Fiduciário, não dando resposta ao período de referência a ter em conta no apuramento do rendimento disponível.
A al. c) do n.º 4 do art. 239.º do CIRE dispõe expressamente que, durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.
Do exposto decorre que a obrigação, imposta ao devedor, de entregar imediatamente os rendimentos recebidos ao fiduciário, não tem correspondência com o dever de apresentação de relatório anual por parte do fiduciário previsto no art. 241.º do CIRE.
O n.º 3 do art. 239.º do CIRE traça aquilo que no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 28.03.2017 [proferido no processo n.º 178/10.5TBNZR.C1], se definiu como o perímetro do rendimento disponível.
Tal perímetro ou período de referência do rendimento disponível é o resultado da combinação do corpo do n.º 3 do referido normativo com as suas alíneas a) e b) e sub alíneas i), ii), iii).
Para o caso presente, interessa-nos o perímetro/período de referência que resulta da combinação do corpo do n.º 3, com a alínea b), sub alínea i), do citado preceito.
Desta combinação resulta o seguinte: dentro do perímetro do rendimento disponível cabem todos os rendimentos que advierem ao devedor, com exclusão «do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional».
A norma da alínea b), sub alínea i), concorre para a definição do rendimento disponível. E concorre pela “via da exclusão”, no sentido de que afasta do rendimento disponível certa categoria de rendimentos do devedor [como sucede por exemplo com a norma de exclusão da alínea a), do n.º 3]. O que ela exclui do rendimento disponível – qualquer que seja a sua proveniência – é uma parcela dos rendimentos que advenham ao devedor.
E fá-lo por respeito à dignidade dos devedores, enquanto pessoas humanas [cfr. art. 1.º da Constituição da República Portuguesa].
O contributo que tal norma dá para a definição do rendimento disponível não vai, no entanto, no sentido pretendido pela insolvente – de que o rendimento disponível deverá apurar-se apenas no fim de cada ano do período da cessão.
A cessão prevista no n.º 2 do art. 239.º do CIRE, trata-se de uma cessão de bens futuros ao fiduciário, que tem a sua fonte na lei, embora concretizada por decisão judicial[Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, pág. 789, Assunção Cristas, Exoneração do Passivo Restante, Themis, 2005, Edição Especial, págs. 176 e 177].
Assim, todos os rendimentos que advierem ao insolvente consideram-se cedidos, no momento da sua aquisição, ao fiduciário, com exceção – além de outros sem relevância para o caso– da parcela dos que são necessários à satisfação da exigência prevista na alínea b), sub alínea i), do n.º 3 do art. 239.º do CIRE.
Deste modo, sempre que há entradas de rendimentos no património do devedor[periódicas, esporádicas ou ocasionais], coloca-se a questão do apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário.
E a resposta a tal questão, quando o apuramento se fizer por força da combinação do corpo do n.º 3 com a alínea b), sub alínea i), do art. 239.º, não pode deixar de ter por referência o rendimento disponível de um determinado período. No caso, o período de referência é o de um mês.
Com efeito, apesar de a letra do art. 239.º, n.º 3, alínea b), sub alínea i), do CIRE, não dizer expressamente que, ao fixar o que seja razoavelmente necessário para assegurar o sustento minimamente digno do devedor e da sua família, o juiz tomará, por referência, o que é razoavelmente necessário no período de um mês, é o este o pensamento legislativo.
E, a propósito, diga-se, desde já, que os subsídios de férias e de Natal, sendo um complemento da retribuição com a finalidade de ajudar ao gozo de férias e auxiliar nas despesas, normalmente acrescidas na quadra natalícia, nem por isso devem ser considerados imprescindíveis à satisfação das necessidades básicas da insolvente e, nesse sentido, devem ser adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao Fiduciário.
Nem a obrigação de entregar imediatamente os rendimentos recebidos ao Fiduciário, nem a consideração dos valores recebidos a título de 13.º e 14.º mês como rendimento disponível violam o disposto no art. 70.º do C.C., nem os princípios constitucionais previstos nos arts. 1.º e 13.º da CRP.
Pelo exposto, embora não resulte expressamente do despacho inicial relativo à exoneração do passivo restante que o montante do rendimento disponível e indisponível ater por referência é mensal, é com este sentido que deve ser interpretada tal decisão.
Assim, nos meses em que não advierem rendimentos à devedora ou advierem rendimentos inferiores ao que foi considerado necessário para o sustento minimamente digno dele e da sua família, não há rendimento disponível, logo não há cessão de rendimentos. E, nesses meses, não nasce, a favor da devedora, o direito de compensar ou de deduzir, nos rendimentos futuros, a ausência de rendimentos ou rendimentos inferiores ao que foi estabelecido como o razoavelmente necessário para o seu sustento e da família.
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Com fundamento no exposto, vai indeferida a pretensão da insolvente no sentido de que o apuramento do seu rendimento disponível se faça no fim de cada ano do período de cessão.
Notifique, sendo a insolvente para, no prazo de 10 dias, proceder à entrega à Fiduciária do rendimento disponível pela mesma apurado e, bem assim, para proceder mensalmente à remessa dos recibos relativos à sua retribuição.
Em 20 de dezembro de 2019, inconformada com a decisão que precede, B… veio interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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Uma vez que o objeto do recurso é constituído exclusivamente por matéria de direito e que sobre a matéria existe já um lastro jurisprudencial não negligenciável, tendo o relator e o primeiro adjunto tomado posição sobre a questão decidenda na qualidade de primeiro e segundo adjunto no acórdão desta Relação de 07 de maio de 2018, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Augusto Carvalho, com o acordo dos restantes membros do coletivo, dispensam-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir de imediato.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a decidir é a da periodicidade da entrega do rendimento disponível ao fiduciário.
3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto necessários e pertinentes para o conhecimento do objeto do recurso constam do relatório desta decisão e resultam dos próprios autos, nesta parte com força probatória plena.
4. Fundamentos de direito
Da periodicidade da entrega do rendimento disponível ao fiduciário
A recorrente pugna pela revogação do despacho recorrido e pela sua substituição por decisão que determine que o apuramento do rendimento a ceder à Sra. Fiduciária seja efetuado com referência à média anual de cada ano de cessão do rendimento disponível.
Cumpre apreciar e decidir.
A questão que a recorrente coloca a este Tribunal não é jurisprudencialmente virgem, como damos nota no relatório deste acórdão.
De facto, sobre esta problemática recenseámos os seguintes acórdãos[2]:
- no sentido por que propugna a recorrente, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17 de janeiro de 2019, relatado pela Sra. Juíza Desembargadora Maria João Sousa e Faro no processo nº 344/16.0T8OLH.E1;
- no sentido do despacho sob censura, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28 de março de 2017, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos[3], no processo nº 178/10.5TBNZR.C1, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07 de maio de 2018, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Augusto Carvalho, no processo nº 3728/13.1TBGDM.P1 e o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de outubro de 2019, relatado de novo pelo Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos, no processo nº 2455/11.9TJCBR.C1.
Nos termos do disposto no artigo 239º, nº 2, do CIRE[4] o despacho inicial determina que no quinquénio subsequente ao encerramento do processo de insolvência, denominado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário.
Esta previsão legal tem sido interpretada no sentido de resultar da mesma que a entrega dos rendimentos auferidos pelo beneficiário da exoneração do passivo restante deve ser feita diretamente ao fiduciário[5], entregando este depois os rendimentos excluídos da cessão ao devedor. Esta leitura resulta reforçada pela alínea c) do nº 4 do artigo 239º do CIRE e da qual resulta de forma incisiva que o recebimento de rendimentos pelo devedor é uma situação excecional. No mesmo sentido aponta a necessidade do fiduciário notificar a cessão de rendimentos às entidades de que o devedor tenha direito a receber rendimentos, notificação que visa possibilitar a entrega direta dos rendimentos do devedor por parte de tais entidades ao fiduciário.
No caso dos autos, tendo os rendimentos necessários ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar excluídos da cessão sido fixados no montante de um salário mínimo e meio, o apuramento do que em cada momento integra o rendimento disponível é feito mensalmente, já que a unidade temporal pela qual se afere o salário mínimo nacional é o mês (veja-se o artigo 273º do Código do Trabalho).
A circunstância de ser anual a informação prestada pelo fiduciário a cada credor e ao juiz nos termos do disposto no nº 2, do artigo 240º do CIRE e de a afetação dos rendimentos nos termos do disposto no nº 1, do artigo 241º do CIRE ser feita no final de cada ano não significa que o apuramento do rendimento disponível apenas se processe no final de cada ano apurando a média auferida nesse período temporal.
Se assim fosse, sendo cumprida a lei no que respeita a entrega dos rendimentos diretamente ao fiduciário, só no final de cada ano o devedor receberia o rendimento disponível, o que, convenhamos, o colocaria em sérias dificuldades financeiras.
De facto, aquilo que se processa no final de cada ano é a afetação dos montantes recebidos até então e não a liquidação do rendimento disponível nesse momento, liquidação que pelo contrário se foi processando, mensalmente, pelo menos, quando como sucede no caso, o devedor é trabalhador por conta de outrem, sendo os seus rendimentos percebidos mensalmente.
Assim, a regra da anualidade que decorre do nº 2, do artigo 240º e do nº 1, do artigo 241º, ambos os artigos do CIRE, dirige-se ao fiduciário, tendo em vista a prestação de informações aos credores e ao juiz e a afetação dos rendimentos que ao longo do ano foram sendo por ele recebidos.
A fixação do rendimento disponível do devedor num certo montante, no caso em apreço, em montante superior ao efetivamente auferido em regra em cada mês, não constitui qualquer garantia de que em cada mês receberá rendimentos desse montante, mas apenas que os receberá todos os meses em que os seus rendimentos excederem o aludido montante porque, não sendo esse o caso, isto é, ficando os seus rendimentos mensais aquém do montante do rendimento indisponível judicialmente fixado, apenas terá direito a haver os montantes efetivamente auferidos em cada mês[6].
Na situação hipotética que a recorrente refere do pagamento em duodécimos dos subsídios de férias e de Natal a pessoa com rendimentos do trabalho iguais aos da recorrente, nenhum rendimento disponível haveria a afetar pelo fiduciário porque em cada período mensal o montante auferido pela devedora ficaria sempre aquém do rendimento excluído da cessão por decisão judicial e nunca atingiria uma vez e meia o salário mínimo nacional.
Ao contrário, com o pagamento por inteiro do subsídio de férias e do subsídio de Natal, em cada um dos meses em que isso ocorre, o rendimento auferido pela devedora ultrapassa o montante de uma vez e meia o salário mínimo nacional, o que implica a afetação dos rendimentos que ultrapassem esse montante, nos termos previstos no nº 1 do artigo 241º do CIRE.
Significa isto que a interpretação e aplicação das regras relativas à determinação do rendimento indisponível do devedor beneficiário de exoneração do passivo restante nos termos que precedem é violadora do princípio da dignidade humana (artigo 1º da Constituição da República Portuguesa) e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei (artigo 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa)?
Não o cremos.
A igualdade entre a situação da devedora dos autos e a pessoa colocada na situação hipotética configurada pela recorrente é apenas matemática, impendendo sobre esta última um esforço continuado de aforro em cada mês se quiser ter no período de férias ou no Natal os valores pagos em duodécimos a tal título, ao longo do ano.
Ao contrário, no caso da devedora, ao menos nos meses em que auferir o subsídio de férias e o subsídio de Natal, além do valor mensal do seu salário, terá logo disponível o valor de metade desse mesmo salário, sem ter que desenvolver um esforço continuado de aforro.
Esta diferença foi bem sentida recentemente entre nós quando por força das dificuldades financeiras atravessadas pelo nosso país se proveu no sentido dessas prestações serem pagas em duodécimos, aliviando as entidades pagadoras da necessidade de imobilização de montantes elevados de capital para fazer face aos pagamentos globais desses subsídios, distribuindo essa obrigação pelo ano e onerando os beneficiários desses subsídios com uma gestão cuidada dos valores a mais recebidos em cada mês, a fim de na altura própria deles poderem dispor para as finalidades para que foram previstos.
Deste modo, ao invés do que sustenta a recorrente, no caso concreto, entende-se que não resulta da interpretação e aplicação dos preceitos relativos à determinação dos rendimentos do trabalho excluídos da cessão do rendimento disponível na decisão recorrida e neste acórdão qualquer violação dos princípios da dignidade humana e da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.
Pelo exposto, improcede o recurso, sendo as custas do mesmo da responsabilidade da recorrente, pois que decaiu (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar por força do artigo 245º do CIRE.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 01 de dezembro de 2019.
Custas do recurso a cargo da recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar, ex vi artigo 245º do CIRE.
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O presente acórdão compõe-se de dez páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 30 de abril de 2020
Carlos Gil
Carlos Querido
Mendes Coelho
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[1] Com a referência 109231347 e notificado por expediente eletrónico elaborado em 02 de dezembro de 2019.
[2] Todos acessíveis na base de dados da DGSI.
[3] A identificação que consta na base de dados, relativamente a este acórdão é Emídio Francisco Santos.
[4] Acrónimo com que doravante se identificará o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
[5] Neste sentido vejam-se: A Exoneração do Passivo Restante, José Gonçalves Ferreira, Coimbra Editora 2013, página 88; Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Quid Juris 2015, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, páginas 860 e 861, anotação 7; Um Curso de Insolvência, Almedina 2015, Alexandre de Soveral Martins, página 544.
[6] Neste sentido vejam-se de forma incisiva os dois acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra antes citados e relatados pelo Sr. Juiz Desembargador Emídio Santos.