ÚNICA INSTÂNCIA
INSTRUÇÃO
DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE PRONÚNCIA
PROCESSO RESPEITANTE A MAGISTRADO
DIFAMAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
PLURALIDADE DE ACÇÕES
PLURALIDADE DE AÇÕES
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
CONSTITUCIONALIDADE
ATIPICIDADE DA CONDUTA
DENÚNCIA CALUNIOSA
Sumário


I - Existindo normas expressas, no âmbito do processo penal, que tratam da matéria da nulidade – da sentença e da decisão instrutória – inexiste qualquer lacuna ou omissão por parte do legislador pela que cumpra suprir através da aplicação subsidiária das normas específicas do CPC.
II - O art. 379.º, do CPP diz respeito apenas a sentenças e, por via da remissão constante do art. 425.º, n.º 4, do CPP, aos acórdãos proferidos em recurso. Nenhuma outra remissão foi feita pelo legislador que, com certeza, o teria feito se assim o entendesse. Mais, as sentenças e os acórdãos proferidos em recurso são actos processuais com estrutura e requisitos – constantes dos arts. 374.º a 377.º e 425.º, do CPP – bem diferentes dos exigidos para uma decisão instrutória, previstos nos arts. 307.º e 308.º, do CPP.
III - Estando em causa um despacho de pronúncia que alegadamente não conheceu de questão que devia ter apreciado, o eventual vício de que a decisão instrutória padeceria seria o da irregularidade (art. 123.º, do CPP), e não o da nulidade, como pretende o recorrente. Tendo este invocado a eventual irregularidade apenas em sede de recurso, a mesma sempre estaria sanada, por não ter sido tempestivamente invocada.
IV - Ainda que assim não se entendesse, sempre haveria que concluir pela inexistência de qualquer vício. Atenta a estrutura da decisão instrutória, as questões essenciais a decidir são a verificação da prova recolhida e o seu exame, por forma a aferir se, em termos indiciários, estão ou não verificados os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, o que foi efectivamente decidido. No mais, estarão em causa meros motivos ou argumentos invocados pelo recorrente o que não consubstancia qualquer omissão de pronúncia, como o STJ vem decidindo de forma reiterada.
V - Se o agente imputar, em diferentes ocasiões, o mesmo facto ou formular um mesmo juízo várias vezes, cometerá tantos crimes de difamação, quantas as vezes que imputou tal facto ou formulou tal juízo.
VI - Um entendimento jurídico e/ou uma interpretação jurídica eventualmente aplicáveis a uma determinado caso concreto não revestem qualquer autoridade de caso julgado. O que o recorrente qualifica como autoridade de caso julgado, mais não é do que a fundamentação jurídica das decisões invocadas, isto é, a interpretação e articulação de várias normas jurídicas em apreciação naqueles concretos casos. Não podem, pois, as mesmas revestir autoridade de caso julgado.
VII – Tendo as expressões em causa sido proferidas no âmbito da prestação de declarações de parte, sendo que quanto a estas o arguido (então autor) estava obrigado a falar com verdade, nos termos dos arts. 466.º, n.º 2 e 417.º, do CPC, poderá eventualmente estar em causa a al. c) do n.º 2 do art. 31.º do CP, mas não, como indicado pelo recorrente as als. b) e c) do art. 31.º do CP, uma vez que não está em causa o exercício de qualquer direito, tão-pouco qualquer direito de denúncia, mas apenas o cumprimento de um dever imposto por lei, a saber, o de falar com verdade.
VIII – Mas, a exclusão da ilicitude só funcionará se as declarações de parte prestadas se tiverem confinado ao objecto do processo, uma vez que só nestes casos se verifica o cumprimento do dever de responder com verdade. As declarações de parte, nos termos dos arts. 410.º, 466.º e 461.º, ex vi do n.º 2 do art. 466.º do CPC, são declarações sobre factos em que o declarante tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, relativamente aos temas da prova enunciados que naturalmente se hão-de conter dentro dos limites do objecto do processo, factualmente delimitado pelas partes, nos termos do art. 5.º, do CPC.
IX - As concretas declarações em causa extravasam os limites permitidos das declarações de parte – diga-se, aliás, que uma criteriosa condução da audiência impediria, até, que fossem produzidas – pelo que as mesmas não podem beneficiar da causa de exclusão da ilicitude prevista na al. c) do n.º 2 do art. 31.º do CP.
X - Ainda que assim não se entendesse, a imputação de factos desonrosos a terceiros responsabiliza quem a faz, que tem de estar preparado para suportar as afirmações por si produzidas, pelo que, uma vez invocado o dever de falar com verdade, importa averiguar objectivamente se existem nos autos indícios suficientes de que estamos na presença do cumprimento desse dever de falar com verdade. Não basta a alegação de que se estava em cumprimento de um dever, sem mais para que se encontre excluída a ilicitude, pois que o dever em causa, que constitui causa de exclusão da ilicitude, é o dever de falar com verdade e não apenas o deve de falar/depor.
XI - Não se desconhece a posição de certa jurisprudência dos tribunais da relação de que quando esteja em causa o dever de falar com verdade o que pode ser cometido é apenas o crime de falsidade de testemunho e nunca o crime de difamação. Tal posição não pode ser adoptada, sob pena de, a coberto de uma pretensa obrigação de falar com verdade, tudo se poder dizer. O dever em causa só se mostra cumprido com a prestação de depoimento/declarações de parte com verdade e não apenas com a prestação de tal depoimento/declarações.
XII – Mais, os bens jurídicos protegidos pelos crimes de falsidade de testemunho e de difamação são diversos – a realização ou administração da justiça no primeiro caso e a honra no segundo – pelo que a punição de tais condutas apenas com o crime de falsidade de testemunho, não protege a totalidade dos bens jurídicos em causa.
XIII – Inexistem, nos autos, indícios de que o arguido cumpriu o dever legal de depor com verdade, sendo que também as causas de exclusão da responsabilidade penal necessitam de ser provadas, não existindo qualquer presunção legal que determine, face à inexistência de prova, a procedência da causa de exclusão da responsabilidade penal concretamente alegada. Para que a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31.º, n.º 2, al. c), do CP pudesse proceder, sempre seria necessário que dos autos constassem, pelo menos, indícios no sentido de que o arguido prestou as declarações de arte com verdade, indícios esses que inexistem.
XIV - O sistema de causas de exclusão da ilicitude não pode operar “à la carte”: ou bem que se está perante o exercício de um direito – previsto na al. b) do n.º 2 do art. 31.º e de que é exemplo o direito de denunciar – ou bem que se está perante o cumprimento de um dever – previsto na al. c) do n.º 2 do art. 31.º, que é o casos dos autos -, ou bem que se está perante um interesse legítimo – previsto no n.º 2 do art. 180.º do CP, de que é exemplo o interesse de informar o público.
XV – Não basta a mera invocação da falta de consciência da ilicitude completamente desgarrada de qualquer suporte/invocação factual para que a mesma possa proceder, uma vez que a consciência da ilicitude tem suporte factual, não se tratando de pura matéria de Direito. No caos, da factualidade que foi dada como indiciada constam factos que sustentam a efectiva existência de consciência da ilicitude por parte do recorrente.
XVI – A falta de consciência da ilicitude pressupõe um erro do agente acerca da natureza ilícita da sua conduta, ou seja, pressupõe que o agente aja na convicção de que a sua conduta não é ilícita. A problemática da falta de consciência da ilicitude colocar-se-ia, por exemplo, se o recorrente desconhecesse que imputar factos desonrosos a outrem, dirigindo-se a terceiro, é crime, o que é difícil de sustentar estando em causa um magistrado judicial.
XVII – O cumprimento do dever de falar com verdade não pode constituir uma carta branca para que tudo se possa dizer (ainda que não seja verdade) sem que tal constitua (para além do eventual crime de falsidade de testemunho) um crime de difamação. Não se descortina que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade. O recorrente também não explica, nas suas conclusões, de que forma ocorre tal violação, nada adiantando acerca das razões pelas quais se entende haver inconstitucionalidade. Sendo que procurar encontrá-las redundaria numa operação de adivinhação que não compete a este tribunal.
XVIII – A decisão instrutória recorrida considerou que as declarações em causa no presente recurso (respeitantes em síntese, à pertença da assistente a um lobby negativo montado contra ao arguido, à realização de reunião para preparação de testemunhas e à autoria de uma carta anónima) eram susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente.
XIX - A independência e a imparcialidade são qualidades que um magistrado deve fazer por proteger, pelo que a afirmação de coisa diversas constitui uma ofensa à honra de qualquer magistrado. As afirmações supra indicadas são claramente um facto que belisca a imagem de independência e imparcialidade que um magistrado deve manter. Tais expressões não consubstanciam um mero juízo crítico, uma mera opinião negativa, sobre a personalidade da assistente, sendo idóneas a atingir o essencial do direito à honra e consideração desta, ultrapassando o patamar da simples expressão azeda ou agressiva.

Texto Integral

       Nos autos de inquérito com o NUIPC 9/15.0YGLSB, que correu termos nos Serviços do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, em que é arguido AA, Juiz Desembargador em exercício de funções no Tribunal da Relação do Porto, foi deduzida acusação particular e pedido de indemnização civil, pelo assistente BB, contra o mencionado arguido, imputando-lhe a prática de dois crimes de difamação, previstos e punidos pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.


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    No âmbito dos mesmos autos de inquérito, a assistente CC também deduziu acusação particular e pedido de indemnização civil, contra o arguido AA, imputando-lhe a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.

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      O Ministério Público não acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente CC por considerar que inexistia nos autos prova suficiente que permitisse sustentar a imputação ao arguido AA do crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.

      Já no que diz respeito à acusação particular deduzida pelo assistente BB contra o arguido AA, decidiu o Ministério Público acompanhar parcialmente a mesma, tendo considerado que alguns dos factos aí constantes integravam o crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.


***

       Nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, veio o arguido AA requerer a abertura de instrução, invocando a caducidade do direito de queixa exercido pelos assistentes CC e BB. Pugnou, ainda, pela atipicidade dos factos que lhe são imputados, e bem assim, para a hipótese de assim se não entender, defendeu que tais factos deverão ser tidos por justificados, ao abrigo do disposto no artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal.

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      O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido foi admitido, tendo sido declarada aberta a instrução e determinada a realização das diligências probatórias requeridas consideradas pertinentes.

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       Realizadas que foram as diligências probatórias admitidas, teve lugar o debate instrutório.

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      Em 07-12-2017 foi proferida decisão instrutória, constante da certidão de fls. 2 a 68, (fls. 2124 a 2190 no principal), que decidiu (em transcrição):

A - Não pronunciar o arguido AA pela prática dos factos que, tendo-lhe sido imputados na acusação deduzida pelo assistente BB, se reportam à falsificação da letra e assinatura do arguido e aos problemas familiares do assistente;

B - Não pronunciar o arguido AA pela prática dos factos que, tendo-lhe sido imputados na acusação deduzida pela assistente CC, dizem respeito ao incidente a que se refere o Processo n.º 168/12...., ocorrido entre a assistente e uma oficial de justiça do Tribunal de ..., às expressões “Vou-te cozer” e “O corpo no EP”, e a menção alusiva à diminuição do património da assistente;

C - Não pronunciar o arguido pela prática de três crimes de difamação, previstos e punidos pelos artigos 180.º, número 1, e 183.º, número 1, alínea b), do Código Penal;

D - Pronunciar, nos termos do disposto no artigo 308.º, número 1, do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular:

AA, [...], nascido a ... de 1955, [...], por os autos indiciarem suficientemente que:

1. No dia 15 de Janeiro de 2015, o arguido, ao prestar depoimento de parte no aludido processo 704/12.5..., o arguido AA, referindo-se à pessoa do assistente, afirmou o seguinte, no trecho respeitante a 01h07m00ss do respectivo depoimento:

“BB é um indivíduo altamente temerário, é um indivíduo que… cujo estado normal, muito especialmente depois das refeições, é embriagado … é um o homem que em ... mais foge aos impostos … e, de resto, tem processo-crime por causa disso.

2. E, na sessão que se seguiu a esta, ocorrida no dia 20 de Janeiro de 2015, o arguido prestou novamente depoimento e, a instâncias do mandatário da assistente CC, ali Ré, afirmou o seguinte, no trecho respeitante a 05m52ss:

Advogado da Ré - Olhe, nessa altura tinha boas relações com o Senhor Engenheiro BB?

Autor – Nessa altura tinha muito boas relações com o Senhor Engenheiro BB. Ainda era altura em que ele frequentava a minha casa e bebia lá uma garrafa de uísque por noite, em regra”.

3. Prosseguindo, o arguido imputou ao assistente o facto de ter reunido com a aqui assistente CC, com o objectivo de combinarem as perguntas, que a primeira haveria de lhe fazer, na diligência do dia 07/11/2011, a ter lugar no processo 2...9/11-PD, instaurado pelo CSM, bem como as respostas que havia de dar às mesmas perguntas.

4. Assim, aquando do depoimento prestado, nos aludidos autos 704/12.5..., no dia 15 de Janeiro de 2015 e no trecho respeitante aos 24m 29ss das suas declarações, o arguido AA afirmou:

“E então, junto do Doutor DD obtém a … a … o conhecimento do Senhor EE que a põe ao corrente, que a põe ao corrente da … da … dos indivíduos que estavam em contencioso comigo.

Quem são os indivíduos que estavam em contencioso comigo?

É o próprio, por razões que se prendiam com um processo-crime … eh … que estava… em que ele esteve … portanto, tinha o julgamento marcado para dia 6 de Outubro e no dia 6 de Outubro lhe perdoei – já agora, a título de parêntesis, quero dizer aqui isto, porque… só para evitar que me… esquecer-me disto, que é muito importante – e logo no dia 7, eu perdoo-lhe no dia 6 de Outubro e logo no dia 7 o Senhor EE, ao meu irmão ... e à empregada da casa, uma tal FF, diz isto, virou-se para ela e diz-lhe: “Olha, tu vais ter que me … que me prestar contas destes vinte e tal anos que andas a gerir aquilo que é meu e dos meus irmãos e quanto ao outro – o outro, referia-se a mim – ele vai saber o que é doce, porque já tem uma juiz à perna”. Isto no dia 7 de Outubro de 2011.

Vim posteriormente a saber, aliás, agora já o posso dizer, já o disse no outro dia no Tribunal da Relação de Guimarães, já o posso dizer porque, infelizmente, a senhora … na altura eu omiti, omiti a identificação da pessoa que me disse isto porque era funcionária do Senhor EE e eu não queria que fosse objecto de represálias, mas entretanto e infelizmente a senhora faleceu e eu agora já não tenho problemas em dizer que era a Dona JJ que ouviu … viu e ouviu estarem reunidos no armazém do Senhor EE antes do dia 6, antes do dia 6 de Outubro, não … não posso precisar datas … eh … reunidos, o Senhor EE, o GG … o … eh … BB, o BB, conhecido por ..., e o HH, com ela. E dizem-me também com o seu Excelentíssimo marido e Advogado. E que a Senhora Juiz é nessa … nessa reunião que lhes fazia uma série de perguntas e que lhes ensinava as respostas que havia de dar. Isto foi-nos transmitido pela Dona JJ, a mim e ao meu irmão ....

Portanto, estamos no dia 6 de Outubro, e no dia 7 de Outubro já o Senhor EE dizia “isto. O meu irmão ..., provavelmente para não me aborrecer, não me disse nada …”

5. Ao proferir as afirmações relativas ao estado normal de embriaguez do assistente, sobretudo após as refeições, à circunstância de ser em ... quem mais foge aos impostos, de se ter reunido com a assistente CC com o objectivo de combinarem as perguntas que a mesma lhe havia de fazer na diligência de 07.11.2011, a realizar no Processo n.º 2...9/11-PD, e bem assim ao tecer juízos de valor sobre a sua pessoa, agiu o arguido com perfeita consciência de que as referidas afirmações e os mencionados juízos de valor eram adequados a ofender a honra e a consideração do assistente, o que quis e conseguiu.

6. Constituindo objectivo subjacente às mesmas afirmações e mencionados juízos de valor emitidos pelo arguido acerca do assistente o de apoucar, humilhar e rebaixar a sua pessoa.

7. Visou ainda o arguido com a afirmação vertida a respeito da prestação fiscal do assistente afectar a sua consideração social e profissional.

8. O arguido – até por ser magistrado e estar colocado na Secção Criminal de um Tribunal Superior − sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido com vontade livre e consciente.

9. No âmbito do referido depoimento, prestado 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s, o arguido AA afirmou:

“Dizem-me alguns colegas, inclusive aqui da Relação de Lisboa, dizem-me: “Olha que a tua imagem pública nunca mais vai ser a mesma, por muito que demonstres as falsidades e as calúnias, nunca mais vai ser a mesma, porque a imagem já passou. Olha que se formou um lóbi negativo relativamente à tua pessoa e sabes o que é que se diz? Diz-se o seguinte: Aqueles que te conhecem continuam a considerar-te um juiz honesto, sensato, com capacidades, com … enfim … um juízo de reputação. Os outros, sabes o que dizem? És um juiz de quem a juíza e o irmão disseram coisas graves e dizem coisas graves”.

10. E, mais adiante (a partir de1h37m05s do mesmo trecho), acrescenta:

Estive graduado em oitavo lugar ex aequo com o sexto. Já na altura não entrei por causa destes processos, porque se andou … agora já sei isto, agora já sei … andou-se a pedir a … a … juízes conselheiros para não se jubilarem precisamente para eu não entrar … precisamente por causa destas … deste conjunto de … de … de denúncias caluniosas que a Doutora CC e advogado e da imagem pública que, efectivamente, se repercutiu com base naquilo que a Senhora Doutora CC…”.

11. E, prosseguindo no dito depoimento, (a partir de 1h37m48s), disse o arguido:

“Agora estou graduado em décimo nono, sôtor, e foram buscar à idoneidade nove pontos menos”.

12. Sendo que, a partir de 1h39m00s do referido registo das suas declarações, o arguido acrescentou, a instância do seu Advogado:

“Não tenho dúvidas, sôtor, que há. Mas há lóbis, sôtor … há um lóbi formado … o lóbi está formado e está montado

13. E prosseguindo:

“(…) sôtor, deixe-me dizer isto, eu andei muito tempo… e o sôtor sabe isso muito bem… andei muito tempo não preocupado com a história da Maçonaria … (…) Mas eu nunca estive preocupado com isso … confesso … acusar-me de fazer parte da Maçonaria, de fazer parte de outra coisa qualquer, quero lá saber que ela me acuse disso … é a opinião dela, não vale absolutamente nada. Só agora é que me apercebi, é que me dei conta de onde é que ela queria verdadeiramente chegar. Quando vejo agora este lóbi que se formou, a ponto de o Doutor II, que é o marido da Doutora ..., ter que intervir já no Alfa a perguntar “Mas vocês conhecem-no? – Ah, não. – Ah, é que, se calhar têm a opinião errada, olha que a minha mulher é adjunta dele e diz isto, isto e isto. – Ah, ainda bem que dizes isto, porque assim, a gente começa a, começa a …”. Tá a ver? Depois o lóbi está formado. E este lóbi é um lóbi mais poderoso do que aquilo que eu pensava.

E é um lóbi… aliás, têm aí um ponta-de-lança, que é o Doutor ..., que foi ele próprio que… e, aliás, confessado por ela… que lhe abriu as portas da imprensa e … e … e … e … que, efectivamente, que, efectivamente, conduziu àquilo que conduziu.

E este lóbi, este lóbi tem-me prejudicado bastante”.

14. Para, a partir de 1h41m05 das referidas declarações, referindo-se à assistente e à circunstância de, à data dos factos objecto do processo disciplinar n.º 269/2011-PD em que foi arguida, a mesma já integrar o dito “lóbi”, dizer:

Portanto, mas ela, como fazia parte deste lóbi – tá a ver? –, sentia-se protegida, pensava que gozava de impunidade”.

15. Assim, conforme se pode ouvir na passagem correspondente a 1h42m50s da sessão realizada em 20.01.2015, entre as 9h37m35s e as 12h16m02s:

Advogado da Ré – Isto tem alguma coisa a ver com o lóbi poderosíssimo ou poderoso de que Vossa Excelência fala?

Autor – Muito provavelmente, sôtor. Eu aí … eu isso sinto. Ainda não tenho os elementos todos em meu poder. Sinto. Mas sinto.

Advogado da Ré – Quem é que integra, então, esse lóbi?

Autor – Eh… olhe: o Doutor ..., a Doutora ... e algumas pessoas das relações deles, provavelmente, que eu ainda não … ainda não identifiquei … ainda não consegui chegar lá. Mas vou chegar lá, garanto que vou chegar lá.

Advogado da Ré – Há um lóbi, então, contra si?

Autor – Ai há, há, sôtor.

Advogado da Ré – O Conselho Superior da Magistratura não faz parte desse lóbi?

Autor – Eh… provavelmente alguns membros … eh … se calhar alguns membros, sôtor. Se calhar alguns membros. Eu não sei, eu não sei se a Doutora LL tem relacionamento com alguns dos membros do Conselho Superior da Magistratura, eu não sei. Estou a investigar. Quer dizer… no momento ainda não sei, mas estou a investigar. Garanto-lhe que estou a investigar”.

16. Não ignorando que a imputação que fazia à assistente a respeito da sua participação num “lóbi” anti maçonaria com vista a prejudicá-lo na graduação para o Supremo Tribunal de Justiça era objectivamente atentatória da sua honra e consideração, agiu o arguido com o propósito de desconsiderá-la e ofendê-la, enquanto pessoa e enquanto juiz, junto de terceiros, com consciência perfeita da ilicitude da sua conduta, o que quis e conseguiu.

17. Ainda no âmbito do aludido depoimento prestado na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., o arguido afirmou que a aqui assistente, o seu advogado e algumas das testemunhas que depuseram num processo disciplinar – o Processo n.º 2...9/2011 – teriam realizado uma reunião e combinado previamente entre si o conteúdo dos depoimentos que as últimas iriam prestar nesse processo.

18. Dizendo (a partir de 24m29s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

“E então, junto do Doutor DD obtém a … a … o conhecimento do Senhor EE que a põe ao corrente, que a põe ao corrente da … da … dos indivíduos que estavam em contencioso comigo.

Quem são os indivíduos que estavam em contencioso comigo?

É o próprio, por razões que se prendiam com um processo-crime … eh … que estava … em que ele esteve… portanto, tinha o julgamento marcado para dia 6 de Outubro e no dia 6 de Outubro lhe perdoei – já agora, a título de parêntesis, quero dizer aqui isto, porque … só para evitar que me… esquecer-me disto, que é muito importante – e logo no dia 7, eu perdoo-lhe no dia 6 de Outubro e logo no dia 7 o Senhor EE, ao meu irmão ... e à empregada da casa, uma tal FF, diz isto, virou-se para ela e diz-lhe: “Olha, tu vais ter que me … que me prestar contas destes vinte e tal anos que andas a gerir aquilo que é meu e dos meus irmãos e quanto ao outro – o outro, referia-se a mim – ele vai saber o que é doce, porque já tem uma juiz à perna”. Isto no dia 7 de Outubro de 2011.

Vim posteriormente a saber, aliás, agora já o posso dizer, já o disse no outro dia no Tribunal da Relação de ..., já o posso dizer porque, infelizmente, a senhora… na altura eu omiti, omiti a identificação da pessoa que me disse isto porque era funcionária do Senhor EE e eu não queria que fosse objecto de represálias, mas entretanto e infelizmente a senhora faleceu e eu agora já não tenho problemas em dizer que era a Dona JJ que ouviu… viu e ouviu estarem reunidos no armazém do Senhor EE antes do dia 6, antes do dia 6 de Outubro, não … não posso precisar datas … eh…reunidos, o Senhor EE, o GG … o… eh … BB, o BB, conhecido por ..., e o HH, com ela. E dizem-me também com o seu Excelentíssimo marido e Advogado. E que a Senhora Juiz é nessa … nessa reunião que lhes fazia uma série de perguntas e que lhes ensinava as respostas que havia de dar. Isto foi-nos transmitido pela Dona JJ, a mim e ao meu irmão ....

Portanto, estamos no dia 6 de Outubro, e no dia 7 de Outubro já o Senhor EE dizia “isto. O meu irmão ..., provavelmente para não me aborrecer, não me disse nada…”.

19. Ciente estando que, ao imputar à assistente a realização de reuniões prévias com testemunhas a fim de combinarem os respectivos depoimentos, a ofendia na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, não se coibiu de fazê-lo, bem sabendo que a sua conduta não era permitida e que, com ela, desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

20. Dizendo ainda (a partir de 1h33m13s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

“De resto, numa carta anónima para o Conselho, que o Conselho remeteu para o Supremo, que é da autoria da Doutora LL, digo já claramente, ela … é da autoria … eu vou demonstrar isso … oportunamente eu vou demonstrar, juntando as peças do puzzle (…) que, efectivamente, é da autoria dela e só pode ter sido ela a autora, embora com base, novamente, em informações do Senhor EE … o conluio está aqui permanente… é que agora dizem que au faço parte de uma rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Não sei como é que a minha conta bancária está tão pouco recheada … a minha e a dos meus filhos e a dos meus parentes está tão pouco recheada. Não entendo, confesso que não entendo.

Mas dizem mais. Dizem que violei uma funcionária judicial da qual tenho um filho. Nunca tinha, nunca tinha ouvido falar nisso. Agora é ex novo para mim, mas também é ex novo a outra, enfim… mas isso oportunamente a gente vai tratar dessa questão”.

21. Bem sabendo que ao imputar à assistente a autoria de uma carta anónima com o aludido conteúdo ofendia-a na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, ciente de que a sua conduta não era permitida e que com ela desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

22. O arguido – até por ser magistrado e estar colocado na Secção Criminal de um Tribunal Superior – sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido com vontade livre e consciente. 


*

     Pelo exposto, incorreu o arguido AA, como autor material, na prática de dois crimes de difamação, previstos e puníveis pelo disposto no artigo 180.º, número 1, do Código Penal, sendo um na pessoa do assistente BB, e outro na pessoa da assistente CC.”.


***

    Por requerimento de fls. 82 a 87, apresentado em 19-12-2017, a assistente CC requereu a reforma da decisão instrutória, no sentido de ser dada sem efeito a sua condenação em 2 UCS.

***

    Por decisão de fls. 93, proferida a 15-01-2018, ao abrigo do artigo 380.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, foi decidido rectificar a decisão instrutória, no sentido pretendido pela assistente CC.

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      Inconformado com a decisão de pronúncia, o arguido AA, interpôs recurso para este Supremo Tribunal, por requerimento entrado em juízo em 15-01-2018, conforme carimbo no mesmo aposto, a fls. 94, apresentando a motivação que consta de fls. 94 a 116 verso, que rematou com as seguintes conclusões (em transcrição integral, incluindo os realces):

A)-O aqui Recorrente foi pronunciado pela prática de um crime de difamação p. e p. pelo art.º 180º do C. Penal porque, no âmbito da acção ordinária n.º 704/12.5..., na qual era A, ao prestar declarações de parte, afirmou que:

(i) Na sequência do comportamento da assistente, enquanto fonte das notícias publicadas nos jornais, que era o objecto do processo, se formou um lóbi negativo relativamente à sua pessoa, que muito o tem prejudicado em termos profissionais; (ii) A assistente e algumas das testemunhas por si arroladas no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado na sequência de participação do aqui arguido se reuniram no armazém do Sr. EE , e que nessa reunião a assistente lhe fazia perguntas e lhes ensinava as respostas que haviam de dar, respostas essas que constam dos respectivos depoimentos;

(iii) Há fortes suspeitas de que a assistente, em conjunto com o Sr. EE , seja a autora da carta anónima remetida para o CSM em Agosto de 2013.

B)-O Douto despacho de pronúncia é nulo, nos termos dos art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no art.º 4º do CPP, porque não se pronunciou sobre as alegadas causas de justificação da conduta consagradas no art.º 31º do C. Penal: exercício de um direito e cumprimento de um dever.

C)-Por outro lado, está caduco o direito de queixa relativamente á invocada reunião no armazém do Sr. EE pois que, quando apresentou queixa pela prática desse hipotético crime, há muito havia decorrido o prazo legal de 6 meses a contar do conhecimento. Com efeito, em meados de Junho de 2014, no âmbito do processo 5/13.1..., que contra a assistente correu termos no Tribunal da Relação de Guimarães, o aqui Recorrente apresentou RAI, no qual alegou a existência dessa reunião. Foi lavrado despacho de não pronúncia e, interposto recurso para o STJ, que mandou pronunciar a ali arguida, por acórdão de 9 de Abril de 2015. A assistente já em meados 2014 sabia da alusão à reunião e por isso, quando em 24 de Abril de 205 apresentou a queixa-crime, fê-lo intempestivamente (art.º 115º, n.º 1 do C. Penal).

Sem conc[e]der,

D)-Os factos considerados ofensivos da honra e consideração devidos à assistente, foram proferidos pelo aqui Recorrente ao prestar declarações de parte no âmbito da acção ordinária n.º 704/12.5..., na qual era A, e na qual tinha de demonstrar que a assistente era a autora das notícias caluniosas publicadas pela imprensa relativas à sua pessoa.

E)-Porque se trata de prova muito difícil, por razões que se prendem com o segredo profissional dos jornalistas, o A, aqui Recorrente, teve de apelar a todos os factos indiciários que estivessem interrelacionados com a causa de pedir. Em consonância, limitou-se a afirmar que, na sequência do comportamento da assistente, enquanto fonte das notícias publicadas nos jornais, que era o objecto do processo, se formou um lóbi negativo relativamente à sua pessoa, que muito o tem prejudicado em termos profissionais; falou da reunião havida no armazém do Sr. EE; e ainda na suspeita da autoria da carta anónima remetida para o CSM em Agosto de 2013. Tudo para tentar demonstrar apenas e tão só que a assistente era a fonte das notícias publicadas nos jornais, sendo aqueles factos instrumentais do facto principal em investigação: a fonte das notícias.

F)-O aqui Recorrente estava obrigado a responder, com verdade, às perguntas que lhe foram formuladas – art.º 417º do CPC, ex no n.º 2 do art.º 466º do CPC e limitou-se a responder com verdade ao que lhe foi perguntado, fazendo o enquadramento dos factos, pelo que actuou, em cumprimento do dever legal de contribuir para a descoberta da verdade; e no exercício de um direito legítimo, o de obter a condenação da Ré naquele processo, a aqui assistente.

G)- Por isso, ainda que a conduta do aqui Recorrente fosse subsumível ao tipo legal de difamação sempre a mesma estaria justificada ao abrigo das alíneas b) e c) do art.º 31º do C. Penal.

H)- Como está, também, justificada ao abrigo do n.º 2 do art.º 180º do C. Penal na medida em que estava em causa um interesse legítimo do Recorrente e este limitou-se a responder com verdade aos factos que lhe foram perguntados.

Acresce que,

I)-A conduta do Recorrente sempre estaria justificada ao abrigo da doutrina constante dos acórdãos lavrados nos processos comum singular 595/11.3....G1 e 114/12.4 ..., do Tribunal da Relação de ..., nos quais era assistente o aqui Recorrente e arguido, no primeiro, o assistente nestes autos, BB, e, arguida no segundo a assistente Dr.ª CC. Em verdade, aí se decidiu, com obrigatoriedade de o Recorrente acatar a decisão, no primeiro caso (processo 595/11.3PBBGC.G1), que, estando o arguido obrigado a responder às perguntas com verdade, “No que concerne aos factos afirmados pelo Arguido, de duas uma: ou são «verdadeiros» ou são «falsos»; na primeira das hipóteses, nenhuma infracção foi perpetrada; na segunda, poderá estar em causa a prática do crime de falsidade de testemunho (artº 360º do CP), nunca o de difamação”.

J)-Trata-se da mesma questão jurídica (comete ou não o crime de difamação quem presta declarações em processo judicial, estando obrigado a responder com verdade às perguntas formuladas), que foi tratada de forma diametralmente oposta quando o aqui recorrente tinha a posição processual de assistente (não comete) e tem a posição de arguido (comete).

K)-O douto despacho recorrido violou a autoridade do caso julgado, tal como a defende o STJ.

L)-Porque assim, o Recorrente jamais podia ter cometido o crime de difamação, seja porque se limitou a relatar factos verdadeiros, seja porque, ainda que fossem falsos, apenas poderia ter cometido o crime de denúncia caluniosa e nunca o de difamação.

M)-Para quem assim não entenda, o arguido, que  leu e analisou os acórdãos em causa e, por isso, interiorizou a doutrina, até teria agido com falta de consciência da ilicitude na medida em que, como é óbvio, até pela profissão que exerce, tem de confiar no acerto das decisões judiciais, mesmo que delas discorde.

N)-A não se entender assim, tem de considerar inconstitucional o art.º 180º do C. Penal, por violação de preceitos constitucionais (art.ºs 2º e 20º) bem como do princípio da confiança decorrente do art.º 2º da CRP, quando interpretado no sentido de que comete tal crime quem, em declarações de parte, em que está obrigado a dizer a verdade, afirma que se criou um lóbi negativo relativamente à sua imagem e que teve lugar reunião para se combinar as perguntas e respostas que teriam lugar no âmbito da inquirição em processo disciplinar da aqui assistente, como lhe foi relatado por pessoa de sua confiança, ademais quando é fácil constar que as perguntas foram feitas de forma “cirúrgica”.

O)-E terá de se considerar ainda inconstitucional por violação do princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da CRP, inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais.

O LÓBI

P)-Como consta dos autos, em Novembro de 2011 foram publicados pela imprensa notícias caluniosas referentes ao aqui Recorrente. Na sequência foi instaurada a acção ordinária contra a assistente, na qual se alega que esta é a fonte de tais notícias.

Q)-A assistente, entre 2011 e 2015 apresentou 3 participações disciplinares contra o aqui Recorrente; e as suas testemunhas EE e MM apresentaram 2 e 1 participação disciplinar, respectivamente, foi junta ao processo de inquérito disciplinar uma carta anónima, a assistente vai na 4ª ou 5ª participação criminal que instaura contra o Recorrente, na graduação para o STJ, no XIII concurso, o Recorrente esteve graduado em 8º lugar ex-aequo com o 6º classificado; ficou graduado em 19º lugar ex aequo com o 18º, no XIV concurso de acesso ao STJ; e em 21º lugar no XV concurso de acesso ao STJ.

R)-A descida na graduação ocorreu sempre por baixa no perfil, tendo neste último concurso descido o perfil em 13 pontos e isto apesar de pontuar em mais 4 subcritérios, mas no que tange ao perfil: foi eleito Presidente da 1ª Secção Criminal; tem anotados com doutrina e jurisprudência todos os principais diplomas legais portugueses; proferiu Conferência na Universidade do Minho; e publicou na Revista Julgar Especial um artigo sobre a dogmática dos crimes negligentes.

S)-A descida ocorreu, mantendo-se, como é óbvio, todo o constante do currículo do XIII concurso de acesso ao STJ, sempre por retirada de pontos no perfil. É, pois, dado insofismável que o Recorrente foi prejudicado em termos profissionais, tendo sido vítima do comportamento da assistente e seus “amigos”.

T)-A influência da assitente .e das suas testemunhas na decisão do CSM, no que tange à graduação do aqui Recorrente para o STJ tem na sua génese as notícias caluniosas e as participações disciplinares e criminais. Por isso, continua o Recorrente a entender que se formou um lóbi (grupo de pressão) negativo, mesmo que inconsciente, com influência no CSM, quanto à sua pessoa, com efeitos prejudicais na carreira profissional do Recorrente.

A REUNIÃO NO ARMAZÉM DO SR. EE

U)-Em Novembro de 2011, no âmbito do processo disciplinar instaurado contra a assistente, foram inquiridas as 6 testemunhas que estavam em contencioso com o aqui Recorrente. Obtida certidão dos autos de inquirição, fácil foi o Recorrente constar que aquela fizera perguntas cirúrgicas às testemunhas, como indicado na motivação, que nada tinham que ver com o seu direito de defesa, mas se limitavam a tentar denegrir o assistente na honra e consideração que lhe são devidas, cujas respostas eram sempre prejudiciais ao aqui Recorrente. Comentou tal facto com o irmão ..., o qual lhe transmitiu que a D.ª JJ, esposa do Rabaçal, empregada de limpeza do Sr. EE, sua ex-funcionária e mãe de um rapaz que prestava serviços para o ..., o procurara e lhe dissera, pedindo sigilo absoluto, que estiveram reunidos no armazém do Sr. EE uma Senhora que dizia ser Juíza, o marido desta, o Sr. EE, o ... (aqui assistente BB), o MM (HH) e o Dr. DD. Acrescentou que ouvira a juíza fazer perguntas que tinham que ver com o aqui Recorrente e que falavam mal deste.

V)-Face ás perguntas cirúrgicas e às respostas “adequadas” não foi difícil ao Recorrente aceitar como verdadeira a reunião no armazém do Sr. EE.,ou, no mínimo, tinha o Recorrente sérias razões para acreditar na sua realização face á confiança que tem no irmão ... e à idoneidade da sua fonte de informação.

W)-Tal afirmação, era de grande utilidade para a causa de pedir na acção, contribuindo para demonstrar que a assistente era a fonte das notícias caluniosas,objectivo único pretendido pelo aqui Recorrente.

A CARTA ANÓNIMA

X) - Em Agosto de 2013, no mesmo ano em que a assistente e suas testemunhas MM e EE, remeteram ao CSM participações contra o aqui Recorrente, chegou ao órgão de tutela uma carta anónima pedindo que fosse aberto processo disciplinar. Apesar do anonimato, não foi difícil ao aqui Recorrente aperceber-se que os principais suspeitos eram a assistente e a sua testemunha EE na medida em que a carta continha factos, alguns distorcidos, outros com insinuações, que só eram do conhecimento dos dois suspeitos.

Y) -Apresentou queixa-crime contra incertos, indicando como suspeitos os referidos. Nada aditou, retirou ou alterou na carta anónima. E pediu ao MP que investigasse o crime. Fê-lo no exercício de direito legítimo decorrente dos art.ºs 2º e 20º da CRP, “o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional”, e o direito a um processo equitativo.

Z) -Enumerou 24 indícios concretizados, que deveriam ser a base da investigação da autoria.

AA) -Como bem refere o STJ (Ac do STJ de 21/4/2010, processo 1/09.3YGLSB.S2, in www.dgsi.pt), “o direito de denúncia prevalece sobre o direito à honra, visto que como garantia de estabilidade, da segurança e da paz social no Estado de direito deve assegurar-se ao cidadão a possibilidade quase irrestrita de denunciar factos que entende criminosos. «Quase irrestrita» por a limitação maior consistir em a denúncia não ser feita dolosamente (com a consciência da sua falsidade) e do teor dos seus termos, os quais devem limitar-se à narração dos factos, sem emissão de quaisquer juízos de valor ou lançamento de epítetos sobre o denunciado”.

AB) - Ou seja, segundo a melhor doutrina, ainda que as afirmações do Recorrente fossem difamatórias, sempre a sua conduta estaria justificada pelas razões invocadas pelo STJ.

AC) -Ainda que assim se não entenda, é inconstitucional o art.º 180º do C. Penal, por violação da letra e espírito dos art.º 2º e 20º da CRP, bem como de garantias, princípios e direitos constitucionais (como a garantia da segurança jurídica, o princípio da protecção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica, o princípio do processo equitativo e o direito à tutela judicial efectiva), quando interpretado, como no douto despacho recorrido, no sentido de que está verificado o tipo legal da difamação quando alguém apresenta queixa-crime contra incertos e indica pessoas concretas como suspeitas, com base em 24 indícios concretizados

AD) -Inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais.

A ATIPICIDADE DA CONDUTA

AE) -A conduta do Recorrente jamais pode ser subsumida ao crime de difamação p. e p. pelo art.º 180º do C. Penal, pois o bem jurídico protegido pelo tipo legal é a honra e consideração devidos a terceiro e a conduta do Recorrente é atípica, porque nenhum dos factos constantes do douto despacho de pronúncia é ofensivo da honra ou consideração que são devidas à assistente:

AF) -Por um lado, porque, ao afirmar que, na sequência de notícias caluniosas publicadas pela imprensa, se formou um lóbi que negativo relativo à pessoa do Recorrente, que muito o tem prejudicado, jamais tal afirmação importou ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, ou sequer pôs em causa as qualidades morais de alguém, designadamente da assistente;

AG) -Por outro lado, não há ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra a assistente, e não se põem em causa as qualidades morais desta, quando se faz referência a uma reunião, que na realidade existiu ou, no mínimo, há fundadas razões para o aqui Recorrente acreditar na sua existência, a qual teve lugar no armazém do Sr. EE, sabendo-se que nessa reunião foram feitas perguntas pela Senhora que era tratada por Juiz, e na qual se “falou mal” do aqui Recorrente;

AH) -Por outro lado, ainda, porque o Recorrente jamais ultrajou ou vilipendiou a assistente quando denunciou ao MP um crime de denúncia caluniosa, indicando como suspeitos duas pessoas, uma delas a assistente. E nem sequer pôs em causa as suas qualidades morais, que apenas podem ser postas em crise se vier a concluir-se que, na realidade, é a autora da aludida carta. Mas por esta razão e não na sequência da participação.

AI) -Ainda que assim não fosse, o certo é que o Recorrente, ao prestar declarações de parte, não actuou com intenção de ofender a assistente na honra e consideração que lhe são devidas; como não aceitou a realização do tipo legal como consequência necessária da sua conduta; e nem sequer previu como possível que pudesse ofender a assistente na honra e consideração que lhe são devidas, não podendo, por isso, conformar-se com o resultado.

AJ) -Ao invés, limitou-se a elencar factos que eram de grande relevância para demonstrar a causa de pedir invocada na acção ordinária em que prestava declarações de parte.

AK) -Não agiu, por isso, o Recorrente dolosamente.

AL) -Na realidade, repete-se, o Recorrente apenas quis defender os seus legítimos direitos [demonstração da causa de pedir na acção, seja, que a assistente  era a fonte de notícias caluniosas publicadas na imprensa, o que, repete-se mais uma vez, só poderia obter êxito com base em factos indirectos (os jornalistas não revelam as fontes, como é notório)], razão pela qual se trouxe à colação a questão do lóbi e a reunião no armazém do Sr. EE e consequentemente, também por esta razão a conduta do Recorrente não é subsumível ao tipo legal.”

Termina pedindo:

“I – Deve ser declarado nulo o douto despacho de pronúncia por omissão de pronúncia;

II – Deve ser declarado caduco o direito de queixa relativa à reunião realizada no armazém do Sr. EE;

Sem conceder,

III – Deve ser revogado o douto despacho de pronúncia e, na sequência, mandado lavrar despacho de não pronúncia.

IV – Deve ser declarado inconstitucional o art.º 180º do C. Penal na interpretação normativa feita no douto despacho de pronúncia

Foram violados os seguintes preceitos legais:

(i)- Art.ºs 31º, 115º e 180º do C. Penal;(ii)- Art.ºs 417º, 466º, 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no art.º 4º do CPP;(iii)- Art.ºs 131º e 244º do CPP;(iv)- Art.º 2º, 13º e 20º da CRP.

E foi, ainda, violado o princípio da certeza e da confiança das pessoas nas instituições, decorrente do art.º 2º da CRP.

Todos os preceitos devem ser interpretados em consonância com o expendido na motivação.”


***

   Por despacho de fls. 120 foi admitido o recurso interposto pelo arguido para este Supremo Tribunal de Justiça, a subir imediatamente, em separado e com efeito suspensivo.

***

   A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal apresentou a resposta ao recurso apresentado, constante de fls. 128 e 129, que se transcreve:

  “O ora recorrente, arguido Juiz Desembargador AA, recorreu do douto despacho de pronúncia proferido em 7/12/2017, no segmento atinente à imputação da prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.° 180.º, n.° 1, do C.P., na pessoa da Assistente, Juíza CC.

       O M°P° não acompanhou a acusação particular do Assistente.

  No debate instrutório, manteve o M°P° o entendimento de que não se indiciava suficientemente que o ora arguido tivesse cometido crime contra a Assistente, pelo que, nesta parte, não deveria ser pronunciado.

    O M°P° mantém essa posição, nesta resposta.

      E isto porque, acompanhando o douto Acórdão deste Venerando Tribunal de 9/4/2015 proferido no processo n.° 5/13.1..., no qual era Assistente o aqui arguido e arguida a aqui Assistente, se escreveu, e transcreve-se:

       “ (...) Difamar e injuriar mais não é basicamente que imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, entendida aquela, como o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, tais como o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, ou seja a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e esta última como sendo o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom-nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública - cfr. ac. da Rel. De Lisboa de 6.2.96, CJ 1, 156.

      “No entanto, vem-se entendendo, unanimemente, que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts, 180.º e 181.º do Código Penal, tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa.

     «Aliás, nesta linha, decidiu o Ac. da Rel. De Évora, de 02/07/96, onde se escreveu: «Um facto ou juízo, para que possa ser havido corno ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração – cf., CJ96, IV 295. (...)”

   As expressões imputadas ao arguido são, algumas delas, portadoras de um “juízo negativo”, exageradas, despropositadas, excessivas, mas não impõem, nem permitem, a intervenção do jus puniendi do Estado, a título de punição por crime de difamação.

  Aliás, como nota o douto Aresto que se vem acompanhando, “o arguido não poderá ser responsabilizado criminalmente pelo depoimento que prestou, a título de difamação, mesmo que objectivamente possa ser considerado como ofensivo da honra e consideração da pessoa visada nesse depoimento; e se se tivesse provado que mentiu na inquirição em apreço, a sua conduta preenchera os elementos típicos de um crime de falsidade de testemunho (art.° 360. n.º 1 e 3, do C.P.) e não de difamação.”.

   Por isso, que acompanhamos o recorrente no seu pedido de revogação parcial do despacho de pronúncia, no que concerne a prática do crime de difamação, p. e p. pelo art.° 188.°, n.° 1, do CP, contra a Assistente, Sra. Juíza CC devendo ser substituído por outro que, nesta parte, não pronuncie o arguido, Juiz Desembargador AA.”.


***

  Por sua vez, a assistente CC apresentou a resposta ao recurso apresentado, constante de fls. 132 a 243, que se transcreve (na íntegra, incluindo realces):

       I. Da douta decisão recorrida.

 Vem o Arguido interpor recurso da douta decisão instrutória proferida em 7 de Dezembro de 2017, no segmento em que conclui pela pronúncia daquele pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art.º 180.º, n.º 1, do Código Penal, na pessoa da Assistente CC.

      A douta decisão recorrida considerou estar suficientemente indiciada a seguinte matéria de facto, na parte que interessa ao presente recurso:

9. No âmbito do referido depoimento, prestado 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s, o arguido AA afirmou:

«Dizem-me alguns colegas, inclusive aqui da Relação de Lisboa, dizem-me: “Olha que a tua imagem pública nunca mais vai ser a mesma, por muito que demonstres as falsidades e as calúnias, nunca mais vai ser a mesma, porque a imagem já passou. Olha que se formou um lóbi negativo relativamente à tua pessoa e sabes o que é que se diz? Diz-se o seguinte: Aqueles que te conhecem continuam a considerar-te um juiz honesto, sensato, com capacidades, com… enfim… um juízo de reputação. Os outros, sabes o que dizem? És um juiz de quem a juíza e o irmão disseram coisas graves e dizem coisas graves».

10. E, mais adiante (a partir de1h37m05s do mesmo trecho), acrescenta:

«Estive graduado em oitavo lugar ex aequo com o sexto. Já na altura não entrei por causa destes processos, porque se andou… agora já sei isto, agora já sei… andou-se a pedir a… a… juízes conselheiros para não se jubilarem precisamente para eu não entrar… precisamente por causa destas… deste conjunto de… de… de denúncias caluniosas que a Doutora LL e advogado e da imagem pública que, efectivamente, se repercutiu com base naquilo que a Senhora Doutora LL…».

11. E, prosseguindo no dito depoimento (a partir de 1h37m48s), disse o arguido:

«Agora estou graduado em décimo nono, sôtor, e foram buscar à idoneidade nove pontos menos».

12. Sendo que, a partir de 1h3900s do referido registo das suas declarações, o arguido acrescentou, a instância do seu Advogado.

«Não tenho dúvidas, sôtor, que há. Mas há lóbis, sôtor… há um lóbi formado… o lóbi está formado e está montado»

13. E prosseguindo:

«(…) sôtor, deixe-me dizer isto, eu andei muito tempo… e o sôtor sabe isso muito bem… andei muito tempo não preocupado com a história da Maçonaria… (…) Mas eu nunca estive preocupado com isso… confesso… acusar-me de fazer parte da Maçonaria, de fazer parte de outra coisa qualquer, quero lá saber que ela me acuse disso… é a opinião dela, não vale absolutamente nada. Só agora é que me apercebi, é que me dei conta de onde é que ela queria verdadeiramente chegar. Quando vejo agora este lóbi que se formou, a ponto de o Doutor II, que é o marido da Doutora ..., ter que intervir já no Alfa a perguntar “Mas vocês conhecem-no? – Ah, não. – Ah, é que, se calhar têm a opinião errada, olha que a minha mulher é adjunta dele e diz isto, isto e isto. – Ah, ainda bem que dizes isto, porque assim, a gente começa a, começa a…”.

Tá a ver? Depois o lóbi está formado. E este lóbi é um lóbi mais poderoso do que aquilo que eu pensava.

E é um lóbi… aliás, têm aí um ponta-de-lança, que é o Doutor ..., que foi ele próprio que… e, aliás, confessado por ela… que lhe abriu as portas da imprensa e… e… e… e… que, efectivamente, que, efectivamente, conduziu àquilo que conduziu.

E este lóbi, este lóbi tem-me prejudicado bastante».

14. Para, a partir de 1h41m05s das referidas declarações, referindo-se à assistente e à circunstância de, à data dos factos objectos do processo disciplinar n.º 269/2011-PD em que foi arguida, a mesma já integrar o dito «lóbi», dizer:

«Portanto, mas ela, como fazia parte deste lóbi – tá a ver? –, sentia-se protegida, pensava que gozava de impunidade».

15. Assim, conforme se pode ouvir na passagem correspondente a 1h42m50s da sessão realizada em 20.01.2015, entre as 9h37m35s e as 12h16m02s:

Advogado da Ré – Isto tem alguma coisa a ver com o lóbi poderosíssimo ou poderoso de que Vossa Excelência fala?

Autor – Muito provavelmente, sôtor. Eu aí… eu isso sinto. Ainda não

tenho os elementos todos em meu poder. Sinto. Mas sinto.

Advogado da Ré – Quem é que integra, então, esse lóbi?

Autor – Eh… olhe: o Doutor ..., a Doutora LL e algumas pessoas das relações deles, provavelmente, que eu ainda não… ainda não identifiquei… ainda não consegui chegar lá. Mas vou chegar lá, garanto que vou chegar lá.

Advogado da Ré – Há um lóbi, então, contra si?

Autor – Ai há, há, sôtor.

Advogado da Ré – O Conselho Superior da Magistratura não faz parte desse lóbi?

Autor – Eh… provavelmente alguns membros… eh… se calhar alguns membros, sôtor. Se calhar alguns membros. Eu não sei, eu não sei se a Doutora LL tem relacionamento com alguns dos membros do Conselho Superior da Magistratura, eu não sei. Estou a investigar. Quer dizer… no momento ainda não sei, mas estou a investigar. Garanto-lhe que estou a investigar».

16. Não ignorando que a imputação que fazia à assistente a respeito da sua participação num “lóbi” anti maçonaria com vista a prejudicá-lo na graduação para o Supremo Tribunal de Justiça era objectivamente atentatória da sua honra e consideração, agiu o arguido com o propósito de desconsiderá-la e ofendê-la, enquanto pessoa e enquanto juiz, junto de terceiros, com consciência perfeita da ilicitude da sua conduta, o que quis e conseguiu.

17. Ainda no âmbito do aludido depoimento prestado na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., o arguido afirmou que a aqui assistente, o seu advogado e algumas das testemunhas que depuseram num processo disciplinar – o Processo n.º 2...9/2011 – teriam realizado uma reunião e combinado previamente entre si o conteúdo dos depoimentos que as últimas iriam prestar nesse processo.

18. Dizendo (a partir de 24m29s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

“E então, junto do Doutor DD obtém a … a … o conhecimento do Senhor EE que a põe ao corrente, que a põe ao corrente da … da … dos indivíduos que estavam em contencioso comigo.

Quem são os indivíduos que estavam em contencioso comigo?

É o próprio, por razões que se prendiam com um processo-crime … eh … que estava … em que ele esteve… portanto, tinha o julgamento marcado para dia 6 de Outubro e no dia 6 de Outubro lhe perdoei – já agora, a título de parêntesis, quero dizer aqui isto, porque … só para evitar que me… esquecer-me disto, que é muito importante – e logo no dia 7, eu perdoo-lhe no dia 6 de Outubro e logo no dia 7 o Senhor EE, ao meu irmão ... e à empregada da casa, uma tal FF, diz isto, virou-se para ela e diz-lhe: “Olha, tu vais ter que me … que me prestar contas destes vinte e tal anos que andas a gerir aquilo que é meu e dos meus irmãos e quanto ao outro – o outro, referia-se a mim – ele vai saber o que é doce, porque já tem uma juiz à perna”. Isto no dia 7 de Outubro de 2011.

Vim posteriormente a saber, aliás, agora já o posso dizer, já o disse no outro dia no Tribunal da Relação de Guimarães, já o posso dizer porque, infelizmente, a senhora… na altura eu omiti, omiti a identificação da pessoa que me disse isto porque era funcionária do Senhor EE e eu não queria que fosse objecto de represálias, mas entretanto e infelizmente a senhora faleceu e eu agora já não tenho problemas em dizer que era a Dona JJ que ouviu… viu e ouviu estarem reunidos no armazém do Senhor EE antes do dia 6, antes do dia 6 de Outubro, não … não posso precisar datas … eh…reunidos, o Senhor EE, o ... … o… eh … BB, o BB, conhecido por ..., e o HH, com ela. E dizem-me também com o seu Excelentíssimo marido e Advogado. E que a Senhora Juiz é nessa … nessa reunião que lhes fazia uma série de perguntas e que lhes ensinava as respostas que havia de dar. Isto foi-nos transmitido pela Dona JJ, a mim e ao meu irmão ....

Portanto, estamos no dia 6 de Outubro, e no dia 7 de Outubro já o Senhor EE dizia “isto. O meu irmão ..., provavelmente para não me aborrecer, não me disse nada…”.

19. Ciente estando que, ao imputar à assistente a realização de reuniões prévias com testemunhas a fim de combinarem os respectivos depoimentos, a ofendia na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, não se coibiu de fazê-lo, bem sabendo que a sua conduta não era permitida e que, com ela, desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

20. Dizendo ainda (a partir de 1h33m13s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

“De resto, numa carta anónima para o Conselho, que o Conselho remeteu para o Supremo, que é da autoria da Doutora LL, digo já claramente, ela … é da autoria … eu vou demonstrar isso … oportunamente eu vou demonstrar, juntando as peças do puzzle (…) que, efectivamente, é da autoria dela e só pode ter sido ela a autora, embora com base, novamente, em informações do Senhor EE … o conluio está aqui permanente… é que agora dizem que au faço parte de uma rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Não sei como é que a minha conta bancária está tão pouco recheada … a minha e a dos meus filhos e a dos meus parentes está tão pouco recheada. Não entendo, confesso que não entendo.

Mas dizem mais. Dizem que violei uma funcionária judicial da qual tenho um filho. Nunca tinha, nunca tinha ouvido falar nisso. Agora é ex novo para mim, mas também é ex novo a outra, enfim… mas isso oportunamente a gente vai tratar dessa questão”.

21. Bem sabendo que ao imputar à assistente a autoria de uma carta anónima com o aludido conteúdo ofendia-a na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, ciente de que a sua conduta não era permitida e que com ela desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

22. O arguido – até por ser magistrado e estar colocado na Secção Criminal de um Tribunal Superior – sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido com vontade livre e consciente.

O Arguido, a título de “enquadramento”, vem alegar que foi pronunciado por ter proferido as afirmações acima transcritas no âmbito de acção ordinária na qual era Autor e na sequência do “comportamento da assistente, enquanto fonte das notícias publicadas nos jornais”.

Ora, mais uma vez, o Arguido procura que se tome como assente algo que não aconteceu e não se provou na referida acção ordinária, ou seja, que a Assistente fosse a “fonte” de quaisquer notícias publicadas nos jornais.

Mais uma vez, para além da negação categórica da autoria desse suposto facto, não quer a Assistente deixar de recordar que era esse o “tema de prova” correspondente ao facto ilícito que lhe era imputado nessa acção.

Não era a suposta pertença a qualquer “lóbi”, a participação em qualquer reunião com testemunhas ou o envio de qualquer carta anónima, de resto não alegados na Petição Inicial.

E por isso as afirmações do Arguido, para além de falsas e inverosímeis, são ilícitas, como adiante melhor se demonstrará.

     II - Da invocada nulidade da decisão instrutória.

    Invoca o Arguido a nulidade da douta decisão instrutória, por omissão de pronúncia, alegando que:

“A Senhora Juíza Conselheira, agindo como JIC, pronunciou-se sobre todas as questões, com excepção do alegado exercício de um direito e cumprimento de um dever.

Causa essa de justificação que não pode confundir-se com a causa de justificação a que alude o n.º 2 do art.º 180º do C. Penal.

E parece ter sido confundida, considerando-se uma só.

Ora, nos termos dos art.ºs 613º, n.º 3, e 615º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no art.º 4.º do CPP, o julgador tem de se pronunciar sobre todas as questões que foram suscitadas no RAI.

O que não ocorreu in casu.

Por isso, enferma o douto despacho de pronúncia de nulidade, que expressamente se invoca”.

Todavia, não tem razão o Arguido.

Dispõe o art.º 4.º, do Código de Processo Penal, que:

“Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal”.

Em face do normativo acima transcrito, resulta claro que a aplicação das normas do processo civil pressupõe que ocorra um caso omisso, ou seja, uma lacuna.

O mesmo é dizer: pressupõe-se que “(…) no caminho de interpretação percorrido não foi encontrada solução para um espaço da realidade e da vida carecido de regulação e solução jurídica; a analogia como critério de integração pressupõe, pois, previamente, a identificação de uma lacuna da lei” - Cfr., António Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, 2.ª Edição, pág. 20.

Consoante escreve o autor citado - op. e loc. cit.:

“O temo «lacuna» faz referência a um quadro incompleto; só se pode falar em lacuna da lei quando esta aspira a uma regulação completa, ou seja, quando se verifica uma incompletude no plano do legislador (…).

A avaliação do plano do legislador há-de resultar de elementos históricos e contextuais, das construções normativas, da interpretação sobre o sentido da intenção do legislador e sobre as finalidades da lei e da coerência intra e trans-sistemática.

O processo penal é instrumental da aplicação e concretização do direito penal, na exclusiva finalidade de averiguação da existência de crimes, da identificação dos seus agentes e da aplicação das reacções criminais definidas na lei penal, segundo procedimentos estritamente previstos na lei - princípio da legalidade processual. Tende a constituir um ordenamento completo e auto-suficiente, sem espaços carecidos de regulação, sendo, tanto pela limitação e especificidade das matérias e das regulações como pela pretensão de completude, um campo normativo onde tendencialmente não se verificarão lacunas”- realce nosso.

     Importa, no que à nulidade invocada diz respeito, ter em consideração que o Código de Processo Penal contém uma disciplina tendencialmente esgotante das nulidades e irregularidades processuais, das nulidades da acusação e do despacho de pronúncia e das nulidades da sentença.

      Assim, no que concerne à sentença, estabelece o art.º 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, que “É nula a sentença (…) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões de que devesse apreciar (…)”.

      Já não assim no que concerne ao despacho de pronúncia, na medida em que, nos termos do art.º 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, lhe são aplicáveis as normas relativas aos requisitos da acusação e consequências da sua inobservância.

     A saber, o art.º 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, nos termos do qual:

“A acusação conterá, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis;

d) O rol com o máximo de vinte testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no artigo 128.º, n.º 2, que não podem exceder o número de cinco;

e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;

f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;

g) A data e a assinatura”.

      Ora, conforme estabelece o art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

     Por expressa remissão do n.º 2 do artigo citado, é aplicável ao despacho de pronúncia o disposto no art.º 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, segundo o qual “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

     Na articulação prática entre a suficiência indiciária pressuposta pela decisão de pronúncia e o princípio constitucional da presunção de inocência, há que exigir que “os elementos de facto recolhidos no inquérito e na instrução, «livremente analisados e apreciados, criem a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído” – Cfr., Ac. da Relação do Porto, de 7.01.2004, proc. n.º 0210951, disponível em www.gde.mj.pt.

     Conforme se lê nesse acórdão, “É nessa perspectiva, isto é, projectando para o julgamento os elementos que nesta fase processual já se propiciam e concluindo que, a manterem-se ali, justificarão, por certo, um juízo de condenação, que se terá de concluir pela suficiência dos indícios existentes, não se tendo, pois, como procedimento correcto que se relegue para julgamento o esclarecimento das dúvidas e pontos obscuros que, após a instrução, ainda subsistam e obstem a tal juízo de probabilidade de condenação, transformando a remessa do processo para julgamento num verdadeiro «salto no escuro», na medida em que, a persistirem ali essas dúvidas, a absolvição se antevê inexorável”.

      Ou seja, e ainda de acordo com o mesmo aresto, “para que possa/deva pronunciar, não tem o juiz de instrução de formar um juízo prévio e seguro de condenação do arguido; porém, a mera probabilidade (…) de tal vir a suceder há-de ser entendida com o alcance apontado acima, isto é, que os elementos reunidos já possibilitem um juízo de condenação provável, se, em sede própria (julgamento), não acabarem prejudicados, v. g., por falhar aí a sua prova ou por se demonstrar uma qualquer circunstância que os neutralize”.

      Assim, na pronúncia, o juiz não julga a causa: verifica se se justifica que, com as provas recolhidas no inquérito e na instrução, o arguido seja submetido a julgamento.

     Por isso, a lei regula a estrutura do despacho de pronúncia por remissão para os requisitos do despacho de acusação, a que acresce apenas a discussão dos indícios, que constitui a fundamentação da decisão, exigida pelo art.º 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal.

    Deste modo, o regime aplicável aos vícios de que padeça a decisão de pronúncia há-de ser encontrado na conjugação dos artigos 283.º e 307.º a 309.º, do Código de Processo Penal, para além do que resulte da aplicação das normas gerais sobre nulidades e irregularidades processuais.

     Por outro lado, tendo em consideração que o art.º 118.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, estabelece um princípio de tipicidade das nulidades processuais, na ausência de expressa cominação com esse desvalor, o acto desconforme com a lei processual é meramente irregular.

     Assim, é irregular o despacho de pronúncia que omita a decisão sobre questões que o tribunal devia apreciar ou que padeça de falta de fundamentação - Cfr., neste sentido: Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição, pág. 805; Eduardo Maia Costa, Código de Processo Pena Comentado, 2.ª Edição, pág. 983.

      Ora, face ao disposto no art.º 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Arguido dispunha do prazo de três dias para invocar a eventual irregularidade do despacho de pronúncia, junto do Venerando Tribunal a quo.

     Não o fez, motivo pelo qual se encontra precludida a possibilidade de a invocar em sede recursória.

       Ainda que assim não se entendesse e sem prejuízo do mais que se dirá quanto à invocada causa de exclusão da ilicitude, cumpre referir que as questões que a lei impõe que o tribunal conheça não se confundem com os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais.

      Ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia das questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas pela parte em defesa da sua pretensão - Cfr., António Oliveira Mendes, Código de Processo Penal Comentado, 2.ª Edição, págs. 1132 e 1133.

     Ora, no caso, a douta decisão recorrida apreciou todas as questões que cabia ao Venerando Tribunal conhecer, observando todos os requisitos previstos nos artigos 283.º, n.º 3, e 307.º a 309.º, contendo a discussão crítica dos indícios e a subsunção dos factos aos normativos legais aplicáveis.

     Deve, por isso, improceder a conclusão B) das doutas alegações.

       III - Da caducidade do direito de queixa.

     Invoca o Arguido a caducidade do direito de queixa da Assistente, alegando que:

    “Em meados de Junho de 2014, no âmbito do processo 5/13.1..., que contra a arguida correu termos no Tribunal da Relação de Guimarães, o aqui Recorrente apresentou RAI, no qual alegou:

     «A arguida sabia ser falso que esta não se tenha encontrado com as testemunhas que arrolara no processo disciplinar, sendo certo que bem sabia a arguida, antecipadamente, os factos sobre que iriam depor as testemunhas e as respostas que iriam dar (a questão da Maçonaria é sintomática)

(…)

    De facto, foram vistos entrar para o armazém do Sr. EE, este, a arguida, o mandatário desta, o ..., o HH e o Dr. DD.

(…)

Não no dia anterior à diligência mas algum tempo antes, ainda antes de a participada apresentar a defesa no Processo Disciplinar».

Ou seja, já em 2014 o assistente falava na reunião havida no armazém do Sr. EE.

Foi logo notificada a ali arguida e aqui assistente, do RAI, como consta dos autos.

Foi lavrado despacho de não pronúncia, revogado por acórdão do STJ, de 9 de Abril de 2015, que mandou pronunciar a arguida.

Fácil é, por isso, concluir que, em meados de 2014, a aqui assistente tomou conhecimento de que o aqui Recorrente afirmava que tivera lugar a reunião que, nestes autos, se considera ser ofensiva da honra e consideração devida à assistente.

Como a queixa foi apresentada em 24 de Abril de 205 (sic), tem de concluir-se que a mesma é intempestiva (…) e consequentemente, quando a assistente apresentou a queixa, estava caduco o respectivo direito.

E não se argumento que o que está em causa são as declarações prestadas no âmbito da acção ordinária porque, na realidade, trata-se do mesmo facto naturalístico, apenas repetido em outro lugar”.

      Não assiste, contudo, qualquer razão ao Arguido.

       Estabelece o art.º 115.º, n.º 1, do Código Penal, que “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tido conhecimento do facto e dos seus autores (…)”.

     O “facto” a que faz alusão o normativo acima transcrito corresponde à realização típica do crime a que se reporta o direito de queixa - Cfr., neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª Reimpressão, pág. 674.

   Parece defender o Arguido que a afirmação produzida no Requerimento de Abertura de Instrução datado de Junho de 2014, apresentado no Proc. 5/13.1..., e a afirmação por si produzida na audiência de julgamento realizada em 15.01.2015, no âmbito da Acção Ordinária n.º 704/12.5..., vertida nos pontos 17e 18 da douta decisão instrutória, correspondem a uma mesma realização típica do crime objecto do direito de queixa da aqui Assistente.

      Mas não é assim.

    Estabelece o art.º 30.º, n.º 1, do Código Penal, que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente” - realce nosso.

     Conforme ensinava Eduardo Correia, in Direito Criminal, Volume II, Reimpressão, 2000, págs. 200 a 202:

É (…) a uma teoria jurídica, e não a uma teoria naturalística, é a uma teoria que se dê conta da especificidade do plano em que se situa o Direito e em que os seus problemas se põem e se resolvem que terá de ir pedir-se o critério de destrinça da unidade e pluralidade de infracções.

E assim, desde logo, se a acção tem uma estrutura não naturalística, mas valorativa (é a negação de valores ou interesses pelo homem), há-de ser o número de acções assim entendidas que há-de determinar a unidade ou pluralidade de infracções. Ou, por outras palavras: o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade (…)

A possibilidade de subsunção de uma concreta relação da vida a um ou vários tipos legais de crimes será assim, praticamente, a chave para determinar a unidade ou pluralidade de crimes em que tal relação se sintetiza ou desdobra.

Mas para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção: a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura?

Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções - de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso -, o juízo de censura será plúrímo. Restará ainda, porém, saber em que condições se poderá afirmar uma tal pluralidade de processos resolutivos.

O critério segundo o qual esta pluralidade seria de afirmar sempre que se descortinasse uma qualquer «descontinuidade» na actuação do agente não pode ser seguido: não apenas porque ninguém irá afirmar uma pluralidade de resoluções só porque o agente, v. g., descarregou vários golpes, uns a seguir aos outros, sobre a sua vítima, como, acima de tudo, porque uma série de actos descontínuos pode muitas vezes ficar unicamente a dever-se a uma série correspondente de impulsos mecânicos, a meras descargas automáticas de uma mesma resolução.

Afastado este critério, não nos resta outro porém, se não o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em termos de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação”.

      Conforme o mesmo Professor explicava, in A Teoria do Concurso em Direito Penal, págs. 93 a 97:

      “O direito penal não valora negativamente certas condutas apenas por valorar. Valora-as para, emprestando-lhes a força desta sua avaliação, alcançar no processo de motivação dos indivíduos um papel decisivo: valora-as para determinar. (…)

Ora é precisamente a violação concreta das normas nesta sua função de determinação, é precisamente a falta da sua eficácia querida, devida e, portanto, possível no domínio da representação e do processo de motivação do agente, que faz nascer aquele juízo de censura em que se estrutura a culpa.

Mas, sendo assim, sempre que tal ineficácia se verifique diversas vezes, por força que terão de ser plúrimos estes juízos concretos de reprovação. Simplesmente, quando é que se poderá considerar verificada esta reiterada falta da eficácia determinadora das normas? Necessariamente, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de determinações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente.

Com efeito, a resolução neste sentido é o termo daquele específico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor ou desvalor, os prós e os contras dum processo concebido (…).

Onde encontrar então o índice da unidade ou pluralidade de determinações volitivas no sentido que interessa aqui? Por força das próprias coisas, não se oferece outro ponto de apoio utilizável senão o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Na verdade, posto que uma actividade possa desenvolver-se em momentos sucessivos sem que por isso tenha de supor-se uma pluralidade de resoluções, certo é todavia que a distância temporal que os pode separar não é ilimitada. É preciso não perder de vista que a pluralidade de actos só não importa a pluralidade de determinações na medida em que cada um deles se analisar num puro explodir (déclencher) mais ou menos automático da carga volitiva correspondente ao projecto querido, não presidindo a essa descarga, ou não presidindo necessariamente, aquela actividade de avaliação de motivos que referimos. Ora, a experiência e as leis da psicologia ensinam-nos que, em regra, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que porventura inicialmente os abrangia a todos se esgota no intervalo da execução, de sorte que os últimos não são já a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo”.

       Ora, no caso da afirmação produzida no Requerimento de Abertura de Instrução datado de Junho de 2014, apresentado no Proc. 5/13.1..., e da afirmação por si produzida na audiência de julgamento realizada em 15.01.2015, no âmbito da Acção Ordinária n.º 704/12.5..., vertida nos pontos 17e 18 da douta decisão instrutória, estamos perante actuações exteriorizadas com um intervalo de cerca de seis meses entre si.

    No primeiro caso, estamos perante uma peça processual escrita e subscrita por um Senhor Advogado, destinada a um processo de natureza criminal que corria termos no Tribunal da Relação de Guimarães; no segundo, estamos perante afirmações produzidas pelo próprio Arguido, de viva voz, numa sala de audiências sita no Campus da Justiça, em Lisboa, no âmbito de distinto processo - uma acção cível -, no qual era, de resto, patrocinado por distinto Advogado.

      Existe uma considerável distância temporal e espacial entre as duas actuações que, pese embora se refiram a uma mesma imputação desonrosa, foram exteriorizadas por meios e em moldes distintos – num caso, pela escrita, no outro, pela fala – em contextos funcionais também diversos – em processos diversos, no primeiro caso num RAI, no outro em declarações de parte, prestadas em audiência pública.

   Deste modo, impõe-se concluir que às duas actuações descritas presidiram diversas resoluções: existe pluralidade de infracções, pois o Arguido preencheu o mesmo tipo legal de crime por várias vezes - Cfr., art.º 30.º, n.º 1, segunda parte, do Código Penal.

      Ou, noutros termos, o comportamento global em causa revela uma pluralidade de sentidos de ilícito e, deste modo, a violação da mesma norma típica por mais do que uma vez, em concurso efectivo homogéneo - Cfr., Figueiredo Dias, Direito Penal - Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, págs., 1006 a 1007, dando o exemplo do agente que ofende a integridade física de outra pessoa e, encontrando-se de novo uns dias passados, repete a mesma conduta.

    No que se refere ao facto consubstanciado no RAI apresentado em Junho de 2014, o direito de queixa, efectivamente, extinguiu-se por caducidade.

    Mas, no que concerne ao facto em causa nestes autos - consubstanciado nas afirmações produzidas na audiência de julgamento referida nos pontos 17 a 19 da douta decisão instrutória -, o prazo para o exercício do direito de queixa apenas se iniciou depois de 15 de Janeiro de 2015.

   Pelo que a queixa, entrada em 24 de Abril de 2015 tem de ser considerada tempestiva.

    De outro modo, permitir-se-ia que bens jurídicos eminentemente pessoais - como é a honra - fossem indefinidamente violados uma e outra vez, bastando que, nos casos dos crimes de injúria ou difamação, o agente repetisse as mesmas palavras enquanto durasse a sua existência e a da vítima, mesmo que o fizesse em ocasiões distintas.

     Tal significaria o fracasso da função de tutela dos bens jurídicos própria do Direito Penal.

    Deve, por isso, improceder a conclusão C) das doutas alegações.

 IV - Do alegado “lóbi negativo”.

    Alega o Arguido, a respeito dos pontos 9 a 16 da douta decisão de pronúncia, que ao aludir, nas suas declarações, à participação da Assistente num “lóbi”, queria reportar-se a uma “corrente de opinião negativa” contra a sua pessoa ou a um “grupo de pressão” negativo, “mesmo que inconsciente”.

       Alegando, designadamente, que:

 “(…) o aqui Recorrente prestava declarações de parte no âmbito da acção ordinária n.º 704/12.5..., na qual era A.

Tinha de demonstrar que a assistente era a autora das notícias caluniosas publicadas pela imprensa, acerca de sua pessoa, prova que, por razões que se prendem com o segredo profissional dos jornalistas, não é fácil, sendo prova diabólica, se não for obtida por meios de prova indiciária.

(…)

Mas, para o que ora interessa passou para a opinião pública a imagem do aqui recorrente como Juiz corrupto. Imagem essa que, disso tem consciência o Recorrente, jamais será apagada. E que muito o tem prejudicado em termos profissionais pois que esteve graduado em 8º luar ex-aequo com o 6º classificado no XIII concurso de acesso ao STJ; ficou graduado em 19º lugar ex aequo com o 18º no XIV concurso de acesso ao STJ; e em 21º lugar no XV concurso de acesso ao STJ.

Tudo por descida no perfil, tendo neste último concurso baixado em 13 pontos.

E isto apesar de pontuar em mais 4 subcritérios no que tange ao perfil: foi eleito Presidente da ... Secção Criminal; tem anotados com doutrina e jurisprudência todos os principais diplomas legais portugueses; proferiu Conferência na Universidade do ...; e publicou na Revista ... Especial um artigo sobre a dogmática dos crimes negligentes.

É isto mesmo que o Recorrente quis e quer dizer com o uso do vocábulo lóbi.

Temos, assim, como dados absolutamente objectivos:

a) Foram publicados pela Imprensa notícias caluniosas referentes ao aqui Recorrente;

b) Este instaurou acção ordinária contra a assistente, alegando ser ela a fonte de tais notícias;

c) A assistente apresentou 3 participações disciplinares contra o aqui Recorrente; e as suas testemunhas EE e MM apresentaram, aquele 2 e este 1 participação disciplinar;

d) Foi junta ao processo uma carta anónima;

e) A assistente vai na 4ª ou 5ª participação criminal contra o Recorrente, mesmo quando este se limita a reproduzir frase que lhe disseram serem de sua autoria;

f) O Sr. EE apresentou participação criminal pela qual está a ser julgado por denúncia caluniosa.

g) Na graduação para o STJ, no XIII concurso, esteve graduado em 8º lugar ex-aequo com o 6º; ficou graduado em 19º lugar ex aequo com o 18º no XIV concurso de acesso ao STJ; e em 21.º lugar no XV concurso de acesso ao STJ.

h) A descida na graduação ocorreu sempre por baixa no perfil.

É, pois, dado insofismável que o Recorrente foi prejudicado em termos profissionais, tendo sido vítima do comportamento da assistente e das suas testemunhas no processo disciplinar.

Ora, por definição, como se pode ler na «Wikipédia, a enciclopédia livre», lóbi «é o nome que se dá à actividade de influência ostensiva ou velada, de um grupo organizado com o objectivo de interferir directamente nas decisões do poder público, em especial do poder legislativo, em favor de causas ou objectivos defendidos pelo grupo. Dentro dos mecanismos de participação pública nas democracias representativas, existem conceitos próximos, por vezes frequentemente confundidos, ao lobismo como os grupos de pressão, grupos de interesse (…)”.

A influência da assistente e das suas testemunhas na decisão do CSM na graduação do aqui Recorrente para o STJ, é evidente, tendo a sua génese nas notícias caluniosas e nas participações disciplinares e criminais.

Por isso, continua o Recorrente a entender que se formou um lóbi (grupo de pressão) negativo, mesmo que inconsciente, com influência no CSM, quanto à sua carreira profissional” - vide, artigos 39.º e 40.º, 43.º a 49.º das doutas alegações.

   Diz, ainda que “Por isso, repete que entende existir um lóbi (corrente de opinião negativa contra a sua pessoa) que o tem prejudicado em termos profissionais e que, na origem do lóbi, está a conduta da assistente”– vide, artigo 100.º das doutas alegações.

     Todavia, a argumentação do Arguido assenta num conjunto de falácias, como a Assistente passará a demonstrar.

    Em primeiro lugar, um “lóbi” não é uma “corrente de opinião” nem um grupo de pressão meramente “inconsciente”.

   Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, 2.º Volume – cuja valia literária nos parece ser bem superior à da Wikipédia -, “lóbi” é sinónimo de “1. Grupo que tem como objectivo defender interesses comuns, exercendo pressão. 2. Grupo que frequenta as antecâmaras do parlamento para exercer influência no voto dos deputados, de acordo com o seu interesse”.

 Em termos idênticos, o Dicionário do Português Actual Houaiss, no 2.º Volume, define “lóbi” como “1. atividade de pressão de um grupo organizado (de interesse, de propaganda etc.) sobre políticos e poderes públicos que visa exercer sobre estes qualquer influência ao seu alcance, mas sem procurar o controlo formal do governo; campanha, lobismo (…) 2. grupo organizado que desenvolve essa atividade”.

      Conforme escreve Hermínio Ferreira na entrada “Lobby”, in Polis - Enciclopédia VERBO da Sociedade e do Estado, 3.º Volume, págs. 1262, tal expressão corresponde a:

  “Palavra inglesa vulgarmente utilizada para identificar estruturas mais ou menos formalizadas que, em representação de interesses seccionais, procuram influenciar os centros nevrálgicos de decisão política e os seus membros, no intuito de sintonizar a acção destes com os interesses representados.

      Em acepção mais genérica a palavra liga-se a qualquer forma de pressão exercida por «grupos de interesses» sobre «centros de decisão», quer estes se identifiquem com as assembleias legislativas, quer com o governo, a administração, os partidos e as próprias organizações institucionais. Esta acepção moderna do termo deriva do facto de no edifício do Congresso Americano e também na Câmara dos Comuns (em Inglaterra) existir, por tradição, uma salão, uma antecâmara ou corredor de entrada - lobby é a designação inglesa destes espaços - abertos ao público para encontros, entrevistas e reuniões com os membros desses corpos legislativos. As pessoas que se juntam nesse salão com os deputados para sobre ele exercerem determinadas influências ou veicularem pontos de vista «interessados» passaram a ser conhecidos colectivamente por lobbies.

     Por generalização, o seu significado cedo passou a abarcar todas as acções directas sobre políticos, funcionários e decisores para os influenciar, num sentido positivo ou negativo, e em todo o caso conforme ao interesse protagonizado e em causa. O incessante aperfeiçoamento das técnicas de comunicação e de marketing propiciou um novo tipo de L., alicerçado na informação e contra-informação, na persuasão, na doutrinação e até na manipulação da opinião pública. O tráfego de influências mais ou menos pontual e discreto e as «mensagens» propagadas com oportunidade pela comunicação social exemplificam dias modalidades muito actuais”.

         Ora, por definição, o termo “lóbi” pressupõe um grupo e um mínimo de organização de meios humanos e materiais, pré-ordenados a exercer influência ou pressão sobre os centros de decisão, com vista à satisfação dos interesses representados por esse grupo.

      Supõe uma actividade consciente e intencional - uma disposição de meios para a obtenção de um fim - incompatível com a ideia, absurda, de “grupo de pressão inconsciente”.

     E não se reconduz a uma mera “corrente de opinião”: a influência sobre a opinião pública ou sobre a opinião dos decisores é, quando muito, um dos meios de que se servem os “lóbistas”.

      O Arguido não ignora que assim é, posto que se trata de um Juiz Desembargador, pressupondo-se dotado de uma cultura acima da média e, por isso, com o conhecimento exacto dos termos que emprega.

     Deste modo, a alegada equiparação da expressão “lóbi” a um qualquer “grupo inconsciente” ou “corrente de opinião”, além de incorrer numa contradição nos próprios termos - pois a actividade de “lóbi” pressupõe vontade e consciência -, incorre na falácia da definição tendenciosa: o Arguido atribui à palavra um conteúdo semântico que não corresponde ao uso linguístico, a fim de o afeiçoar às conclusões que daí pretende extrair.

     Em segundo lugar, das palavras proferidas pelo Arguido nas declarações que prestou na Acção Ordinária n.º 704/12.5... resulta patente que o mesmo não se está a referir a um “grupo de pressão inconsciente” ou a uma mera “corrente de opinião”.

      O Arguido refere um grupo de pessoas que integraria o referido “lóbi”, como resulta das seguintes passagens:

-E é um lóbi… aliás, têm aí um ponta-de-lança, que é o Doutor ...”;

- “Advogado da Ré – Quem é que integra, então, esse lóbi?

Autor – Eh… olhe: o Doutor ..., a Doutora LL e algumas pessoas das relações deles, provavelmente, que eu ainda não… ainda não identifiquei… ainda não consegui chegar lá. Mas vou chegar lá, garanto que vou chegar lá”;

- “Advogado da Ré – O Conselho Superior da Magistratura não faz parte desse lóbi?

Autor – Eh… provavelmente alguns membros… eh… se calhar alguns membros, sôtor. Se calhar alguns membros. Eu não sei, eu não sei se a Doutora LL tem relacionamento com alguns dos membros do Conselho Superior da Magistratura, eu não sei. Estou a investigar. Quer dizer… no momento ainda não sei, mas estou a investigar. Garanto-lhe que estou a investigar»”

- “Portanto, mas ela, como fazia parte deste lóbi – tá a ver? –, sentia-se protegida, pensava que gozava de impunidade”.

      O Arguido insinua que os membros desse grupo de pessoas – a Assistente, o Dr. ..., vogais do Conselho Superior da Magistratura - têm relações entre si, dizendo:

- “ (…) o Doutor ..., a Doutora LL e algumas pessoas das relações deles, provavelmente (…)”;

- “(…) Eu não sei, eu não sei se a Doutora LL tem relacionamento com alguns dos membros do Conselho Superior da Magistratura, eu não sei (…)”.

      Assegura que está a investigar essas relações:

- “(…) eu ainda não… ainda não identifiquei… ainda não consegui chegar lá. Mas vou chegar lá, garanto que vou chegar lá (…)”;

- “Estou a investigar. Quer dizer… no momento ainda não sei, mas estou a investigar. Garanto-lhe que estou a investigar”.

       Diz tratar-se de um grupo muito poderoso:

- “Depois o lóbi está formado. E este lóbi é um lóbi mais poderoso do que aquilo que eu pensava”.

      Sugere que esse grupo de pessoas seria motivado pelo facto de ele, Arguido, integrar a Maçonaria:

- «(…) sôtor, deixe-me dizer isto, eu andei muito tempo… e o sôtor sabe isso muito bem… andei muito tempo não preocupado com a história da Maçonaria… (…) Mas eu nunca estive preocupado com isso… confesso… acusar-me de fazer parte da Maçonaria, de fazer parte de outra coisa qualquer, quero lá saber que ela me acuse disso… é a opinião dela, não vale absolutamente nada. Só agora é que me apercebi, é que me dei conta de onde é que ela queria verdadeiramente chegar. Quando vejo agora este lóbi que se formou (…)”;

     Diz que esse grupo de pessoas o tem prejudicado bastante, concretizando as actuações que o prejudicaram:

- “E este lóbi, este lóbi tem-me prejudicado bastante”;

- “(…) Estive graduado em oitavo lugar ex aequo com o sexto. Já na altura não entrei por causa destes processos, porque se andou… agora já sei isto, agora já sei… andou-se a pedir a… a… juízes conselheiros para não se jubilarem precisamente para eu não entrar

(…)”;

– “Agora estou graduado em décimo nono, sôtor, e foram buscar à idoneidade nove pontos menos”.

     Ora, a insinuação, por parte do Arguido, que o “lóbi” e que se refere é integrado ou formado por várias pessoas relacionadas entre si – a Assistente, o Dr. ..., membros do Conselho Superior da Magistratura - é incompatível com o que agora o mesmo alega, quando diz que se referia a um “grupo inconsciente” ou a uma mera “corrente de opinião”.

     Caso o Arguido se quisesse referir a um mero “grupo inconsciente” - seja lá o que isso for - ou “corrente de opinião”, mal se compreende que assegure que está a investigar o relacionamento entre os membros desse grupo.

       Como também não se afigura entendível como é que um mero “grupo inconsciente” ou “corrente de opinião” poderia pedir a juízes conselheiros para não se jubilarem, precisamente para o Arguido não entrar no Supremo Tribunal de Justiça, ou baixar a sua graduação em nove pontos.

     Em terceiro lugar, o Arguido sustenta a demonstração da existência desse “lóbi” em factos irrelevantes ou não demonstrados, dando os mesmos como assentes.

     Assim, se é verdade que foram publicadas pela Imprensa notícias referentes ao aqui Arguido, não se vê em que prova é que o mesmo sustenta o carácter falso e, por isso, calunioso dessas notícias, nem qual a sua relação com a Assistente ou com o alegado “lóbi”.

      É verdade que o Arguido instaurou Acção Ordinária contra a Assistente, alegando ser ela a fonte de tais notícias.

      Mas, para além de não se vislumbrar em que é que tal releva para a demonstração da existência do alegado “lóbi”, cabe lembrar que essa acção foi julgada improcedente, por não se ter provado que a Assistente fosse a fonte dessas notícias.

     É verdade que a assistente apresentou três participações disciplinares contra o aqui Arguido, o mesmo sucedendo com EE e MM, que apresentaram, aquele, duas, e este uma participação disciplinar.

 Todavia, importa lembrar que a Assistente participou disciplinarmente contra o Arguindo, num dos casos, por este ter proferido expressões atentatórias da sua honra em diversos órgãos de comunicação social e por ter aceite a comissão de serviço como inspector judicial numa área onde se incluía o Tribunal de ..., onde pendiam processos em que era interessado.

     Esta primeira participação culminou com a condenação do aqui Arguido numa pena de 10 dias de multa e na cessação definitiva da sua comissão de serviço.

      A Assistente apresentou outras participações disciplinares contra o aqui Arguido por, entre o mais, este invocar o seu estatuto profissional para obter isenções de custas nos vários processos que intentou contra aquela, contra o seu Advogado e contra as testemunhas por si arroladas, por formular pedidos indemnizatórios de valores manifestamente exagerados, com o objectivo de intimidar essas pessoas e por instrumentalizar os articulados para atingir a honra destas.

     Ao que julga saber, as participações disciplinares apresentadas pelas testemunhas EE e MM - que o Arguido não afirma fazer parte do aludido “lóbi” - relacionam-se com a aludida instrumentalização do estatuto profissional em processos judiciais contra ambas, pendentes ou findos e, no caso da primeira, com a circunstância de ter sido agredida à porta do Tribunal Judicial de ..., logo depois de ter prestado depoimento.

     Participações, estas, que foram arquivadas, por entender o Conselho Superior da Magistratura não estar suficientemente indiciada a prática de qualquer infracção disciplinar.

      Não se vê, por isso, em que medida é que tal factualidade pode contribuir para fundar a convicção do Arguido quanto à existência do alegado “lóbi”.

     É também verdade que alguém dirigiu ao Conselho Superior da Magistratura uma participação disciplinar - a “carta” a que o Arguido se refere - sem autor identificado e que aquele Órgão juntou num mesmo inquérito a segunda e terceira participações da Assistente, as participações das testemunhas MM e EE e a dita participação de autor desconhecido.

     Essa junção de participações foi determinada pelo CSM, certamente por razões de conexão objectiva ou subjectiva e de economia processual, sendo a Assistente alheia a tal decisão, bem como às participações formuladas por essas testemunhas e à participação anónima.

      Não se vê em que medida é que a existência de uma participação anónima pode demonstrar o que quer que seja quanto à existência de um “lóbi” poderoso, aos prejuízos que desse “lóbi” resultaram para o Arguido ou quanto à participação da Assistente nesse “lóbi”.

     É também verdade que a Assistente já formulou quatro participações criminais contra o Assistente.

     Todavia, o Arguido omite propositadamente o objecto dessas participações criminais, bem como a circunstância de três delas serem ulteriores à prestação de declarações na Acção Ordinária n.º 704/12.5.... - e, por isso, nada poderem ter a ver com o “lóbi” e que o mesmo aludiu.

     O Arguido omite, também propositadamente, a pletora de participações disciplinares e criminais que dirigiu contra a Assistente, o seu Advogado e as testemunhas arroladas no processo disciplinar n.º 269/2011.

      Senão vejamos:

     O Arguido foi nomeado pelo Conselho Superior da Magistratura para instruir o Processo Disciplinar n.º 3.../2010, no qual era visada a aqui Assistente.

    Tendo sido deduzido, nesses autos, incidente de recusa, o Arguido apresentou, com fundamento no mesmo:

- Uma participação disciplinar contra o Advogado da Assistente, que veio a ser liminarmente arquivada pelo competente Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados;

- Uma participação disciplinar contra a Assistente, que deu origem ao Processo Disciplinar n.º 269/2011;

- Uma participação criminal contra a Assistente e seu Advogado, que deu origem ao Inquérito n.º 144/11.3..., pelos crimes de difamação agravada e de denúncia caluniosa.

   No Inquérito n.º 144/11.4..., foi proferida decisão de não pronúncia da Assistente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 15 de Janeiro de 2014, decisão essa que foi confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão datado de 18 de Junho de 2014.

     E, por sentença proferida no Processo Comum Singular n.º 2396/14.8..., proferida em 24 de Maio de 2017, já transitada em julgado, foi absolvido o Advogado da Assistente, aí arguido.

    No Processo Disciplinar n.º 2.../2011, foi decidido que a Assistente não podia ser responsabilizada disciplinarmente pelo teor do incidente de recusa deduzido no Processo Disciplinar n.º 333/2010, vindo a mesma a ser condenada apenas pela ocorrência de uma conversa particular, relatada pelo Arguido em termos contrários à realidade - conforme já demonstrado em vários processos, entre os quais no Processo Comum Singular n.º 2396/14.8T8LSB.

      Nesse processo disciplinar foi apresentada defesa escrita e foram arroladas testemunhas, entre as quais o Sr. HH, o Sr. EE , o Eng.º BB, o Dr. DD e o Ex Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. ....

     Nessa sequência e por causa da defesa escrita apresentada e das perguntas dirigidas às referidas testemunhas, o Arguido apresentou nova participação criminal contra a Assistente e o seu Advogado, pelos crimes de difamação agravada, denúncia caluniosa e devassa da vida privada, a qual deu origem ao Processo Comum Coletivo n.º 114/12.4..., tendo o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 13 de Fevereiro de 2017, absolvido ambos os arguidos.

     Ainda nessa sequência, o Assistente apresentou participação criminal contra o Dr. DD, pelo crime de difamação agravada, que deu origem ao Inquérito n.º 594/11.5PBBGC, que veio a ser arquivado.

    Apresentou participação criminal contra o Sr. HH, pelo crime de difamação agravada, que deu origem ao Processo Comum Singular n.º 593/11.7..., tendo o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 31 de Março de 2014, transitado em julgado, absolvido o arguido do crime que lhe era imputado.

      Apresentou participação criminal contra o Eng.º BB, pelo crime de difamação agravada, que deu origem ao Processo Comum Singular n.º 595/11.3PBBGC, tendo o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 10 de Julho de 2014, transitado em julgado, absolvido o arguido do crime que lhe era imputado.

      Apresentou, de uma assentada, três participações criminais contra o seu irmão Sr. EE, pelos crimes de difamação agravada e denúncia caluniosa, que deram origem ao Processo Comum Singular n.º 284/12.1..., que incorporou os Inquéritos n.ºs 134/12.9... e 135/12.7..., tendo, por sentença datada de 7 de Fevereiro de 2017, sido absolvido o arguido dos crimes que lhe eram imputados.

     A aqui Assistente foi ouvida na qualidade de testemunha no âmbito do Processo Comum Singular n.º 593/11.7... . Nessa sequência e por causa do depoimento prestado, o Arguido apresentou participação criminal contra a Assistente, pelo crime de difamação agravada, que deu origem ao Processo Comum Coletivo n.º 5/13.1..., tendo o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 20 de Novembro de 2017, absolvido a Assistente, aí arguida, do crime que lhe era imputado.

     Entretanto, na sequência de notícias publicadas em diversos órgãos de comunicação social, o Arguido intentou contra o Ex Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. ..., a Acção Ordinária n.º 568/12.9TVLSB, na qual pede a condenação do mesmo no pagamento de uma indemnização de € 1.000.000,00, por alegados danos à sua honra.

     E, na sequência das mesmas notícias, intentou contra a Arguida a Acção Ordinária n.º 704/12.5..., na qual pedia a condenação da mesma no pagamento de uma indemnização de € 500.000,00, por alegados danos à sua honra, acção que foi julgada improcedente, por sentença datada de 27 de Maio de 2015, tendo a assistente, aí ré, sido absolvida do pedido.

     A Assistente prestou declarações de parte nesta última acção, tendo o Arguido, por causa dessas declarações, apresentado nova participação criminal pelo crime de difamação agravada, que deu origem aos autos de Inquérito e, depois, de Instrução n.º 30/15.8..., tendo sido proferido, no dia 15 de Novembro de 2017, despacho de não pronúncia da arguida.

    Em alguns dos processos acima referidos, o aí Assistente, aqui arguido, formulou pretensões indemnizatórias cujo valor total é de muitas centenas de milhares de euros.

       Assim:

– No Processo Comum Singular, 114/12.4..., pediu a condenação da Arguida e do seu Advogado no pagamento de uma indemnização de € 200.000,00 (duzentos mil euros);

– No Processo Comum Singular n.º 144/11.3TRPRT, pedia a condenação da Arguida e do seu Advogado no pagamento de uma indemnização de € 60.000,00 (sessenta mil euros);

– Na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., pedia a condenação da Arguida a pagar-lhe a quantia de € 500.000,00 (meio milhão de euros);

– No Processo Comum Singular n.º 593/11.7...C, pediu a condenação de MM no pagamento de uma indemnização de € 50.000,00 (cinquenta mil euros);

– No Processo Comum Singular n.º 595/11.3PBBGC, pediu a condenação de BB no pagamento de uma indemnização de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros);

– Na Acção Ordinária n.º 568/12.9TVLSB, pediu a condenação do Dr. ... no pagamento de uma indemnização de € 1.000.000,00 (um milhão de euros);

– No Processo Comum Singular n.º 4914/12.7..., pediu a condenação de EE e outros no pagamento de uma indemnização de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros);

– No processo comum singular 284/12.1TABGC, pediu a condenação de EE no pagamento de uma indemnização total de € 151.000,00 (cento e cinquenta e um mil).

       Tudo somado, temos, pelo menos, um valor de € 2.361.000,00 (dois milhões, trezentos e sessenta e um mil euros), cerca de vinte vezes superior aos montantes habitualmente arbitrados pela jurisprudência para os casos de dano de perda da vida.

    Porque a Assistente tinha que se defender do pedido formulado na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., prestou declarações de parte em sede de audiência de julgamento.

 Nessa sequência, o Arguido apresentou nova participação criminal contra a Assistente, a qual deu origem ao Inquérito n.º 30/15.8..., que correu termos no Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, por decisão datada de 15 de Novembro de 2017, sido a Assistente, aí arguida, não pronunciada quanto ao crimes que lhe eram imputados.

  O Arguido apresentou, ainda, duas outras participações criminais contra a Assistente, que deram origem ao Inquérito n.º 18/16.3TRLSB e ao Inquérito n.º 19/16.0..., que foram apensos ao Inquérito n.º 30/15.8.... .

    No primeiro desses inquéritos, o Arguido imputava à Assistente a autoria da participação disciplinar anónima já acima referida, vindo os autos a ser arquivados pelo Ministério Público, quanto a tal matéria, por ausência de indícios suficientes - decisão com a qual o aqui Arguido se conformou.

      No segundo, o Arguido queixava-se da participação disciplinar apresentada pela Assistente junto do Conselho Superior da Magistratura, vindo os autos a ser arquivados pelo Ministério Público quanto a tal matéria, arquivamento confirmado pela decisão de não pronúncia acima referida.

  A este impressivo rol somam-se, ainda, as participações criminais que, em catadupa, “despeja” nos Serviços do Ministério Público de ... contra o seu irmão EE, de quem se confessa inimigo, diretamente ou por intermédio do seu irmão ..., pelos mais variados factos, a saber:

– A que deu origem aos autos de Inquérito n.º 536/17.4T9BGC, nos quais o aqui arguido imputa ao denunciado a prática de crimes de difamação e de denúncia caluniosa;

– A que deu origem aos autos de Inquérito n.º 235/17.7T9BGC, nos quais o aqui arguido imputa ao denunciado a prática do crime de violação de correspondência;

– A que deu origem aos autos de Inquérito n.º 27/17.3GDBGC, nos quais, por intermédio do irmão ..., imputa a este denunciado a prática de crime de furto qualificado.

    Isto para não aludir aos, que se saiba, cerca de catorze (outros) processos desencadeados, por si e/ou por intermédio do seu irmão ... EE – mas a seu mando e com o seu patrocínio -, e desde o ano de 2017, v. g., contra a sua madrasta FF, advogada desta e médicos, de natureza cível e criminal, processos esses que não se está em condições de enumerar, por se desconhecer em concreto o seu conteúdo.

     Já quanto às participações criminais formuladas pela Assistente, cabe esclarecer que esta apresentou uma primeira participação criminal contra o Arguido porque este, depois de deduzido incidente de recusa no processo disciplinar n.º 333/2010:

 - Proferiu despacho no qual escreveu que “O requerimento de recusa do Instrutor do processo contém afirmações altamente ofensivas da sua honra e consideração pelo que serão objecto da correspondente participação disciplinar e criminal. Vem apenas subscrito pelo Exmo. Mandatário da arguida. Porque se tratará de comparticipação criminosa, notifique pessoalmente a Senhora Juiz, ora arguida, por carta registada com AR, confidencial, para esclarecer se subscreve na íntegra, o conteúdo do requerimento. Deverá ainda esclarecer se o mesmo foi elaborado com a sua colaboração e se corresponde à sua vontade e querer. A ausência de resposta no prazo de 5 dias para o Tribunal de Trabalho de ..., será entendida como acordo expresso na elaboração e remessa do requerimento por parte da arguida”;

 - Proferiu despacho no processo disciplinar n.º 333/2010, do qual consta que “A fim de apresentar participação disciplinar e criminal contra a arguida e seu ilustre Mandatário, extraia 4 certidões e entregue-mas das seguintes peças processuais(…)”;

- Nesse despacho, escreveu: “Aliás, não é a primeira vez que a arguida nos presentes autos invoca a favor da sua tese legislação que não é aplicável. / O que nada abona a favor da competência de quem o faz”; “Tudo o mais alegado resume-se a fait divers, que a Senhora Juiz nem sequer se propõe provar e que só servem para tornar o processo complexo, em coerência com a estratégia da defesa, que pretende tapar o sol com a peneira . / Talvez à espera que o prazo prescricional ocorra!...”; - “Por isso mesmo até já indicou o nome da testemunha que, na sua verdade (será igual à anterior?!), testemunhou o telefonema”; - “A Arguida limita-se a semear confusão. À falta de melhores argumentos”; - “A Arguida, fazendo uso da sua fértil imaginação, dispara em todas as direcções”; - “A Senhora Juiz, numa manifestação clara de desrespeito para com o Inspector e para com o seu Órgão de Tutela (que, segundo ela, «só serve para chatear os trabalhadores», como nos afirmou), considera que os autos documentam «imundice processual». / A sua superioridade ética, que inequivocamente ressalta dos autos, mas que resulta também de afirmações que nos fez e se demonstrarão em sede própria, permitem-lhe escrever o que escreveu”; - “É arrevesada a concepção da Arguida – e preocupante quando vinda de quem tem a obrigação de julgar”; - “Não foi o Instrutor destes quem formou a personalidade da Arguida de molde a que se permita «arregimentar» um Colega para prestar declarações falsas que se destinavam a ser apreciadas pelo Órgão de Tutela”; - “Que autoridade moral tem a arguida para falar em métodos pouco ortodoxos?”; - “Mais uma vez a Arguida dispara em todas as direcções, sempre na tentativa (aqui sem qualquer sombra de dúvida) de intimidar o Instrutor”; “O usado vocábulo «manipulação» só é se entende porque proveniente da arguida, pessoa cuja personalidade já está bem vincada no processo”; “Quando se afirma que (…), só é entendível face à ignorância demonstrada”;

- E, em ofício dirigido ao Conselho Superior da Magistratura, escreveu que a aqui Assistente tinha a “personalidade deformada”.

 Tal participação deu origem ao Inquérito n.º 9/11.8YGLSB, tendo o Ministério Público decidido, a final, pelo arquivamento dos autos, decisão que veio a ser confirmada por despacho de não pronúncia, proferido em 9 de Maio de 2012.

 Não se vê, pois, qual a relevância desta participação para a demonstração da existência de qualquer “lóbi”.

A Assistente apresentou uma segunda participação criminal contra o Arguido, que é a que está em causa nos autos, posterior às declarações que o mesmo prestou na Acção Ordinária n.º 704/11.5TVLSB e que, por isso, de nada serve para demonstrar a existência do “lóbi” a que faz alusão.

  A Assistente apresentou uma terceira participação criminal contra o Arguido, porque este, na participação que deu origem ao inquérito 18/16.3... escreveu, sobre a Assistente, que:“O uso do vocábulo - “gajo” - sugere confusão com os ex-maridos ou ex-companheiros da ora Denunciada (ou não foi ela quem entrou eufórica no Tribunal de Guimarães, dizendo «estou grávida, estou grávida». Mas não vão dar os parabéns ao Dr. QQ – se (sic) companheiro então – porque ele não é o pai!!!...)”.

    Nessa passagem, o Assistente aproveitou a queixa para insinuar que a Arguida foi infiel a um seu ex-companheiro, mais concretamente, ao Assistente QQ, com quem viveu em união de facto.

    Insinuando que esta, durante o período de tempo em que viveu com o Dr. QQ, manteve relacionamento sexual com outro homem e que, inclusivamente, engravidou fruto desse insinuado relacionamento.

       Para imputar à Arguida uma conduta leviana e desavergonhada no mais alto grau - por forma a que esta mereça os epítetos usados ou “lidos na diagonal” em alguns arestos da Veneranda Secção Criminal a que o Ex.mo Senhor Juiz Desembargador preside -, insinua que a Arguida fazia alarde público da sua infidelidade para com o Dr. QQ.

A ponto de, no dizer do Arguido, ter entrado, “eufórica”, no Tribunal de Guimarães – onde os Assistentes exerceram funções – dizendo: “estou grávida, estou grávida». Mas não vão dar os parabéns ao Dr. QQ – se (sic) companheiro então – porque ele não é o pai!!!...”.

 Mais dizendo que o termo “gajo” seria adequadamente empregue para identificar os “ex-maridos ou ex-companheiros” da Arguida – que, note-se, assim se relacionaria com “gajos”.

 E identificando expressamente o Dr. QQ, como sendo um desses ex-companheiros – e, por isso, um “gajo”.

 Bem sabendo que “gajo” é uma designação pejorativa, que significa “pessoa de fraca reputação, pessoa velhaca, astuta, finória” – Cfr., Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, pág. 1852.

  Nesses autos, a aqui Assistente e o Dr. QQ deduziram acusação particular, não tendo, ainda, ao que sabem, o Ministério Público decidido se acompanha ou não acompanha essa acusação - aliás, segundo informação da secção de processos, tais autos foram remetidos para instrução, a requerimento do Arguido, sem que o devido despacho tivesse sido proferido, razão pela qual regressaram aos serviços do Ministério Público, desconhecendo ulteriores desenvolvimentos.

    A Assistente apresentou uma quarta queixa contra o Arguido porque este, na rede social Facebook, mais concretamente, no grupo “...”, constituído por diversos magistrados judiciais que entre si comunicam através daquela rede, pelas 15:06 do dia 28 de Março de 2017, publicou o seguinte comentário, referindo-se à Assistente: “Sendo embora uma juíza confessadamente mentirosa e desonesta em exercício de funções. Parabéns aos que aceitam o exercício de funções nessas circunstâncias. E depois admirem se que o povo não confie na Justiça”.

       As duas últimas participações criminais são, por isso, também muito ulteriores às declarações prestadas pelo Arguido na Acção Ordinária n.º 7604/12.5... .

      Pelo que as mesmas nada podem demonstrar quanto aos motivos que o levaram a imputar à Assistente a participação num “lóbi”.

       É, por fim, verdade que o Arguido viu descer a sua posição relativa no XIV.º concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e que essa descida de posição teve, entre outros, como fundamento a desvalorização do item relativo ao “perfil” ou “idoneidade”.

       Todavia, não é verdade que o Arguido tenha sido prejudicado nessa graduação por causa da Assistente.

       O Arguido, segundo se retira do parecer do júri desse concurso, foi prejudicado por circunstâncias que apenas a si se devem, designadamente, pela prática dos factos em causa no Processo Disciplinar n.º 8.../2012, factos pelos quais foi punido disciplinarmente e foi cessada a sua comissão de serviço como inspector judicial.

       Foi punido, por violação do dever de reserva, porque, em vários jornais, declarou o seguinte sobre a Assistente

- “É «vindita privada” (substituição à justiça) (…) o comportamento da juíza se explica como reacção ao facto de este lhe ter instruído um processo disciplinar por suspeitas de recurso a prova falsa” - Cfr., “Público”, edição de 27 de Outubro de 2011.

- “Eu apurei coisas gravíssimas em relação a essa magistrada e, por isso, ela está ressabiada. Espero e desejo que seja expulsa da magistratura, na sequência dos factos que já participei ao Conselho. Mas garanto que este vasculhar da minha vida privada vai dar processo” - Cfr., “Sol”, edição de 4 de Novembro de 2011.

- “Apenas uma senhora juiz, ressabiada com o inspector que lhe instruiu um processo disciplinar no qual veio a apurar factos muito graves relativamente à conduta da senhora juiz, apresentou participação contra o respondente. E fê-lo devassando a vida privada e distorcendo os factos, sempre com o objectivo de se vingar do inspector” - Cfr., “Sol”, edição de 11 de Novembro de 2011.

- “Os critérios de apreciação da ética de um magistrado não são, felizmente, aqueles que presidiram à actuação da senhora juiz no decurso do processo disciplinar que o ora respondente instruiu. Por isso, sem surpresa, a fazer fé nas declarações do senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, tem esta proposta a pena de demissão. Para bem da magistratura portuguesa e do país” - Cfr., “Sol”, edição de 11 de Novembro de 2011.

- “Movi um processo de difamação contra quem me acusou. E agora a juíza, que voltou a falar nisso, terá de provar as acusações que fez” - Cfr., “Correio da Manhã”, edição de 12 de Novembro de 2011.

- “Isto é tudo uma teia urdida por uma juíza de ...” - Cfr., “Correio da Manhã”, edição de 13 de Novembro de 2011.

- “«O que a doutora CC quer é vingar-se de mim, vasculhar a minha vida privada e distorcer tudo» diz o juiz da Relação. Na sua versão, em causa está um processo instaurado à magistrada por ter chamado mentiroso a um inspector, que a processou. «Ela arrola como testemunha um colega, dizendo que estaria junto dela a ouvir a conversa e que ela não proferiu qualquer insulto. Mas eu descobri que ela estava na mesma altura a presidir a um julgamento. Ora, com o dom da ubiquidade só conheço Deus»” - Cfr., edição de 21 de Novembro de 2011, do “Diário de Notícias”.

    E, foi punido por violação do dever de lealdade, porque aceitou a comissão de serviço como inspector judicial em área onde estava incluído o Tribunal Judicial de ..., omitindo que, nesse tribunal, pendiam processos em que era interessado.

       Lendo-se no acórdão disciplinar que:

       “Da leitura dos factos elencados emana, de imediato, a ideia de que o Exmº Desembargador tem, naquela área onde foi colocado como inspector, ligações, interesses, litígios, findos ou pendentes, ou com possibilidades de irromperem, estando-se perante uma figura de destaque na região, que inclusivamente foi candidato à presidente da Câmara Municipal de .... O próprio Arguido alude a «inimigos», de ..., que identifica. Há, pois, um potencial de conflitualidade que o número de processos elencados ilustra e que, salvo melhor opinião, teria desaconselhado, desde logo, pela susceptibilidade de criação de constrangimentos em relação aos magistrados que ali exercem funções, o exercício inspectivo naquela área. E a verdade é que foram, como resulta da matéria de facto, deduzidos pedidos de escusa, alguns dos quais deferidos. (…)

     O problema que se levanta é o de saber se um candidato a inspector deve ser colocado numa área em que muitos sejam os seus interesses e haja, no que lhe respeita, um historial de litigância e uma perspectiva de continuação da mesma e, a verificar-se isso, se não deverá o candidato, em nome da transparência e da lealdade – ou seja, agindo no sentido de evitar que sejam criados entraves a que os objectivos de órgão que o nomeia (o CSM) sejam plenamente cumpridos –, dar conta a esse mesmo órgão de todas as circunstâncias que se perfilem como relevantes para tanto. Ora, parece que a resposta deverá ser no sentido de que essa informação deve ser prestada.

     Depois, há o concreto caso relatado, respeitante a ter o Exmº Desembargador procedido à inspecção de um Exmº Juiz que decidiu um processo em que foi interessado (Proc. Comum Singular n.º 884/06.9TABGC), tendo o arguido sido condenado a pagar-lhe € 25.000,00”.

      Aí se acompanhando a posição do Exmo. Instrutor “(…) quando diz que «não é sem significado a circunstância de o mesmo Conselho saber que o Sr. Juiz inspeccionado tinha proferido decisão em processo-crime no qual figurava como assistente o arguido Dr. AA», bem como quando conclui que «do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo», não relevando as visões subjectivas, mas a avaliação feita à luz dos critérios de um cidadão normal”.

  Concluindo-se que “quer no primeiro momento, quer no que se refere ao episódio em apreço, sobre o Exmº Desembargador impendia um dever de informar o Conselho Superior da Magistratura, tal como é defendido pelo Exmº Instrutor”.

    Foi por estes motivos que, naturalmente, ocorreu a descida na posição relativa do Arguido no concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, por mais que este não queira assumir a responsabilidade pelos seus actos. Não foi por causa da Assistente ou da intervenção de qualquer “lóbi”, de que esta não faz parte.

 A apresentação de participações disciplinares ou criminais e a prestação de depoimentos por parte das testemunhas corresponde a actuações processuais que não podem ser reconduzidas a qualquer actividade característica de um “lóbi”, já que não envolve qualquer acesso às “antecâmaras” ou aos “bastidores” dos centros de poder.

 De resto, quem dispunha e dispõe de acesso a tais “antecâmaras” ou “bastidores” é o próprio Arguido, que foi inspector judicial e que, ele sim, contactou jornalistas e, a fazer fé nas suas palavras, tem colegas – alguns que não identifica - que o alertam e intercedem a seu favor nas viagens do “combóio Alfa”, que o elegem para a presidência de uma secção criminal da Relação do Porto e que são por si arrolados como testemunhas nos vários processos em que é autor e assistente, não se coibindo de emitir juízos sobre a culpabilidade dos visados, apesar de nada saberem sobre os factos em discussão – como, infelizmente, aconteceu, entre outros, na Acção Ordinária n.º 704/12.5... e no Processo Comum Singular n.º 114/12.4... .

 Devem, por isso, improceder as conclusões P) a T) das doutas alegações.

 V- Da alegada reunião entre a Assistente e as testemunhas.

 O Arguido continua a sustentar, nos artigos 50.º a 65.º das doutas alegações, que a Assistente reuniu com várias testemunhas que arrolou no processo disciplinar n.º 269/2011, previamente à prestação, por estas, de depoimento, a fim de com elas combinar as perguntas que seriam feitas e as respostas que seriam dadas.

       Diz o Arguido que:

Em inícios de Outubro de 2011 o pai do aqui Recorrente, então com 95 anos de idade, esteve internado no Hospital Distrital de ....

O irmão do Recorrente, AA, procurou o Sr. EE, que com o pai não convivia há mais de 20 anos. Ia consigo a empregada da casa, FF.

O Sr. EE, quanto à empregada, logo referiu que esta havia de lhe prestar contas e quanto ao aqui recorrente, disse, então: «perdi uma batalha, mas não perdi a guerra: o outro já tem uma juíza à perna.

Só mais tarde é que o aqui Recorrente soube da conversa entre os seus irmãos. Conversa essa que o irmão ... relatou quando inquirido em sede de instrução, nestes autos”.

 Sucede que, conforme se considerou na douta decisão recorrida, a testemunha EE prestou um depoimento escassamente pormenorizado, essencialmente baseado em supostas informações de terceiros insusceptíveis de ser comprovadas através da inquirição das respectivas fontes e não corroborado por quaisquer outros meios de prova.

O Arguido nem sequer esclarece que assunto é que a referida testemunha iria tratar com o seu irmão EE ou com a referida empregada, FF, ou a que assunto é que se reportava quando supostamente teria dito “perdi uma batalha mas não perdi a guerra”.

 Nada a este respeito resultou da prova testemunhal, limitando-se o Arguido a sustentar a sua diferente versão dos acontecimentos no depoimento de uma testemunha que está em contencioso com o irmão EE.

       Muito se estranha, de resto, que o Arguido não tivesse arrolado como testemunha a referida FF, que alegadamente teria assistido à suposta conversa relatada.

       Alega, ainda, o Arguido que:

  “A assistente tinha já pendente processo disciplinar, acima (41) referido.

No âmbito do mesmo, o aqui recorrente assistente foi notificado para comparecer no Tribunal de ..., no início de Novembro de 2011 para, assim lhe foi dito, ser acareado com a assistente e muito estranhou que, em vez da acareação, a assistente, ela própria, inquirisse o aqui Recorrente sobre factos da sua vida provada:, pretensos negócios, ligação a um indivíduo que veio a ser condenado por tráfico de droga, locais que frequentava, etc. Como nada tinha a esconder, foi respondendo a tudo quanto lhe foi perguntado. Verificou depois que queria desacreditar o aqui Recorrente.

     O que de nada lhe valeria porque, por escrito, ela própria dissera que o Juiz ouvira o telefonema e este veio a retractar-se, também por escrito”.

 O Arguido, propositadamente, mistura o objecto dos vários processos disciplinares.

       O processo disciplinar em que estava em causa a afirmação da Assistente, no sentido de que o seu colega ouvira certo telefonema é o processo disciplinar n.º 179/2011.

       O processo em que ocorreu a acareação do Arguido, a prestação de esclarecimentos complementares e a inquirição das testemunhas que este diz terem estado presentes na reunião a que alude é o processo disciplinar n.º 269/2011.

       Trata-se de processo distinto, como o Arguido não ignora, já que o mesmo tinha por objecto, para além do teor de um incidente de recusa, o conteúdo de uma conversa particular ocorrida entre aquele e a Assistente.

       No processo disciplinar n.º 269/2011, que é o que aqui releva, o Arguido era o participante e a única testemunha presencial, razão pela qual importava aferir da credibilidade a atribuir ao seu relato, a tal se destinando as perguntas que lhe foram dirigidas.

       Alega, ainda, o Arguido que:

Quando saiu da inquirição reparou que estavam para ser inquiridas as 6 pessoas, todas as que estavam em contencioso com o Recorrente por causa da hangaragem de um avião e por causa de um processo crime movido contra o Sr. EE. Pessoas que não conheciam a assistente e que, por isso, em nada poderiam ser úteis à sua defesa.

Logo no dia seguinte pediu certidão do auto de inquirição e, constatou que a assistente fizera perguntas cirúrgicas, cujas respostas eram sempre prejudiciais ao qui Recorrente.

Por exemplo:

a) Tendo ela arrolado como suas testemunhas dias pessoas que pertencem à maçonaria, o que não escondem, não lhes perguntou se o aqui recorrente pertencia à maçonaria. E só fez a pergunta ao nestes autos também assistente, BB, e ao Sr. EE. Responderam ambos afirmativamente: aquele porque tinha sido convidado para a maçonaria pelo aqui respondente; este porque se apoderara de uma carta que terá sido remetida ao Recorrente por um tal NN, que nunca chegou às mãos do destinatário;

b) Ao Sr. EE, e só a ele, perguntou quanto ganhara o aqui Recorrente em determinados prédios construídos por uma imobiliária na qual a esposa do Recorrente tinha uma quota de 11%;

c) Ao Sr. HH, e só a ele, perguntou por umas horas de voo pagas pelo ora Recorrente ao Aeroclube, em cujo pagamento se enganou contra si (pagou a mais); e perguntou-lhe se este era capaz de mentir para perseguir um, inimigo figadal, ao que ele respondeu afirmativamente, sem o concretizar (a expressão tinha sido utilizada pelo aqui Recorrente em incidente de escusa que apresentara ao CSMK no processo disciplinar que instruiu à assistente);

d) Ao BB, e só a ele, preguntou pelas relações de cumplicidade com um tal NN, que foi julgado por ter financiado uma operação de tráfico ocorrida uns 7 anos depois de estar inactiva a sociedade, de que ele era também sócio, bem sabendo que iria responder afirmativamente, confundindo intencionalmente os anos da vigência da sociedade Imobiliária ..., Lda., e o ano do tráfico”.

       Ora, é falso que a Assistente soubesse antecipadamente quem é que era ou deixava de ser membro da maçonaria, já que: por um lado, trata-se de sociedade secreta, desconhecendo-se quem são os respectivos membros; por outro lado, a Assistente não nasceu, viveu ou trabalhou em ..., não conhecendo as pessoas em questão.

       A Assistente apenas dirigiu às testemunhas BB e EE perguntas sobre esse assunto por se tratar de pessoas que revelaram ter uma relação mais próxima com o Arguido, já que a primeira havia sido seu amigo pessoal e a segunda era seu irmão.

       É falso que a Assistente apenas tivesse perguntado à testemunha BB sobre as relações entre o Arguido e o Sr. OO, que foi condenado pela prática do crime de tráfico de droga.

 A Arguida dirigiu essa pergunta a todas as testemunhas inquiridas, tendo algumas dito saber dessa relação e outras dito apenas conhecer o que se comenta em ..., que não sabia se era ou não verdade - caso da testemunha HH - ou alguns pormenores laterias, como a presença do Arguido aquando na negociação da venda de um apartamento da imobiliária - caso da testemunha MM -, a circunstância de determinado loteamento ser conhecido como “loteamento do juiz” - caso da testemunha DD - ou de o Arguido ter estado presente no casamento de um filho do aludido OO - caso da testemunha ....

       As testemunhas BB e EE, dada a maior proximidade com o Arguido, relataram com algum pormenor a existência de negócios no ramo imobiliário, referindo-se a última á construção de determinado prédios, razão pela qual lhe foi perguntado quanto é que o Arguido havia ganho.

       É falso que a Assistente tenha perguntado à testemunha HH sobre horas de voo num avião do ...

       O que se lê no respectivo auto de inquirição é o seguinte:

       “Pergunta quatro: Como caracterizaria a personalidade do Sr. Juiz? Resposta: Eu, com o devido respeito, penso que um juiz estará habituado a fazer a sua vontade, que não é contrariado, que é sempre obedecido e que aquilo que faz é que está correcto. O Sr. Dr. Juiz AA desde muito novo que brilhantemente subiu na sua carreira, logo que seja contrariado essa pessoa passa a ser inimigo dele, que foi o que aconteceu comigo.

Referiu ainda que é muito explosivo e que por vezes não olha aos meios para ofender as pessoas.

Pergunta cinco: Mas já o ofendeu? Explique melhor.

Resposta: Uma ocasião o Sr. Dr. Juiz foi voar com um avião do aeroclube e registou no diário de navegação dessa aeronave três horas e quinze minutos. No registo para se pagar as horas ao aeroclube apenas registou duas. Pedi-lhe que explicasse aquela situação através de um ofício do aeroclube e a resposta foram 5 ou 6 folhas que eu considero de ofensivas à minha pessoa. Para no fim dizer «bom se há um engano vamos desfazê-lo»”.

     Ou seja: a Assistente perguntou, apenas, se o Arguido já havia ofendido a testemunha; esta responde que sim e faz referência a uma carta enviada pelo Arguido na sequência de uma divergência quanto a horas de voo.

 É, ainda, falso que a testemunha tenha respondido sem concretizar à pergunta sobre se o Arguido era capaz de mentir pera perseguir um inimigo figadal, pois esta declarou:

“O Sr. Dr. Juiz AA foi para o aeroclube de ... a convite do do Dr. PP. O Dr. PP era um médico cirurgião desta cidade que tinha um avião bimotor de seis lugares com o qual faleceu há cerca de dois anos. Eram muito amigos e passado cerca de um ano o Sr. Dr. AA era presidente do aeroclube de .... Depois zangaram-se. E a partir daí começaram a aparecer muitas queixas dos pilotos que tinham os aviões dentro do hangar. Era um número excessivo de aeronaves dentro do hangar e devido a isso por vezes havia toques entre elas. Isto começa a acontecer depois dos dois se zangarem, originando que os pilotos formassem dois grupos, um apoiante o Dr. PP e outro apoiante do Dr. AA. Isto servia de pretexto para se andarem a acusar de darem toques nas aeronaves uns dos outros. A partir daí pensou-se em gerir o hangar restringindo o número de aeronaves a hangarar.

Um dia o Sr. Dr. Juiz comprou um avião e porque os portões do hangar estavam avariados, tirou uma aeronave do local onde estava para meter a aeronave dele. Eu não estava em ..., estava em .... Por respeito ao Sr. Dr. Juiz não pus a aeronave na Rua. Comprei um cadeado e um aloquete, esperei que o Sr. Dr. Juiz fosse voar com a aeronave e fechei os portões com o cadeado e com o aloquete, dizendo ao funcionário do aeródromo para que dissesse ao Sr. Dr. Juiz que teria de falar comigo para coordenarmos a melhor maneira de hangarar a aeronave. O Sr. Dr. Juiz nunca falou comigo e meteu o caso em tribunal”.

       Foi nessa sequência que surgiu a pergunta da Assistente, que era relevante, pois o Arguido acusava-a de algo que aquela não tinha feito e declarava-se seu inimigo figadal.

       Não se vê, pois, como é que da leitura do auto de inquirição das testemunhas o Arguido podia retirar qualquer ilação quanto à ocorrência da suposta reunião prévia.

      Diz ainda o Arguido que:

“O irmão ... frequentava, por causa das notícias caluniosas, com assiduidade, a casa do Recorrente. Este contou-lhe o que as testemunhas do assistente afirmaram. E mostrou-lhe as participações criminais que já elaborara. Mais lhe disse que, para si, era impossível não terem combinado as perguntas e respostas.

Foi então que o ... lhe disse que a D.ª JJ, esposa do ..., amigo do aqui Recorrente, empregada de limpeza do Sr. EE, e sua ex-funcionária, o procurara há dias e lhe dissera, pedindo sigilo absoluto, que estiveram reunidos no armazém do Sr. EE uma Senhora que dizia ser Juíza, o marido desta, o Sr. EE, o ... (aqui assistente BB), o MM (HH) e o Dr. DD. Acrescentou que ouvira a juíza fazer perguntas que tinham que ver com o aqui Recorrente e que falavam mal deste.

Mais acrescentou o ... que o Sr. EE tinha ido jantar ao restaurante ... com uma juíza, segundo o afirmara a Dr.ª ..., ex-esposa do EE, à sua esposa, ....

      Tudo isto relatou o ... em sede de instrução”.

      A este respeito, refere-se na douta decisão recorrida o seguinte:

“Baseou-se igualmente o Tribunal nas ditas declarações prestadas pela assistente e também pelo assistente (confira-se folhas 431 e verso), e nos depoimentos prestados em instrução pelas testemunhas, e designadamente por RR, SS, HH, DD, TT, UU que disseram não ter participado ou ter tido conhecimento de qualquer reunião havida entre os assistentes e outras pessoas, entre as quais eles próprios, no armazém da também testemunha EE, com o fim de preparar as respostas que haviam de dar quando fossem inquiridas no Processo Disciplinar n.º 269/2011-PD.

Sendo que, como antes referido, enquanto a testemunha ... disse que se inteirou desse facto através de uma tal D.ª JJ, já falecida, e a testemunha UU mencionou que avistara, numa ocasião, o assistente a falar com a testemunha EE, junto ao armazém deste ou do edifício do Tribunal de ..., a testemunha HH afirmou de forma peremptória que jamais teve qualquer reunião com quem quer que fosse com vista a acertar perguntas e respostas a formular no âmbito do aludido Processo Disciplinar n.º 269/2011-PD”.

       Mais se referindo que:

      “Já porque nenhuma das testemunhas inquiridas em instrução admitiu a ocorrência de uma qualquer reunião, no armazém de EE ou em qualquer outro local, com a assistente CC para efeitos de combinarem com esta as respostas que haviam de dar às perguntas que lhes fossem feitas no âmbito do Processo Disciplinar n.º 269/11-PD, com excepção da testemunha ... que, porém, não tendo tido conhecimento directo e pessoal desse facto, para afirmá-lo baseou-se no que lhe terá sido dito por uma tal D.ª JJ, empregada da testemunha EE , e já falecida.

De onde que, tratando-se de um depoimento indirecto, escassamente pormenorizado e insusceptível de ser comprovado através de inquirição da testemunha-fonte, na falta de outros elementos de prova adequados a corroboraram-no, o mesmo não resulta suficiente para comprovar a existência da alegada reunião.

Para além de que, mesmo que a dita testemunha-fonte houvesse indicado à testemunha ... a identidade de algumas pessoas que teriam estado na alegada reunião e numa outra, não terá a mesma conseguido precisar a natureza dos assuntos que aí foram abordados pelos participantes, limitando-se vagamente a transmitir àquele que os ouviu falar no nome do arguido e em assuntos relacionados com tribunais”.

  Ou seja, a testemunha ... limitou-se a prestar um depoimento indirecto, não corroborado por qualquer outro meio de prova, insusceptível de ser confirmado pela alegada testemunha-fonte e escassamente pormenorizado, referindo-se a uma vaga alusão a “assuntos relacionados com tribunais”.

  Não se vê com que peças pretende o Arguido construir o “puzzle” a que alude no art.º 62.º das doutas alegações, salvo aquelas que a sua própria imaginação criou.

  Veja-se que já no decurso do depoimento que prestou, no pretérito dia 18 de Outubro de 2011, no Processo n.º 593/11.7PBBGC, em que era arguido uma das testemunhas ouvidas no P.D. n.º 269/2011, o Arguido havia dito:

      “Sei que estiveram reunidos, alguém os viu entrar para o armazém do Senhor EE e sei que estiveram reunidos os… os… ora, portanto… ela e o seu excelentíssimo marido, o Senhor EE, o Senhor...… o Senhor Engenheiro ..., este Senhor e o Doutor DD. Portanto, eram seis… estiveram reunidos lá, alguém os viu entrar”

      Dizendo:

      “Porque é que eu digo isto? Porque é que eu digo que houve reuniões? Primeiro, porque tenho essa informação… não me peçam para dizer quem é que me deu, quem… quem me deu a informação, porque não posso fazê-lo, porque se dissesse quem me tinha dito, arranjava para aí problemas, se calhar até… até… até de… até de subsistência, pronto, enfim”.

      Nesse depoimento, o Arguido deixou insinuado que a pretensa fonte das informações que transmitia ao tribunal seria alguém que estaria numa relação de dependência com qualquer dos alegados intervenientes na suposta reunião.

      Nas alegações de recurso interposto da sentença que condenou em 1ª instância o arguido HH – e que foi revogada –, a defesa consignou que o depoimento em causa consubstanciava um mero “depoimento de ouvir dizer”, cuja fonte não era identificada e, nessa medida, não teria qualquer relevo probatório à luz do disposto no art.º 129.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

     Consciente dessa fragilidade, o Arguido, no depoimento que prestou no dia 21 de Fevereiro de 2013, no âmbito do Processo n.º 595/11.3PBBGC, em que era arguido o Ex.mo Eng.º BB e que teve por objecto o depoimento que o aí arguido prestou, na qualidade de testemunha, no P.D. n.º 269/2011, reportou uma diferente versão.

       Referiu o Arguido, no seu depoimento, o seguinte:

“Como é que o Sr. Engenheiro ... BB aparece depois, aqui, no … muito fácil, Sr. Doutor. Na Ordem dos Advogados, existe uma participação também contra o Dr. DD. Trocam-se… trocam-se…informações…aliás, a Dr.ª LL, em …em… não sei se em declarações, se em requerimento feito ao Conselho Superior da Magistratura, diz que foi por intermédio dos Advogados. Ou seja, o seu Exmo. marido e Advogado, contacta o Dr. DD, Advogado do Sr. EE que, depois lhe vai…o vai por em contacto … vai por em contacto com o Sr. EE. E, põe-no em contacto indo jantar uma noite. Eu já repeti, já disse aqui, outra vez. Não é com o Sr. HH que vai jantar, nem com o Sr. Eng.º ... , é com o Sr. EE. Foram jantar uma noite … e, já agora acrescento. Foi a esposa do Sr. EE que nos transmitiu este facto. Quer dizer, a gente… ninguém…ninguém inventa nada. Ninguém inventa nada”.

        De acordo com esta nova versão, a fonte do conhecimento do Dr. AA teria sido a ex-mulher do seu irmão EE, VV.

       Sucede que a referida cidadã não está em nenhuma relação de dependência – funcional ou outra – com qualquer dos alegados intervenientes na alegada reunião, nem com qualquer dos participantes do referido jantar, nem mesmo com o Sr. EE, de quem se encontra divorciada há vários anos, tendo ambos os cônjuges renunciado a qualquer pensão de alimentos.

      Todavia, o aí Assistente não ignorava que a referida fonte, integrando o mundo dos vivos, sempre poderia ser chamada a depor e a confirmar – rectius, infirmar – a afirmação que lhe imputam.

     Daí que, tendo falecido, no dia 9 de Maio de 2014, uma funcionária do seu irmão EE – de nome JJ – o Arguido achou por bem alterar a identidade da fonte, ensaiando a possibilidade de contornar a proibição do art.º 129.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

      Todavia, como havia referido o nome de XX no processo atrás referido, já no âmbito do Processo Criminal n.º 5/13.1..., que intentou contra aqui Assistente, o Arguido construiu uma tese híbrida, tese que viria a reiterar nos autos de acção cível em referência, a saber:

   - A falecida JJ teria visto e reportado ao irmão do Arguido a existência da reunião entre a Assistente, seu marido e 4 testemunhas;

       - A aludida VV teria reportado à esposa da testemunha ..., que o Sr. EE – com quem está incompatibilizada – lhe teria dito que ia jantar com uma Juíza, que a testemunha ... concluiu tratar-se da aqui Assistente.

     Ora, embora o Arguido nunca identifique o dia da suposta reunião nem do suposto jantar, importa referir que a mesma, a ter ocorrido – e não ocorreu – só faria sentido antes dia 7 de Novembro de 2011, data em que as testemunhas prestaram depoimento no PD n.º 269/2011.

      Todavia, antes dessa data, mal se compreende como é que as pretensas “fontes” poderiam, sequer, reconhecer a Assistente ou seu marido em qualquer reunião ou jantar – e muito menos atribuir relevância a tal acontecimento, a ponto de o reportarem a terceiros.

      Já que nenhum dos dois – a Assistente ou o seu marido – é natural de ... ou, sequer, residiu ou teve o seu local de trabalho ou lazer nessa cidade.

      E, com a excepção do dia em que se deslocaram ao Tribunal de ... para solicitar as certidões com as quais instruíram a defesa no P.D. n.º 269/2011, não mais voltaram a essa cidade, antes do dia 7 de Novembro de 2011.

      Sendo um absurdo que antes de 7 de Novembro de 2011 as pretensas fontes do conhecimento que o Arguido alega ter – uma pessoa já falecida – pudessem, sequer, reconhecer a Assistente ou o seu advogado.

      Agora, consciente desse absurdo, o Arguido volta a adaptar a sua estória: em vez de alguém ter visto a Assistente e o seu marido a entrar para o armazém do seu irmão EE, alguém ouviu “uma Senhora dizer que era Juíza” e “falar mal” do Arguido.

      “Falar mal” ao ponto de essa pessoa ter tomado a iniciativa de contactar a testemunha ..., assim procurando o Arguido também contornar a objecção já formulada, quando se disse ser incompreensível que alguém pudesse atribuir relevância ao suposto acontecimento, a ponto de o reportar a terceiros.

      É patente que o Arguido vai ajustando o relato do seu irmão, a testemunha ..., à medida que vai sendo, nos vários processos, confrontado com os obstáculos à sua tese.

       Pelo que, se algum reparo merece a douta decisão instrutória, este reside em não se ter dado como suficientemente indiciado que o Arguido soubesse serem falsas as imputações que proferiu, a respeito da dita reunião.

       Devem, por isso, improceder as conclusões U) a W) das doutas alegações.

       VI - Da suposta autoria de uma carta anónima.

  O Arguido, nos artigos 66.º a 85.º das doutas alegações, continua a sustentar que a Assistente é a principal suspeita da autoria da carta anónima remetida para o CSM em Agosto de 2013.

        Para tanto, alega que:

    “O aqui Recorrente apresentou queixa-crime contra incertos, indicando como suspeitos da carta anónima remetida ao CSM a assistente e a sua testemunha EE. Enumerou 24 indícios para que se investigasse se, na realidade, eles eram os autores da carta anónima (hoje indicaria mais um).

A Senhora Juíza Conselheira, agindo na sua veste de JIC, entendeu que a indiciação de alguém como suspeito de um crime, seria ofensivo da honra e consideração devidas ao suspeito, o que, obviamente não se aceita.

A vingar a tese do douto despacho recorrido, estaria encontrada a fórmula para mais ninguém indicar como suspeito de um crime quem quer que seja.

(…)

      Ora, o aqui recorrente limitou-se a remeter aos serviços do MP a carta anónima que foi recebida no CSM e que foi objecto de investigação em sede de inquérito disciplinar. Nada lhe aditou, retirou ou alterou.       Requereu que fosse apurada a autoria da mesma. Indicou 2 pessoas como suspeitas. Enumerou 24 indícios, bem concretizados, que deveriam ser a base da investigação da autoria.

Falhou o estado na sua função de investigação.

Não pode é, na sequência, afirmar-se que o ora Recorrente cometeu um crime de difamação”.

      Só que, mais uma vez, o Arguido não tem razão.

     Em primeiro lugar, cabe sublinhar que o Arguido não foi pronunciado por ter apresentado uma queixa crime nos serviços do Ministério Público, como erradamente alega.

      O Arguido foi pronunciado porque, muito antes de apresentar a dita queixa crime, no decurso das declarações que prestou na audiência de julgamento realizada na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., afirmou que a Assistente era autora de uma carta anónima.

      Conforme resulta do ponto 20 da douta decisão de pronúncia, onde se lê:

     “Dizendo ainda (a partir de 1h33m13s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

     «De resto, numa carta anónima para o Conselho, que o Conselho remeteu para o Supremo, que é da autoria da Doutora LL, digo já claramente, ela… é da autoria… eu vou demonstrar isso… oportunamente eu vou demonstrar, juntando as peças do puzzle (…) que, efectivamente, é da autoria dela e só pode ter sido ela a autora, embora com base, novamente, em informações do Senhor EE… o conluio está aqui permanente… é que agora dizem que au faço parte de uma rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Não sei como é que a minha conta bancária está tão pouco recheada… a minha e a dos meus filhos e a dos meus parentes está tão pouco recheada. Não entendo, confesso que não entendo.

Mas dizem mais. Dizem que violei uma funcionária judicial da qual tenho um filho. Nunca tinha, nunca tinha ouvido falar nisso. Agora é ex novo para mim, mas também é ex novo a outra, enfim… mas isso oportunamente a gente vai tratar dessa questão»”.

        Ou seja, o Arguido mistura propositadamente acontecimentos distintos: a queixa crime que deduziu e a prestação de declarações na Acção Ordinária n.º 704/12.5... .

      Acresce que, sendo verdade que o Arguido apresentou a queixa a que faz alusão, também é verdade que essa queixa deu origem ao Inquérito n.º 18/16.3..., que foi arquivado pelo Ministério Público quanto à matéria relativa à suposta carta anónima.

      Arquivamento com o qual o Arguido se conformou, já que não requereu, nessa parte, a abertura de instrução.

     

Apesar disso e em flagrante desrespeito pelo princípio da presunção de inocência, continua a dizer que a Assistente “é a principal suspeita da autoria da carta anónima remetida para o CSM em Agosto de 2013”.

      O que, por si só, é difamatório, como não ignora.

     Acresce lembrar que, nessa queixa, o Arguido escreveu que “A queixa é tempestiva porquanto o participante apenas tomou conhecimento do conteúdo da carta anónima em Dezembro de 2015”- realce nosso.

      Todavia, conforme resulta patente das declarações vertidas na douta decisão de pronúncia, o Arguido já conhecia o conteúdo da aludida carta em 15 de Janeiro de 2015.

       Conhecimento que omitiu dolosamente, para evitar que fosse considerado extinto, por caducidade, o seu direito de queixa.

       Falsidade que, por si só e porque incide sobre um pressuposto da prossecução processual, configura, quanto a essa queixa, o crime de denúncia caluniosa - Cfr., ... da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, págs. 541 e 542.

      Não sendo, por isso, verdade o que se diz no art.º 81.º das doutas alegações, quando se afirma que o Arguido nada aditou, retirou ou alterou. Até porque, para além da referida falsidade, o Arguido ainda aproveitou o ensejo para, nessa queixa, escrever que:

    “O uso do vocábulo - “gajo” - sugere confusão com os ex-maridos ou ex-companheiros da ora Denunciada (ou não foi ela quem entrou eufórica no Tribunal de Guimarães, dizendo «estou grávida, estou grávida». Mas não vão dar os parabéns ao Dr. QQ – se (sic) companheiro então – porque ele não é o pai!!!...)”.

      Por tais motivos, corre já inquérito visando o Arguido, por causa da apresentação da referida queixa crime.

      É, por isso, patente que a douta decisão de pronúncia não tem por objecto a apresentação da aludida queixa crime, mas sim as declarações prestadas pelo Arguido, muitos meses antes.

      O que o arguido muito bem sabe mas que despudoradamente finge desconhecer.

     Sem prejuízo, sempre dirá a Assistente que jamais escreveu qualquer carta anónima, designadamente aquela a que o Arguido faz alusão nos presentes autos.

       A Assistente, como Juiz de Direito que é – apesar da vontade em contrário do Arguido, que tudo tem feito para que deixe de o ser –, sabe que, nos termos do art.º 246.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, a denúncia anónima só pode determinar a abertura de inquérito quando dela se retirem indícios da prática de crime ou quando, ela própria, consubstanciar a prática de um crime.

     No caso da aludida carta anónima, parece minimamente claro que da mesma não se retiram quaisquer indícios da prática de crime ou infracção disciplinar, tal como foi considerado pelo Conselho Superior da Magistratura.

Qualquer jurista perceberia que assim é e que, consequentemente, a única relevância que a dita carta poderia ter seria no sentido da abertura de inquérito criminal contra o seu autor.

Ora, não se vê que interesse teria a Assistente, conhecedora que é das regras processuais, em fazer chegar ao seu órgão de gestão e disciplina uma carta anónima com o teor a que o Arguido alude, já que não poderia ignorar que a mesma apenas poderia relevar para a responsabilização do seu autor – e até, eventualmente, para a descredibilização da participação disciplinar que apresentara em 1 de Fevereiro de 2013.

Todavia e sem prejuízo do que acima se referiu quanto ao objecto dos presentes autos, vejamos, um por um, os alegados “24 indícios” que o Arguido elencou, quando apresentou a queixa a que agora faz alusão:

- Em primeiro lugar, quanto à data do envio da carta anónima, cabe dizer que tal não permite qualquer ilação quanto à sua autoria: basta ver a razoável distância temporal entre a participação apresentada pela aqui Assistente – 1 de Fevereiro de 2013 – e a data de envio dessa carta – 13 de Agosto de 2013.

Entre esses dois factos medeia uma distância de mais de seis meses, não se compreendendo – nem o Arguido tenta explicar – porque é que a Assistente, seis meses depois de apresentar uma participação disciplinar por si assinada, iria remeter ao órgão de gestão e disciplina uma carta anónima – só se fosse para retirar credibilidade à participação…

Em segundo lugar, quanto à sigla aposta na carta, esta também não contém qualquer valor indiciário no sentido pretendido pelo Arguido, muito antes pelo contrário.

Trata-se, aparentemente, das iniciais do nome YY – contra quem, em tempos, o Arguido apresentou queixa de natureza criminal e que, nessa sequência, foi condenado.

Mas, cabe ainda sublinhar que o marido da Assistente, Advogado contra quem o Arguido já formulou várias queixas – como afirma na presente – usa o nome profissional de ZZ, pelo que as iniciais “J. R.” também poderiam ser entendidas como correspondentes ao nome deste – ou, melhor, a uma tentativa de lhe imputar falsamente a autoria da referida carta.

Ora, a Assistente teria que estar completamente destituída das suas faculdades mentais para elaborar e enviar uma carta anónima a respeito do Arguido apondo nela as iniciais do seu marido, com quem o Arguido está em litígio!

- Em terceiro lugar, no que respeita à certidão do Processo Comum Colectivo n.º 251/02.3JELSB, se é certo que a Assistente a requereu e obteve, não menos certo é que se trata de processo público, sendo os factos objecto do mesmo conhecidos de um número indeterminado de pessoas, entre os quais os próprios intervenientes processuais.

Não se vê, por isso, qual o valor indiciário desse facto.

- Em quarto lugar, quanto à circunstância de o aludido YY ter declarado, em julgamento, coisa diversa do que consta do teor da carta anónima, nada permite concluir, muito menos no sentido da atribuição da sua autoria à Assistente.

O referido YY, porque era arguido num processo em que se lhe imputava a prática de um crime de difamação agravada que tinha como ofendido o aqui Arguido, terá prestado as declarações que entendeu mais convenientes à sua defesa – designadamente, com vista à sua absolvição ou à atenuação da sua responsabilidade –, desconhecendo-se se as mesmas correspondem ou não à verdade.

- Em quinto lugar, quanto ao alegado “estilo” da carta anónima, cabe dizer que o Arguido não concretiza, minimamente, em que é que se concretiza esse “estilo”, ou em que concretos pontos o mesmo se assemelha ao “estilo” de peças escritas pela Assistente.

O Arguido, à falta de melhor, invoca o incidente de suspeição/recusa apresentado pelo mandatário da Assistente no processo disciplinar n.º 333/2010, quando é certo que, no âmbito do processo comum singular a que faz alusão, foi decidido, com trânsito em julgado, não pronunciar a aqui Assistente pelos factos objecto desses autos – e que se consubstanciavam na elaboração e apresentação do aludido requerimento de suspeição/recusa.

- Em sexto lugar e quanto ao envio da carta anónima em Agosto de 2013, cabe dizer que tal nada indicia, sendo até absurdo, quando não ridículo, o que o Arguido escreve a tal propósito.

Na ideia do Arguido, a Assistente, que teve tempo para elaborar e apresentar, em 1 de Fevereiro de 2013, uma participação com 32 páginas, precisaria de esperar até às férias judiciais de Agosto para elaborar e enviar uma carta com duas ou três páginas.

Trata-se, pois, de um “pseudo-indício”, de que o Arguido lança mão para imputar, à força, a autoria da carta anónima à Assistente.

- Em sétimo lugar, no que concerne ao uso da expressão “verdadeiro Estado de Direito” supostamente empregue numa carta anónima remetida há cerca de 25 anos, cabe dizer que o Arguido se enreda numa teia de contradições para tentar retirar de um facto inexistente uma ilação sobre a autoria da carta objecto dos presentes autos.

A Assistente não conhece minimamente a suposta carta remetida há 25 anos – cujo conteúdo, aliás, o Arguido requereu que fosse ocultado à Assistente, certamente para benefício dos seus direitos de defesa.

Tratando-se de uma carta supostamente enviada há 25 anos atrás, e tendo a Assistente nascido em 22 de Agosto de 1972, não quererá o Arguido, por certo, imputar a sua autoria à Assistente.

Por outro lado, porque a Assistente não conhece essa suposta carta – como o Arguido bem sabe, já que diz ter a mesma em seu poder e até pede que não lhe seja mostrada –, não se compreende como é que a mesma poderia dar quaisquer “dicas” no sentido de a mesma ser da sua autoria.

De resto, foi o Ilustre Mandatário do Arguido no Processo Comum Singular n.º 595/11.3TBBGC quem, na audiência de julgamento realizada em 4 de Abril de 2013antes mesmo, note-se, da carta objecto dos presentes autos –, começou a dirigir à aqui Assistente perguntas sobre eventuais cartas anónimas, cuja existência esta desconhecia por completo, não compreendendo sequer as perguntas que lhe eram dirigidas, como é patente do registo áudio da sua inquirição, na qualidade de testemunha, que se junta.

Mais dizendo esse Ex.mo Advogado que estava uma carta anónima junta àquele processo ou que, se não estava, havia de aparecer.

Foi por isso que a aqui Assistente indagou junto do Conselho Superior da Magistratura sobre a existência dessas cartas.

E foi o Arguido quem, nas declarações que prestou na audiência de julgamento realizada no processo n.º 560/11.0TABGC, aludiu a uma carta anónima antiga, que até então pensava ser da autoria de um tal AAA, mas que, agora, pensava ser da autoria do seu irmão EE – os supostos autores das cartas mudam com o tempo, ao sabor do interesse do Arguido, que agora até diz que acrescentaria mais um...

O Arguido, sem qualquer fundamento, afirma um facto inexistente – a elaboração e envio pelo irmão EE da uma carta de há 25 anos – para sustentar as suas ilações quanto a outro facto inexistente – a elaboração e/ou envio pelo dito EE de outra carta e, não se percebe bem como, a elaboração e/ou envio, também pela Assistente, desta mesma carta.

       - Em oitavo lugar e no que se refere às notícias que saíram nos jornais, não se percebe que valor indiciário é que pode ter a alusão às mesmas na carta objecto destes autos.

Tratando-se de notícias publicadas em jornais nacionais de grande circulação, o mais normal será que as mesmas sejam do conhecimento de um grande número de pessoas – como, de resto, o Arguido alega quando se trata de pedir indemnizações com fundamento na divulgação dessas notícias –, nada permitindo individualizar, de entre estas, a Assistente.

      - Em nono lugar e quanto à alegada circunstância de a Assistente nem esconder o seu objectivo de prejudicar o Arguido na sua carreira, cabe dizer que tal objectivo apenas existe no espírito do Arguido.

A Assistente, nas participações que dirigiu ao Conselho Superior da Magistratura – cuja autoria não precisa de esconder, nem quer –, relatou factos que são, aos olhos de qualquer cidadão, incompatíveis com o acesso ao mais Alto Tribunal.

Tanto assim é que o Arguido, como já referido, foi condenado no processo disciplinar n.º 2012-85/PD – o que propositadamente omite – e viu descer a sua posição na graduação para acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Para tal, não foram precisas quaisquer cartas anónimas: bastou a verdade e a coragem de quem o denunciou.

       - Em décimo lugar, no que se refere à repetição da expressão “Esse gajo é um criminoso que usa a Beca para esconder o crime”, alegadamente contida na carta supostamente enviada ao Conselho Superior da Magistratura, trata-se de uma reedição do argumento já avançado pelo Arguido em sétimo lugar, incorrendo no absurdo já acima assinalado.

      - Em décimo primeiro lugar, no que respeita ao emprego do termo “Beca”, há que dizer que se trata, mais uma vez, da invocação de factos que são do conhecimento da generalidade das pessoas, não servindo para fundar a suposta autoria da Assistente.

      Refere o Arguido que a primeira carta anónima onde esse termo é empregue – e cuja autoria agora imputa, sem fundamento, ao irmão EE – foi remetida ao Conselho Superior da Magistratura há cerca de 25 anos.

      Nessa época, a Assistente não conhecia o Arguido. Não pode, por isso, ter sido a Assistente – que, há 25 anos, não era, ainda, Juíza – a escrever ou remeter essa carta. E, não tendo a Assistente conhecimento da mesma – pois que o Arguido diz tê-la em seu poder e até pretende esconde-la da Assistente –, não se percebe como é que, a partir dessa suposta carta, se pode concluir que a Assistente é autora da carta objecto destes autos.

       Não sendo a Assistente autora da carta remetida há 25 anos, fica demonstrado que não é preciso ser juiz para saber que a respectiva veste talar se denomina “beca”, já que se trata de facto acessível a qualquer cidadão com um mínimo de cultura geral – logo, a um número indeterminado de pessoas.

Por isso, também não se compreende como é que o emprego do termo “beca” pode indiciar o que quer que seja quanto à autoria da carta objecto dos autos.

- Em décimo segundo lugar, e quanto à alusão a uma qualquer sociedade entre o Arguido e o cidadão conhecido como ... “...”, cabe dizer que estão em causa factos que também foram amplamente noticiados na comunicação social e que são do conhecimento de um número indeterminado de pessoas da cidade de ... – por exemplo, o tal YY, condenado no mesmo processo que o cidadão ... “...” pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes.

Logo, o valor indiciário da menção às ditas sociedades é manifestamente nulo.

- Em décimo terceiro lugar, no que concerne à alusão, contida na carta, ao envolvimento, juntamente com o cidadão ..., numa rede internacional de tráfico de droga e de diamantes, cabe dizer que nunca a Assistente insinuou o que quer que fosse nesse sentido, não conseguindo, sequer, o Arguido identificar o processo no qual a Assistente teria feito a alegada insinuação.

Mais uma vez, trata-se de circunstância sem qualquer valor indiciário.

- Em décimo quarto lugar, quanto à suposta afirmação categórica desse envolvimento na rede internacional de tráfico de droga e diamantes, trata-se de reedição do argumento invocado em décimo terceiro lugar. Não se vê onde é que a Assistente afirmou o que quer que fosse a tal respeito, não se percebendo, de igual modo, em que é que tal contribui para lhe imputar a autoria da carta.

- Em décimo quinto lugar, no que se refere às alusões à apresentação aos cidadãos “...” e “...” e à suposta “iniciação” em quaisquer “andanças”, regista-se que o Arguido, à falta de melhor e para criar mais confusão, reedita o que já argumentou em “terceiro lugar”.

Nada mais há, por isso, que acrescentar ao que já antes se disse a esse respeito, para além de se sublinhar a constante petição de princípio em que incorre o Arguido, apresentando como premissa aquilo que pretende demonstrar: escreve “porque referem”, “porque repetem”, “porque afirmam”, dando sempre como assente a autoria da carta.

- Em décimo sexto lugar, quanto à notícia publicada no Semanário “Sol”, edição de 4 de Novembro de 2011, que o Arguido afirma ter sido “levada” pela Assistente, esta tem a dizer que, ao contrário do Arguido, não “levou” o que quer que seja a esse órgão de comunicação social, como de resto resulta da sentença proferida na Acção Ordinária n.º 704/12.5... .

Tratou-se de notícia publicada em jornal de circulação nacional, não se vendo qualquer conexão necessária entre a mesma e os termos constantes da carta anónima objecto destes autos, muito menos no sentido de se concluir que esta é da autoria da Assistente.

- Em décimo sétimo lugar, no que concerne à referência a sociedades, constata-se que o Arguido apenas está a retomar, ampliando, o que disse em décimo segundo lugar.

Em parte alguma, nas participações que formulou, a aqui Assistente afirmou ou sequer insinuou que as ditas sociedades servissem para “lavagem de dinheiro”, como o Arguido bem sabe.

Por isso, tal alusão, na carta objecto dos presentes autos, carece de qualquer valor indiciário.

- Em décimo oitavo lugar, e no que se refere à alusão ao “IRS”, quer a Assistente sublinhar o seguinte: quando na aludida carta se usam termos que o Arguido entende que só são do conhecimento dos juízes – veja-se o que diz a propósito do termo “beca” –, aí encontra um indício de que foi a Assistente a autora; quando, na mesma carta, se revela ignorância sobre as funções do Instituto de Reinserção Social, contraditoriamente, o Arguido também aí encontra um indício de que foi a Assistente a autora da carta; desta vez porque, diz, se trata de uma “tentativa despudorada de demonstrar ignorância”.

Ou seja: quer na carta se revele conhecimento supostamente reservado aos juízes, quer se revele ignorância daquilo que os juízes não podem ignorar, sempre o Arguido encontra indícios da autoria da Assistente.

Com a mesma ligeireza se diria que a carta é da autoria da Assistente caso a mesma apenas contivesse um desenho infantil.

Tudo serve ao Arguido, desde que seja para indiciar a culpa da Assistente.

O que só revela a má fé do Arguido e o intuito persecutório que o anima.

- Em décimo nono lugar, no que se refere às perguntas que a Assistente dirigiu ao Ex.mo Senhor Juiz Desembargador ..., no âmbito dos processos nºs 114/12.4... e 5/13.1..., quer a Assistente lembrar que foi o Arguido quem arrolou o Ex.mo Senhor Juiz Desembargador no Processo Comum Singular n.º 162/04.8..., no qual era assistente e era arguido o cidadão OO, conhecido como “...”.

E foi o Arguido quem, na Acção Ordinária n.º 704/12.5...., em que é autor e é ré a aqui Assistente, voltou a arrolar como testemunha, na Petição Inicial, o Ex.mo Senhor Juiz Desembargador Borges Martins. Vindo, depois, a alterar esse rol, não incluindo já a referida testemunha.

Porque se afigurou que a testemunha teria conhecimentos relevantes sobre a matéria objecto dos processos nºs 114/12.4... e 5/13.1... – já que a mesma é conexa, quando não mais uma repetição, da que é objecto da Acção Ordinária n.º 704/12.5...B – e porque em todos esses processos é referido o Processo Comum Singular n.º 162/04.8..., no qual a mesma também foi testemunha, entendeu a defesa da Assistente que seriam pertinentes as questões aí colocadas.

Pelo menos, para que se percebesse a habitual razão de ciência – ou falta dela – dos Ex.mos Magistrados que o Arguido tem o hábito de arrolar ou citar nos processos em que é participante, queixoso, ofendido, ou autor.

Jamais se insinuando o que quer que seja e, muito menos, se “forçando” o Ex.mo Senhor Juiz Desembargador a “confessar” qualquer crime de prevaricação – como se pode facilmente constatar pela leitura das perguntas e respostas, de resto dadas por escrito ao abrigo de prerrogativa que assiste à testemunha e que bastante tem prejudicado a Assistente.

Por outro lado, seria muito pouco inteligente da parte da Assistente o envio de cartas anónimas com imputações supostamente insinuadas em peças processuais constantes de processos públicos e cuja autoria lhe pode ser facilmente atribuída – mas o Arguido até considera plausível que a Assistente enviasse uma carta anónima com as iniciais correspondentes ao nome do seu marido, pelo que já nada surpreende…

De resto, se alguém, conhecedor do objecto dos aludidos processos, quisesse, maldosamente, imputar à Assistente as insinuações ou afirmações que o Arguido lhe quer à viva força “colar”, bastaria fabricar uma “carta anónima” com o teor daquela que é objecto dos presentes autos.

Com isso, conseguiria associar à Assistente o labéu pretendido pelo Arguido, assim descredibilizando por completo as posições por aquela assumidas nos vários processos em que é interveniente – e, desde logo, na participação disciplinar que esta apresentou junto do Conselho Superior da Magistratura.

Como resulta abundantemente demonstrado, só existe uma pessoa a quem a existência de uma “carta anónima” desse jaez interessa e que, simultaneamente, tem conhecimento de toda a factualidade em causa nos vários processos.

Essa pessoa é o próprio Arguido.

- Em vigésimo lugar, no que se refere à circunstância, aludida na carta objecto dos autos, de o Arguido ser ou não Inspector, importa relembrar a matéria de facto provada no processo disciplinar n.º 2012-85/PD, quanto à percepção que vários cidadãos de ... tinham relativamente à circunstância de aquele exercer funções inspectivas numa área que compreendia a comarca onde existiam, pendentes ou findos, vários processos em que era interessado.

E, bem assim, a valoração que o Conselho Superior da Magistratura fez sobre tal circunstância, a ponto de considerar violado o dever de lealdade e, inclusivamente, ter emitido comunicado público a anunciar a suspensão preventiva do exercício das funções inspectivas pelo Participante – cuja cessação definitiva, a final, determinou.

Como é natural, tal factualidade, para mais divulgada em órgãos de comunicação social de tiragem nacional, terá originado os habituais comentários por parte do público em geral. Público anónimo entre o qual se conta um número indeterminado de pessoas em conflito com o Arguido ou que dele guardam rancor.

Como a Assistente pôde verificar, pois que também recebeu, durante o período de maior exposição mediática do conflito, cartas em que cidadãos não identificados faziam queixas várias sobre o Arguido.

Como é natural, caso a Assistente quisesse permanecer no anonimato, não tinha apresentado as participações que apresentou junto do Conselho Superior da Magistratura – mal se compreendendo que, tendo apresentado tais participações, com o conteúdo reportado, ainda precisasse de endereçar cartas anónimas que, está convencida, apenas contribuíram para o arquivamento dessas queixas.

- Em vigésimo primeiro lugar, no que se refere ao relato de uma alegada violação de uma funcionária, cabe dizer que a única coisa que a Assistente ouviu contar corresponde, tal e qual, ao que o Arguido agora relata.

Num primeiro momento, na Acção Ordinária n.º 704/12.5... – e porque esta tinha, também, por objecto a excepção de má reputação do aí autor, mais tarde levada aos temas da prova –, a aqui Assistente e aí ré entendeu poder ser pertinente arrolar as pessoas a que o Arguido se refere, o que fez na Contestação.

Mais tarde, porque nada mais de útil soube a respeito do referido assunto, prescindiu dessas testemunhas.

Nada tem, por isso, a ver com o que se diz na carta anónima em causa nos autos, que desconhecia.

- Em vigésimo segundo lugar, no que se refere a “jogo a dinheiro no café desportivo”, sabe apenas a Assistente aquilo que contaram testemunhas arroladas pelo aqui Arguido, na Acção Ordinária n.º 704/12.5...: que, de facto, o Arguido jogava no dito café, “a bebidas”, ou seja, quem perdia o jogo pagava as bebidas dos restantes jogadores.

Nada sabe sobre rusgas de polícia nesse dito café ou sobre o mais que é referido na aludida carta anónima, tratando-se de temas que eram desconhecidos da Assistente.

- Em vigésimo terceiro lugar, quer a Assistente realçar que, ao contrário do “Colega ...”, ignora em absoluto o que é que se passa ou não no dito Palácio ..., que nem sequer sabe onde fica.

Aquilo que a Assistente sabe sobre a filiação do Arguido na Maçonaria – e que referiu na Contestação apresentada na Acção Ordinária n.º 704/12.5... – é apenas o que foi relatado, no processo disciplinar n.º 269/2011, pelo seu irmão EE e pela testemunha BB e, bem assim, noutro processo disciplinar em que foi junta – e admitida, por legalmente obtida – carta dirigida ao Arguido relatando uma reunião da loja “...” e, por fim, uma notícia do Jornal do Nordeste, publicada na época das eleições autárquicas de 2005, na qual se dava conta da aludida filiação.

- Em vigésimo quarto lugar, importa dizer que, quando a Assistente, na participação apresentada junto do Conselho Superior da Magistratura, em 1 de Fevereiro de 2013, aludiu à “Via Verde” de que beneficiava o Arguido, aludia – como resulta claro do teor da própria participação – à isenção de custas que este invoca e lhe é concedida.

Nunca se referiu a honorários de advogados, razão pela qual nenhum valor indiciário tem a referência feita a esse respeito na aludida.

Não quer deixar a Assistente de realçar que, apesar de afirmar que existem vinte e quatro indícios, todos concordantes, que apontam uniformemente no sentido de que aquela é a autora da aludida carta anónima, jamais diz o Arguido que actos de execução é que foram praticados por cada uma das pessoas contra quem apresentou a queixa respeitante a essa carta.

Parece que, na tese do Arguido, se trataria de carta escrita a quatro mãos.

Ou mais, até, já que também participa contra incertos.

Afinal, tantos indícios, tão uniformes e concordantes e, na verdade, o Arguido nem diz quem escreveu o quê.

Mais do isso, está convencida a Assistente que a dita “carta” apenas serviu os interesses do Arguido, que reuniu nesse escrito um conjunto de factos que se discutiam em vários processos nos quais era interessado e, ampliando e exagerando os mesmos, tentou – e, em parte, terá conseguido – diminuir alguma da credibilidade das participações apresentadas contra si no Conselho Superior da Magistratura.

Devem, por isso, improceder as conclusões X) a AD) das doutas alegações.

      

       VII - Do Direito


1) O preenchimento da tipicidade objectiva e subjectiva

     Estabelece o art.º 180.º, n.º 1, do Código Penal, “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.

    Ora, não ignorava nem ignora o Arguido que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça depende de concurso curricular e que a graduação dos vários candidatos compete ao Conselho Superior da Magistratura, com obediência a critérios objectivos decorrentes da lei e dos princípios da isenção, da imparcialidade e da prossecução do interesse público.

    Por isso, não ignorava o Arguido que insinuar que tal acesso e concurso curricular são determinados ou influenciados por “lóbis” é altamente lesivo do prestígio das instituições.

    Não ignorava, igualmente, que a insinuação de que a Assistente pertencia a um “lóbi” com os objectivos e resultados que referia é altamente ofensivo da honra e consideração que são devidos a qualquer pessoa.

    Em especial quando essa pessoa exerce funções na magistratura judicial, vinculada a especiais deveres de imparcialidade.

     Cabe recordar as considerações vertidas no acórdão do Conselho Superior da Magistratura de 9.11.2004, publicado na revista Sub Judice, n.º 32, Jul-Set de 2005, págs. 148 a 149:

     “(…) não parece possível defender que as suas declarações eram inócuas e que falar em lóbis é o mesmo que dizer que em todas as sociedades há grupos que se organizam, que é tudo normal e sem nenhum carácter negativo.

   Repare-se, desde logo, que antes de 2001, o conceito de lobbying não tinha sequer tradução em português, referindo-se-lhe José Pedro Machado (Estrangeirismos na Língua Portuguesa, Editorial Notícias, 1994, pág. 148), como «Lobby – corredor, passadiço; negócio, interesse comercial; grupo económico poderoso que procura impor uma política vantajosa, por diversos métodos, em diversos meios; grupo de influência».

     Com a publicação do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, a palavra passou aí a constar, nestes termos: «lóbi – 1. Grupo que tem como objectivo defender interesses comuns, exercendo pressão. 2. Grupo que frequenta as antecâmaras do parlamento para exercer influência no voto dos deputados, de acordo com o seu interesse» (II volume, G-Z, Verbo, 2001, pág. 2290).

    Sobre esta matéria, foi em 2000, publicada a dissertação de Doutoramento de Luís Nandim de Carvalho, com o título «Direito ao Lobying – Teorias, meios e técnicas» (Edições Cosmos), na qual se analisa toda a problemática envolvente (e onde se assinala que chegou a existir uma iniciativa legislativa do PSD, em 1998, para enquadrar juridicamente essa actividade, projecto que, entretanto, terá sido abandonado – págs. 277 e 306).

     Aí se reconhece que se trata de um tema «maltratado e polemizado emocionalmente na opinião pública portuguesa» (ob. Cit., pág. 16), salientando-se que, «entre os autores que se debruçaram sobre o tema, encontra-se normalmente a expressão lobby associada ao local de que tomou o nome, por ser aí que é desenvolvida; o corredor, ou sala, normalmente antecâmara do poder, ou do gabinete do decisor, ou então, o átrio do hotel, terreno neutro, onde se encontram os interlocutores em causa, o decisor público e o interessado ou peticionário de uma proposta cujo seguimento favorável depende do primeiro.

     Por exemplo, que está no lobby, ou aí se dirige para desenvolver uma actividade que o leva a contactar com o decisor, é o lobbyist, e necessariamente que a actividade se denominará lobbying.

      Desse ponto de partida vai um passo para associar a palavra lobby, grupo de influência, a grupo de interesse, a grupo económico, e ainda por correlação a pressão, a favoritismo, actividades ilegítimas, subterrâneas, ilegais, quiçá corruptivas e criminosas.

     Porém, a realidade dos factos está em caracterizar o lobbying como ele realmente deve ser entendido, como uma disciplina técnica, que goza de reputação e isenção entre os modernos instrumentos de gestão, actividade profissional ou empresarial indispensável ao desenvolvimento económico e social, infelizmente demasiado recente e por isso mesmo ainda não plenamente enquadrada por regulamentação própria, ou das instâncias legiferantes do poder, mas já listada nos anuários de consultoria internacional» (ob. Cit., pág. 277).

     Em todo caso, sempre os Tribunais e o poder judicial haverão de estar fora de tal actividade («Não há lugar a actividades de lobbying face ao poder judicial» - ob. cit., pág. 274): «Tradicionalmente afastado do poder político de gestão ou de administração, o poder judicial, pela sua independência não constitui um fórum privilegiado para o diálogo de interesses, antes para o julgamento de interesses. A imparcialidade, a aplicação da Lei, dura lex sed lex, não é de molde a permitir as actividades de concertação que directa ou indirectamente resultam de um processo de definição de políticas, seja por via legislativa seja por via administrativa” (ob. cit.,pág. 272)” – realces nossos.

     Ora, o que o Arguido insinua é que membros do Conselho Superior da Magistratura – órgão constitucional de gestão e disciplina –, alguns Srs. Juízes Conselheiros e a Assistente, Juiz de Direito, formaram um grupo de pressão ou de interesses.

     Grupo de interesse destinado a influenciar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

     Por forma a que, no acesso a esse Alto Tribunal, ao invés de valer o Direito e o interesse público, prevalecesse o propósito de prejudicar o Arguido ou motivações “anti-maçónicas”.

   Como é patente, a existência de um “lóbi” desta natureza representaria um grave entorse para o Estado de Direito.

    E a participação nesse “lóbi” seria um acto altamente vergonhoso, principalmente se praticado por magistrados que têm por única missão aplicar o Direito com imparcialidade.

     Por isso, a imputação à Assistente da participação num “lóbi”, para mais com os contornos descritos, constitui a afirmação, sob a forma de suspeita, de um facto altamente atentatório da honra e consideração que a esta são devidos.

     Tendo sido proferida pelo Arguido com o único propósito de ofender a Assistente na sua honra e consideração junto de terceiros, nomeadamente do Mm.º Juiz de Direito que presidia à audiência.

     Por outro lado, imputar à Assistente a realização, em conjunto com o seu advogado, de reuniões prévias com testemunhas a fim de combinar o conteúdo dos respectivos depoimentos consiste numa afirmação de facto falso e ofensivo da honra e consideração devidos à Assistente.

     Já que tal reunião se traduziria num comportamento destinado a falsear a prova testemunhal produzida no processo disciplinar n.º 269/2011.

     Ou, pelo menos, a condicionar a espontaneidade dos depoimentos das testemunhas que iriam ser inquiridas.

    Comportamento que o Arguido sabe que não ocorreu, não ignorando que a afirmação que produziu era susceptível de ofender, como ofendeu, a honra e consideração da Assistente.

     Tendo sido proferida pelo Arguido com o único propósito de ofender a Assistente na sua honra e consideração junto de terceiros, nomeadamente do Mm.º Juiz de Direito que presidia à audiência.

     Por fim, a imputação à Assistente da autoria de cartas anónimas com o conteúdo descrito pelo arguido consiste na afirmação de um facto falso objectivamente ofensivo da honra e consideração da assistente.

     Pois que escrever e enviar cartas anónimas com tal conteúdo consiste, manifestamente, num acto de desonestidade, ofensa e cobardia, próprio de quem atira uma pedra e esconde a mão.

     Acto que o Arguido sabe que não ocorreu, não ignorando que a afirmação que produziu era susceptível de ofender, como ofendeu, a honra e consideração da Assistente.

    Tendo sido proferida pelo arguido com o único propósito de ofender a assistente na sua honra e consideração junto de terceiros, nomeadamente do Mm.º Juiz de Direito que presidia à audiência.

    Encontra-se, por isso, preenchida a tipicidade objectiva e subjectiva do crime pelo qual o Arguido foi pronunciado, pelo que devem improceder as conclusões AE) a AL) das doutas alegações.

    

      2) A não exclusão da ilicitude

     É certo que, em princípio, no caso de declarações prestadas no âmbito de um processo jurisdicional e quando não se demonstre a sua falsidade, se deve considerar excluída a ilicitude em resultado da aplicação da causa de exclusão prevista no art.º 31.º, n.º 2, al. c), do Código Penal.

     Estabelece o normativo citado que “(…) não é ilícito o facto praticado (…) No cumprimento de um dever imposto por lei”.

     Conforme decidiu o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16.07.2008, proc. n.º 9613/2007-3, consultado em www.dgsi.pt.:

     “I. A testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no artº 360º do Código Penal.

     II. Depondo a testemunha no cumprimento de um dever legal, mesmo que os factos imputados à pessoa visada sejam em si difamatórios, nunca lhe poderá ser imputado o crime de difamação, estando neste caso afastado o dolo em qualquer das suas modalidades (…)”.

     No mesmo sentido decidiu o Ac. da Relação de Lisboa, de 26.03.2009, proc. n.º 7277/2008-9, consultado em www.dgsi.pt., em cujo sumário se lê que:

      “4. A testemunha quando é chamada a depor cumpre um dever que é imposto por lei, pois, em princípio, não se pode recusar a depor, e tem a obrigação de falar com verdade, sob pena de incorrer na prática do crime de falso testemunho, previsto no art.º 360º do C.P., realizando um interesse legítimo, e que radica no dever mais geral inerente a uma sociedade livre e solidária de denunciar a prática de um crime de que se tem conhecimento.

     5. Nesta posição, mesmo sabendo que com o seu depoimento pode lesar o bem jurídico protegido com a norma, a testemunha não pode recusar-se a depor.

    6. Ora, quem age no âmbito do cumprimento de um dever, estando obrigado a falar com verdade, mostra-se indiferente ao facto de as suas revelações poderem ou não atingir a honra e consideração do visado, pelo que, nestas circunstâncias está afastada a possibilidade do agente, ao imputar factos que em si são difamatório, querer ferir ou atingir a honra e consideração do visado”.

     E também neste sentido se pronunciou o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.04.2005, proc. n.º 05P756, consultado em www.dgsi.pt., em cujo sumário se refere que:

      “6. (…) está ausente a intenção, ou a consciência de injuriar, toda a vez que o arguido se limitou a depor no âmbito daquele processo, narrando o que de relevante conhecia, procurando somente a descoberta da verdade e não ofender quem quer que fosse”.

      No caso, caso o Arguido, ao prestar declarações na qualidade de parte, se tivesse limitado à matéria pertinente ao objecto do processo, teria actuado no cumprimento de um dever legal, sendo-lhe aplicável, por identidade de razão, a jurisprudência acima citada, relativa à prova testemunhal.

     Todavia, no caso dos autos, a imputação de pertença da Assistente a um “lóbi”, nos termos descritos, não tinha qualquer pertinência com o objecto da Acção Ordinária N.º 704/12.5... .

     Nessa acção, o Arguido pedia a condenação da Assistente no pagamento de uma indemnização com fundamento em alegados danos não patrimoniais decorrentes de notícias na comunicação social, alegando que a fonte dessas notícias era a Assistente.

     O Arguido nunca alegou, nos articulados que apresentou, que os danos sofridos se tivessem traduzido no impedimento da sua entrada no Supremo Tribunal de Justiça ou na descida da sua posição na graduação para acesso a esse tribunal.

     E, como tal, não pediu qualquer indemnização por esse suposto impedimento ou por essa descida de posição, a que nunca aludiu antes das declarações que prestou.

     Não tendo requerido qualquer ampliação do pedido ou da causa de pedir de molde a que tais supostos danos pudessem ser considerados naquela acção - designadamente, como consequências das aludidas notícias.

    Acresce que o Arguido nunca alegou, antes da prestação de declarações de parte, que a Assistente integrasse qualquer “lóbi” poderoso, destinado a afastá-lo do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

     Não sendo esse o facto ilícito em que baseava a sua pretensão.

     Por tal motivo, esses supostos factos não foram vertidos nos articulados e não integravam a causa de pedir ou os temas de prova.

     Sendo as afirmações proferidas pelo arguido desnecessárias e até inúteis para a demonstração de qualquer facto controvertido na Acção Ordinária N.º 704/12.5.... .

    Pois que, se, de facto, a Assistente integrasse um “lóbi” poderoso, do qual seriam membros elementos do Conselho Superior da Magistratura, a ponto de conseguir impedir o seu acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, mal se compreenderia que a mesma necessitasse de ser fonte de quaisquer notícias.

     De resto, a este propósito, o Arguido enreda-se numa dupla petição de princípio, círculo vicioso ou dialelo, que consiste em utilizar duas proposições indemonstradas para concluir pela sua demonstração recíproca.

     Assim: afirma que a Assistente é fonte das notícias, porque integra um “lóbi”; e afirma que a Assistente integra um “lóbi”, porque é a fonte das notícias; como ambas as premissas - ser a fonte das notícias ou integrar o “lóbi” - estão indemonstradas, é patente a dupla petição de princípio.

     Razão pela qual a alegação, indemonstrada, de que a Assistente integraria um “lóbi” nada podia, por seu turno, demonstrar com utilidade para a decisão da causa.

    Do mesmo modo, o objecto da Acção Ordinária n.º 704/12.5... não era o que se havia passado no processo disciplinar n.º 269/2011, os depoimentos das testemunhas que aí foram ouvidas ou a ocorrência de qualquer reunião entre estas, a Assistente e o seu advogado.

     Já que, como já se referiu, o Arguido baseou o seu pedido nos alegados danos resultantes da publicação de notícias cuja origem imputa à assistente e não de quaisquer factos ocorridos no aludido processo disciplinar.

     Por tal motivo, a ocorrência desses supostos factos não foram vertidos nos articulados e não integravam a causa de pedir ou os temas de prova.

     Sendo as afirmações proferidas pelo Arguido desnecessárias e até inúteis para a demonstração de qualquer facto controvertido na Acção Ordinária N.º 704/12.5... .

     Pois que, ainda que se demonstrasse a ocorrência da aludida reunião, não se vê em que medida é que tal poderia demonstrar que a Assistente era fonte de qualquer notícia - nem o Arguido explica como é que tal ilação se poderia retirar.

     Por fim, o objecto da Acção Ordinária n.º 704/12.5... nada tinha que ver com o envio de quaisquer cartas anónimas e, por tal motivo, a ocorrência desse suposto facto não foi vertida nos articulados e não integrava a causa de pedir ou os temas de prova.

     Sendo as afirmações proferidas pelo Arguido desnecessárias e até inúteis para a demonstração de qualquer facto controvertido na Acção Ordinária n.º 704/12.5... .

     Mais uma vez, a este propósito, o Arguido enreda-se numa dupla petição de princípio, círculo vicioso ou dialelo, que consiste em utilizar duas proposições indemonstradas para concluir pela sua demonstração recíproca.

    Assim: afirma que a Assistente é fonte das notícias, porque enviou uma carta anónima ao CSM; e afirma que a Assistente enviou a dita carta anónima, porque é a fonte das notícias; como ambas as premissas - ser a fonte das notícias ou enviar a carta anónima - estão indemonstradas, é patente a dupla petição de princípio.

     Razão pela qual a alegação, indemonstrada, de que a Assistente teria enviado a dita carta anónima nada podia, por seu turno, demonstrar com utilidade para a decisão da causa.

     De resto, não se vislumbra qual a regra de experiência comum que permite, com base na eventual demonstração do envio de uma carta anónima ao CSM, extrair a ilação de que a Assistente seria a fonte das notícias em causa na referida acção.

     Se, acaso, a Assistente tivesse acesso à comunicação social, nos termos que o Arguido alega, não se compreende para que é que precisaria de escrever cartas anónimas. O mesmo se podendo dizer se acaso aquela integrasse um qualquer “lóbi” poderoso.

     De tudo quanto vem de ser dito resulta que também não poderá o Arguido ver a ilicitude da sua conduta excluída nos termos do art.º 180.º, n.º 2, do Código Penal, nos termos do qual

     “A conduta não é punível quando:

     a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos;

    b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

     Sendo as afirmações proferidas pelo Arguido inúteis e impertinentes para a apreciação da matéria em discussão na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., não se vê que interesses legítimos poderiam as mesmas satisfazer.

      Ao que acresce que o Arguido apenas sustenta as imputações que formulou nas suas próprias especulações ou em supostos relatos de outiva produzidos pelo seu irmão ... que, pelos seus termos vagos, jamais poderiam ser fundamento sério para que aquele, em boa fé, pudesse reputar como verdadeiras esses imputações.

      Sublinhe-se que a Assistente foi punida disciplinarmente, quer no processo que o Arguido instruiu - 333/2010 -, quer nos dois processos - 179/2011 e 269/2011 - iniciados com base em participações pelo mesmo formuladas.

      Sendo certo que, no último caso, a Assistente foi punida por ter alegadamente proferido afirmação que jamais proferiu, como resulta da sentença proferida no Processo Comum Singular n.º 2396/14.8T8LSB, já transitada em julgado.

      E que tal condenação teve, como único respaldo probatório, o depoimento do aqui Arguido.

      Não se vê, pois, como é que a Assistente poderia integrar um “lóbi” poderoso, juntamente com vogais do CSM, capaz de influenciar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, quando nem sequer conseguiu evitar a sua condenação disciplinar.

      Nenhum outro meio de prova trouxe o Arguido aos presentes autos que permitisse sustentar objectivamente as imputações que formulou e que sabe serem falsas.

     O Arguido é Juiz Desembargador, pressupondo-se que sabe distinguir o que constitui prova por presunção daquilo que mais não é do que um conjunto de falácias e mexericos - mal estaríamos se assim não fosse.

      Não faz, por outro lado, qualquer sentido a invocação de uma suposta violação da “autoridade do caso julgado”.

        Estabelece o art.º 628.º, do Código de Processo Civil, que, “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação”.

     Do normativo citado pode concluir-se que o caso julgado é a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado.

      Conforme esclarece Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 567, “O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário. O caso julgado torna indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja, o conteúdo da decisão deste órgão”.

 O efeito de caso julgado desdobra-se num efeito positivo, ou autoridade de caso julgado, e num efeito negativo, ou excepção de caso julgado.

 Lançando mão do ensinamento do mesmo autor – in “O Objecto da Sentença e o Caso Julgado material”, B.M.J., n.º 325, págs. 164 a 168 –, o efeito positivo do caso julgado consiste na vinculação do tribunal à não contradição e à repetição da decisão anterior, ao passo que o efeito negativo resulta no impedimento do tribunal à repetição e à contradição da decisão anterior.

      No campo da proibição de contradição anterior, o efeito positivo e o efeito negativo distinguem-se em função da identidade do objecto processual: se o objecto é o mesmo, estamos no campo da excepção de caso julgado; se o objecto é diverso relevará, em certos casos, a autoridade do caso julgado.

 Esta demarcação entre a excepção de caso julgado e a autoridade do caso julgado surge formulada, com clareza, na jurisprudência, de que se citam, a título de exemplo, o Ac. da Relação do Porto, de 2.04.1998, proc. n.º 9830401, o Ac. da Relação de Lisboa, de 21.06.2007, proc. n.º 1737/2007-6, e o Ac. da Relação de Coimbra, de 15.03.2005, proc. n.º 4128/04, todos acedidos em www.dgsi.pt.

     A autoridade do caso julgado, ao contrário da excepção, não exige uma rigorosa identidade entre objectos processuais, bastando para tal que exista uma determinada conexão.

      Assim, quando exista uma relação de identidade entre objectos processuais – que ocorre quando o objecto da decisão transitada for idêntico ao do processo subsequente –, o caso julgado vale, no processo posterior, como excepção de caso julgado.

      A situação já será de apreciar à luz do efeito positivo do caso julgado quando, não obstante a falta de identidade, ocorra conexão relevante entre objectos processuais, designadamente, quando entre ambos exista uma relação de prejudicialidade, em termos tais que a decisão a proferir na segunda acção possa produzir um efeito contraditório com a primeira decisão.

      Neste sentido, refere M. Teixeira de Sousa, in Estudos cit., pág. 575, que “A relação de prejudicialidade entre objectos processuais verifica-se quando a apreciação de um objecto (que é o prejudicial) constitui um pressuposto ou condição do julgamento de um outro objecto (que é o dependente). Também nesta situação tem relevância o caso julgado: a decisão proferida sobre o objecto prejudicial vale como autoridade de caso julgado na acção em que é apreciado o objecto dependente. / Nesta hipótese, o tribunal da acção dependente está vinculado à decisão proferida na causa prejudicial. Assim, por exemplo, o reconhecimento da propriedade na acção de reivindicação vale como autoridade de caso julgado num processo posterior em que o proprietário requer a condenação da contraparte no pagamento de uma indemnização pela ocupação indevida do imóvel”.

      Deste modo, verificada tal conexão, o tribunal está vinculado a respeitar a autoridade do caso julgado na decisão que venha a proferir sobre o mérito da causa. Ou seja: ao invés de se abster de conhecer do mérito – como sucede nos casos em que se verifica identidade de objectos e, por isso, excepção de caso julgado –, o tribunal está obrigado a, conhecendo do fundo da causa, respeitar a decisão transitada em julgado.

      Todavia, o efeito positivo do caso julgado também tem limites subjectivos: em princípio, os terceiros não podem ser prejudicados ou beneficiados pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participaram – Cfr., neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos cit., págs. 588 a 590.

     Ora, nenhuma relação de identidade ou de prejudicialidade existe entre os objectos processuais em causa no Processo Comum Singular n.º 595/11.3PBBGC, no Processo Comum Singular n.º 114/12.4TRPRT e nos presentes autos.

       No caso do Processo Comum Singular n.º 595/11.3PBBGC não existe, sequer, identidade de sujeitos, pois a Assistente não foi assistente, arguida ou parte civil nesses autos, que têm por objecto factos distintos daqueles que estão em causa no presente processo.

      No caso do Processo Comum Singular n.º 114/12.4TRPRT ainda nem sequer ocorreu o trânsito em julgado, pois o aqui Arguido, aí assistente, recorreu do douto acórdão que absolveu a aqui Assistente e seu Advogado dos crimes que lhes eram imputados.

      O objecto deste último processo também não se confunde com o dos presentes autos, já que estão em causa factos distintos.

      De todo o modo, a autoridade do caso julgado não se forma autonomamente sobre os fundamentos de factos ou de direito da decisão - Cfr., Miguel Teixeira de Sousa, Estudos cit., págs. 579 a 583 -, razão pela qual tal efeito nunca poderia ter a extensão pretendida pelo Arguido.

      Pela mesma ordem de razões, não faz qualquer sentido invocar os princípios da igualdade e da confiança jurídica, posto que, nos vários processos a que alude o Arguido, estão em causa factos diferentes.

      Salientando-se que:

      - No caso do Processo Comum Singular n.º 595/11.3PBBGC, em que era assistente o Arguido, estava em causa o depoimento de uma testemunha prestado em resposta a perguntas concretas formuladas no âmbito de processo disciplinar;

      - No caso do Processo Comum Singular n.º 114/12.4TRPRT, em que era assistente o Arguido, estava em causa o conteúdo de defesa escrita apresentada em processo disciplinar no qual estava proposta uma pena de demissão, com base em factos relatados em participação do aqui Arguido;

      - Nos presentes autos, estão em causa declarações de parte que o Arguido prestou, por sua iniciativa, em acção por si proposta com vista à obtenção de uma indemnização de € 500.000,00, em que a maior parte das quais não corresponde a respostas a perguntas concretas.

      Não se vê, pois, em que medida é que os princípios da igualdade ou da confiança jurídica podem vincular o Venerando Tribunal ad quem aos fundamentos de direito das decisões proferidas naqueles dois outros processos.

      Cabendo ainda lembrar que, quer no Processo Comum Coletivo n.º 114/12.4..., quer no Processo Comum Coletivo n.º 5/13.1...R, o Supremo Tribunal de Justiça determinou que a aí arguida, aqui Assistente, fosse pronunciada.

      Pelo que, a invocar-se o princípio da igualdade, sempre o mesmo implicaria conclusão oposta à sustentada pelo aqui Arguido.

      No devido tempo, poderia o Arguido obstar à “desigualdade” de que agora se queixa e poupar ao Venerando Tribunal ad quem todo o trabalho que as suas iniciativas processuais certamente têm dado.

       Assim tivesse mostrado abertura para uma solução consensual – o que, infelizmente, nunca aconteceu.

       Por fim, refira-se que o aqui Arguido interpôs recurso das decisões absolutórias proferidas, entre outros, no Processo Comum Singular n.º 595/11.3..., no Processo Comum Coletivo n.º 114/12.4... e no Processo Comum Coletivo n.º 5/13.1... .

      O que fez sustentando interpretação diametralmente oposta dos normativos agora invocados como causas de exclusão da tipicidade ou da ilicitude.

     É, por isso, manifestamente descabida a invocação de “falta de consciência da ilicitude”.”

       Termina, pedindo a improcedência do recurso apresentado pelo arguido, e em consequência, a manutenção da douta decisão de pronúncia.


***

   

       Remetido o processo à distribuição, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu parecer, constante de fls. 228, dando por reproduzida a resposta apresentada pelo Ministério Público, a fls. 128 e 129, à qual nada mais se lhe ofereceu acrescentar.


***

      Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o arguido silenciado.

      A assistente CC, a fls. 238 a 243, apresentou resposta, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nos termos seguintes (em transcrição integral):

      “O douto parecer da Digna Magistrada do Ministério Público parece ignorar que o acórdão a que se refere, proferido no âmbito de processo no qual era arguida a aqui Assistente e assistente o aqui Arguido, revogando uma decisão de não pronúncia proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, concluiu pela pronúncia da aí arguida (aqui Assistente), sujeitando-a a julgamento.

     Não se vê, por isso, qual a pertinência da citação daquele acórdão para a decisão a proferir nos presentes autos - a não ser que seja, claro está, a de reforçar o bem fundado da pronúncia do aqui Arguido.

      Sem prejuízo e ainda a respeito da citação do acórdão proferido em 9.04.2015, no Processo n° 5/13.1...1, cumpre lembrar o seguinte:

      - Aqueles autos n.° 5/13.1..., S1 tinham por objecto o teor de um depoimento prestado pela ali arguida (aqui Assistente) na qualidade de testemunha, no Processo n°593/11.7...C; por isso, a ali arguida estava obrigada a prestar depoimento, sendo certo que todas as suas afirmações foram produzidas na sequência de perguntas dos Advogados de cada uma das partes;

     - Os presentes autos têm por objecto o teor de afirmações produzidas pelo Arguido no âmbito de declarações de parte que, ao abrigo do disposto no art.° 466.°, do Código de Processo Civil, prestou na qualidade de Autor na Acão ordinária n° 704/12.4..., da então ... Vara Cível de Lisboa; nessa medida, a prestação dessas declarações resultou de requerimento do próprio Arguido, tendo muitas - praticamente todas, aliás - das afirmações sido produzidas em discurso livre e extravasando o objeto do processo, já que se referiram a supostos “factos” que não haviam sido alegados por qualquer das partes nos articulados daquela ação.

      Por outro lado, ao contrário do que se defende no douto parecer do Ministério Público, as afirmações produzidas pelo Arguido, no contexto de declarações de parte que o mesmo, por sua iniciativa, prestou em audiência de julgamento, não são apenas portadoras de um “juízo negativo”, exageradas, desproporcionadas ou excessivas.

      Designadamente:

      - No segmento em que afirmou que a Assistente fazia parte de um “lóbi” anti-maçonaria, do qual também fazem parte membros do Conselho Superior da Magistratura e do Supremo Tribunal de Justiça, com vista a prejudica-lo na sua (dele) graduação para o acesso ao referido Alto Tribunal;

      - No segmento em que afirmou que a Assistente, seu Advogado e testemunhas que depuseram no processo Disciplinar 269/2011 teriam realizado uma reunião e combinado previamente entre si o conteúdo dos depoimentos que as últimas iriam prestar neste processo;

      - E, por fim, no segmento em que imputa a Assistente a autoria de uma carta anónima, da qual resulta que o arguido faz parte de uma rede internacional de tráfico de droga e de diamantes e que teria violado uma funcionária da qual tem um filho.

      Tais imputações não têm a mínima base factual ou aderência a realidade, pelo que não se vislumbra como lhes poderá ser apenas atribuído o qualificativo de “excessivas” ou “exageradas” - inventar algo que nunca aconteceu não é o mesmo que exagerar.

     Tais imputações, necessariamente, comportam uma potencialidade ofensiva do núcleo essencial de honra e consideração devidas a Assistente, ao ponto de transporem o patamar da dignidade penal e da necessidade de tutela penal, assumindo a carga ofensiva pressuposta para a incriminação a título de difamação.

      De resto:

      Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Processo n° 5/13.1..., no acórdão de 9/04/2015 - que concluiu pela pronúncia da aqui Assistente, então arguida: “a justificação jurídico-penal da conduta ofensiva da honra que se traduz na imputação de factos não depende, apenas, da realização de um interesse legítimo, a lei impõe ainda que o agente prove a verdade da imputação ou que haja tido fundamento sério para, em boa fé a reputar de verdadeira. A boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do agente, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva. Por outro lado, essa específica causa de justificação do art. 180.º/2 do CP, é inaplicável à formulação de juízos de valor ofensivos, por impossibilidade de preenchimento da condição da alínea b)“ - realce e sublinhado nosso.

      Mais entendendo que “Os juízos de valor excedem os limites do depoimento e, por isso, o cumprimento do dever de prestar depoimento não pode justificar apreciações sobre o carácter do assistente que não pertencem ao objecto do depoimento” - realces e sublinhados nossos.

      E que “o objecto do depoimento incide sobre factos”.

      Ora, nos presentes autos, impõe-se concluir que o Arguido, ao prestar declarações de parte na Ação Ordinária n.° 704/12.4..., extravasou o objecto do processo, do qual se afastou livre, voluntária e conscientemente, para, por sua livre iniciativa, discorrer sobre matérias que não haviam sido alegadas nos articulados ou vertidas nos temas de prova, proferindo afirmações, comentários e juízos de valor sem qualquer pertinência para o que naquela ação se discutia.

      Sendo as afirmações, que proferiu, além de despropositadas, patentemente inverosímeis para qualquer pessoa de boa fé.

  Motivo pelo qual nunca poderá o Arguido beneficiar da dirimente da ilicitude prevista no art.° 180.°, n.° 2, do Código Penal.

      Nem, tampouco, invocar em seu benefício o cumprimento de um dever - o de testemunhar -, pois, por um lado, no depôs na qualidade de testemunha, antes prestando, por sua livre iniciativa, declarações de parte; por outro lado, porque as afirmações e juízos de valor que produziu não tinham qualquer pertinência ou, sequer, utilidade para o objeto da ação, do qual voluntariamente se alheou.

      Acresce que:

      No âmbito do processo n.° 114/12.4TRPRT, a tutela da honra do agora Arguido, então nas vestes de assistente, prevaleceu sobre o direito de defesa da aqui Assistente, que se viu pronunciada pelo Supremo Tribunal de Justiça e condenada a pagar ao Assistente uma indemnização de €10.000,00, por ter formulado afirmações de factos que se demonstrou serem verdadeiros e juízos de valor relativos a esses mesmos factos, apesar de formulados em defesa escrita apresentada no âmbito de um processo sancionatório, secreto, de natureza disciplinar.

      Aí se considerou que, apesar de estarem em causa afirmações de facto que se demonstrou serem verdadeiras, as mesmas não tinham pertinência com o objeto dos autos de processo disciplinar em que a aqui Assistente era visada ou utilidade para a sua defesa nesses autos.

     Constatando-se que o mesmo Ministério Público que, agora, pugna pela não pronúncia do Arguido, ao invés, nesses autos de processo comum n.° 114/12.4TRPRT pugnou pela condenação da aqui Assistente, sem que se vislumbre razão atendível para o contraste patente nas posições processuais defendidas num e noutro processo.

Face ao exposto e salvo o devido respeito por diverso entendimento, os factos acima descritos integram a prática, pelo arguido, do crime p. e p. pelo artigo 180.º, n.° 1, do Código Penal, devendo concluir-se pela improcedência do recurso do arguido.

    Com o que assim se verá, apenas e tão só, aplicada ao aqui Arguido a mesma jurisprudência seguida por esse Alto Tribunal nos autos em que aquele foi assistente e a aqui Assistente foi arguida.”.


***

   Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

***

           

Questões propostas a reapreciação e decisão

           

      O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, onde o recorrente resume as razões de divergência com o decidido na decisão instrutória recorrida. O recorrente sintetiza as razões de discordância com o decidido, do modo que segue:

Questão I – Nulidade do despacho de pronúncia, nos termos dos artigos 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por omissão de pronúncia sobre as causas de justificação da conduta previstas no artigo 31.º do Código Penal - Conclusões A) e B).

Questão II - Caducidade do direito de queixa - Conclusão C).

Questão III - Violação da autoridade do caso julgado - Conclusões I) a K).

Questão IV - Verificação da causa de justificação prevista nas alíneas b) e c) do artigo 31.º do Código Penal, bem como da prevista no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal - Conclusões D) a H).

Questão V - Falta de consciência da ilicitude - Conclusão M).

Questão VI - Inconstitucionalidade do artigo 180.º do Código Penal, por violação dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que comete tal crime quem, em declarações de parte, em que está obrigado a dizer a verdade, “afirma que se criou um lóbi negativo relativamente à sua imagem e que teve lugar reunião para se combinar as perguntas e respostas que teriam lugar no âmbito da inquirição em processo disciplinar da assistente, como lhe foi relatado por pessoa da sua confiança” - Conclusões N) a AD).

Questão VII - Atipicidade da conduta ou, quanto muito, eventual subsunção no crime de denúncia caluniosa - Conclusões L) e AE) a AL).


***

           

       Apreciando. Factos suficientemente indiciados.

      A factualidade pela qual o recorrente foi pronunciado e que está ora em causa, face ao presente recurso, é a constante da decisão instrutória de fls. 62 e segs. (transcrição apenas dos factos que foram considerados suficientemente indiciados, relevantes para apreciação do recurso interposto, relativos à assistente CC, já que a decisão instrutória que pronunciou o arguido quanto aos factos respeitantes ao assistente BB é irrecorrível, tendo pois, quanto a essa parte, a decisão instrutória seguido para julgamento):

       “(…)

9. No âmbito do referido depoimento, prestado 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s, o arguido AA afirmou:

Dizem-me alguns colegas, inclusive aqui da Relação de Lisboa, dizem-me: “Olha que a tua imagem pública nunca mais vai ser a mesma, por muito que demonstres as falsidades e as calúnias, nunca mais vai ser a mesma, porque a imagem já passou. Olha que se formou um lóbi negativo relativamente à tua pessoa e sabes o que é que se diz? Diz-se o seguinte: Aqueles que te conhecem continuam a considerar-te um juiz honesto, sensato, com capacidades, com … enfim … um juízo de reputação. Os outros, sabes o que dizem? És um juiz de quem a juíza e o irmão disseram coisas graves e dizem coisas graves”.

10. E, mais adiante (a partir de1h37m05s do mesmo trecho), acrescenta:

Estive graduado em oitavo lugar ex aequo com o sexto. Já na altura não entrei por causa destes processos, porque se andou … agora já sei isto, agora já sei … andou-se a pedir a … a … juízes conselheiros para não se jubilarem precisamente para eu não entrar precisamente por causa destas … deste conjunto de … de … de denúncias caluniosas que a Doutora LL e advogado e da imagem pública que, efectivamente, se repercutiu com base naquilo que a Senhora Doutora LL…”.

11. E, prosseguindo no dito depoimento, (a partir de 1h37m48s), disse o arguido:

Agora estou graduado em décimo nono, sôtor, e foram buscar à idoneidade nove pontos menos”.

12. Sendo que, a partir de 1h39m00s do referido registo das suas declarações, o arguido acrescentou, a instância do seu Advogado:

Não tenho dúvidas, sôtor, que há. Mas há lóbis, sôtor … há um lóbi formado … o lóbi está formado e está montado

13. Prosseguindo E prossegue:

(…) sôtor, deixe-me dizer isto, eu andei muito tempo… e o sôtor sabe isso muito bem… andei muito tempo não preocupado com a história da Maçonaria … (…) Mas eu nunca estive preocupado com isso … confesso … acusar-me de fazer parte da Maçonaria, de fazer parte de outra coisa qualquer, quero lá saber que ela me acuse disso … é a opinião dela, não vale absolutamente nada. Só agora é que me apercebi, é que me dei conta de onde é que ela queria verdadeiramente chegar. Quando vejo agora este lóbi que se formou, a ponto de o Doutor II, que é o marido da Doutora ..., ter que intervir já no Alfa a perguntar “Mas vocês conhecem-no? – Ah, não. – Ah, é que, se calhar têm a opinião errada, olha que a minha mulher é adjunta dele e diz isto, isto e isto. – Ah, ainda bem que dizes isto, porque assim, a gente começa a, começa a …”. Tá a ver? Depois o lóbi está formado. E este lóbi é um lóbi mais poderoso do que aquilo que eu pensava.

E é um lóbi… aliás, têm aí um ponta-de-lança, que é o Doutor ..., que foi ele próprio que… e, aliás, confessado por ela… que lhe abriu as portas da imprensa e … e … e … e … que, efectivamente, que, efectivamente, conduziu àquilo que conduziu.

E este lóbi, este lóbi tem-me prejudicado bastante”.

14. Para, a partir de 1h41m05 das referidas declarações, referindo-se à assistente e à circunstância de, à data dos factos objecto do processo disciplinar n.º 269/2011-PD em que foi arguida, a mesma já integrar o dito “lóbi”, dizer:

Portanto, mas ela, como fazia parte deste lóbi – tá a ver? –, sentia-se protegida, pensava que gozava de impunidade”.

15. Assim, conforme se pode ouvir na passagem correspondente a 1h42m50s da sessão realizada em 20.01.2015, entre as 9h37m35s e as 12h16m02s:

Advogado da Ré – Isto tem alguma coisa a ver com o lóbi poderosíssimo ou poderoso de que Vossa Excelência fala?

Autor – Muito provavelmente, sôtor. Eu aí … eu isso sinto. Ainda não tenho os elementos todos em meu poder. Sinto. Mas sinto.

Advogado da Ré Quem é que integra, então, esse lóbi?

Autor Eh… olhe: o Doutor Marinho Pinto, a Doutora LL e algumas pessoas das relações deles, provavelmente, que eu ainda não … ainda não identifiquei … ainda não consegui chegar lá. Mas vou chegar lá, garanto que vou chegar lá.

Advogado da Ré Há um lóbi, então, contra si?

Autor Ai há, há, sôtor.

Advogado da Ré O Conselho Superior da Magistratura não faz parte desse lóbi?

Autor Eh… provavelmente alguns membros … eh … se calhar alguns membros, sôtor. Se calhar alguns membros. Eu não sei, eu não sei se a Doutora LL tem relacionamento com alguns dos membros do Conselho Superior da Magistratura, eu não sei. Estou a investigar. Quer dizer… no momento ainda não sei, mas estou a investigar. Garanto-lhe que estou a investigar”.

16. Não ignorando que a imputação que fazia à assistente a respeito da sua participação num “lóbi” anti maçonaria com vista a prejudicá-lo na graduação para o Supremo Tribunal de Justiça era objectivamente atentatória da sua honra e consideração, agiu o arguido com o propósito de desconsiderá-la e ofendê-la, enquanto pessoa e enquanto juiz, junto de terceiros, com consciência perfeita da ilicitude da sua conduta, o que quis e conseguiu.

17. Ainda no âmbito do aludido depoimento prestado na Acção Ordinária n.º 704/12.5..., o arguido afirmou que a aqui assistente, o seu advogado e algumas das testemunhas que depuseram num processo disciplinar – o Processo n.º 269/2011 – teriam realizado uma reunião e combinado previamente entre si o conteúdo dos depoimentos que as últimas iriam prestar nesse processo.

18. Dizendo (a partir de 24m29s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

 “E então, junto do Doutor DD obtém a … a … o conhecimento do Senhor EE que a põe ao corrente, que a põe ao corrente da … da … dos indivíduos que estavam em contencioso comigo.

Quem são os indivíduos que estavam em contencioso comigo?

É o próprio, por razões que se prendiam com um processo-crime … eh … que estava … em que ele esteve… portanto, tinha o julgamento marcado para dia 6 de Outubro e no dia 6 de Outubro lhe perdoei – já agora, a título de parêntesis, quero dizer aqui isto, porque … só para evitar que me… esquecer-me disto, que é muito importante – e logo no dia 7, eu perdoo-lhe no dia 6 de Outubro e logo no dia 7 o Senhor EE, ao meu irmão ... e à empregada da casa, uma tal FF, diz isto, virou-se para ela e diz-lhe: “Olha, tu vais ter que me … que me prestar contas destes vinte e tal anos que andas a gerir aquilo que é meu e dos meus irmãos e quanto ao outro – o outro, referia-se a mim – ele vai saber o que é doce, porque já tem uma juiz à perna”. Isto no dia 7 de Outubro de 2011.

Vim posteriormente a saber, aliás, agora já o posso dizer, já o disse no outro dia no Tribunal da Relação de Guimarães, já o posso dizer porque, infelizmente, a senhora… na altura eu omiti, omiti a identificação da pessoa que me disse isto porque era funcionária do Senhor EE e eu não queria que fosse objecto de represálias, mas entretanto e infelizmente a senhora faleceu e eu agora já não tenho problemas em dizer que era a Dona JJ que ouviu… viu e ouviu estarem reunidos no armazém do Senhor EE antes do dia 6, antes do dia 6 de Outubro, não … não posso precisar datas … eh…reunidos, o Senhor EE, o António … o… eh … BB, o BB, conhecido por ..., e o HH, com ela. E dizem-me também com o seu Excelentíssimo marido e Advogado. E que a Senhora Juiz é nessa … nessa reunião que lhes fazia uma série de perguntas e que lhes ensinava as respostas que havia de dar. Isto foi-nos transmitido pela Dona JJ, a mim e ao meu irmão ....

Portanto, estamos no dia 6 de Outubro, e no dia 7 de Outubro já o Senhor EE dizia “isto. O meu irmão ..., provavelmente para não me aborrecer, não me disse nada…”.

19. Ciente estando que, ao imputar à assistente a realização de reuniões prévias com testemunhas a fim de combinarem os respectivos depoimentos, a ofendia na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, não se coibiu de fazê-lo, bem sabendo que a sua conduta não era permitida e que, com ela, desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

20. Dizendo ainda (a partir de 1h33m13s das declarações prestadas em 15.01.2015, entre as 9h45m32s e as 13h12m46s):

De resto, numa carta anónima para o Conselho, que o Conselho remeteu para o Supremo, que é da autoria da Doutora LL, digo já claramente, ela … é da autoria … eu vou demonstrar isso … oportunamente eu vou demonstrar, juntando as peças do puzzle (…) que, efectivamente, é da autoria dela e só pode ter sido ela a autora, embora com base, novamente, em informações do Senhor EE … o conluio está aqui permanente… é que agora dizem que au faço parte de uma rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Rede internacional de tráfico de droga e diamantes. Não sei como é que a minha conta bancária está tão pouco recheada … a minha e a dos meus filhos e a dos meus parentes está tão pouco recheada. Não entendo, confesso que não entendo.

Mas dizem mais. Dizem que violei uma funcionária judicial da qual tenho um filho. Nunca tinha, nunca tinha ouvido falar nisso. Agora é ex novo para mim, mas também é ex novo a outra, enfim… mas isso oportunamente a gente vai tratar dessa questão”.

21. Bem sabendo que ao imputar à assistente a autoria de uma carta anónima com o aludido conteúdo ofendia-a na sua honra e consideração, enquanto pessoa e enquanto juiz, ciente de que a sua conduta não era permitida e que com ela desconsiderava-a perante terceiros, o que quis e conseguiu.

22. O arguido – até por ser magistrado e estar colocado na Secção Criminal de um Tribunal Superior – sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo agido com vontade livre e consciente.”.

***

Apreciando. Fundamentação de Direito.

           

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões (artigos 402.º, 403.º e 412.º do Código de Processo Penal), onde o recorrente sintetiza as razões de discordância com o decidido.

Passando, então, à apreciação das questões suscitadas pelo recorrente.

       Questão I – Nulidade do despacho de pronúncia, nos termos dos artigos 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, por omissão de pronúncia sobre as causas de justificação da conduta previstas no artigo 31.º do Código Penal.

       Invoca o recorrente nas conclusões de recurso [A) e B)], ser o despacho de pronúncia nulo “nos termos dos arts. 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, aplicáveis ex vi do disposto no art. 4.º do CPP, porque não se pronunciou sobre as alegadas causas de justificação da conduta consagradas no art. 31.º do C. Penal: exercício de um direito e cumprimento de um dever”.

       As normas do Código de Processo Civil apenas são aplicáveis no âmbito do processo penal quando, como indica o artigo 4.º do Código de Processo Penal, existam casos omissos, isto é, quando não exista solução expressa no Código do Processo Penal para determinada situação.

      Invoca o recorrente a nulidade da decisão instrutória por alegadamente esta não se ter pronunciado sobre as eventuais causas de justificação da conduta consagradas no artigo 31.º do Código Penal (exercício de um direito e cumprimento de um dever).

       Fundamenta tal pretensão nos artigos 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal.

     Importa, pois, antes de mais, verificar se não existe norma expressa no Código de Processo Penal que regule a matéria das nulidades da decisão instrutória.

      O Código de Processo Penal dispõe de norma própria em matéria de omissão de pronúncia, a saber, o artigo 379.º, n.º 1, alínea c).

      Tal dispositivo é tributário do princípio geral do direito processual, de acordo com o qual o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da primeira parte do n.º 2 do artigo 608.° do Código de Processo Civil (dantes, artigo 660.º, mantendo-se inalterada a redacção do n.º 2 antigo), aplicável ex vi do artigo 4.° do Código de Processo Penal.

      Assim, omitindo o tribunal este dever de julgamento, isto é, quando o juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respectiva decisão é nula – artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil [dantes, artigo 668.º, mantendo a alínea d) a redacção da antiga alínea)] e artigo 379.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.

      A omissão de pronúncia significa, na essência, ausência de posição ou de decisão do tribunal em caso ou sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa sobre questões que lhe sejam submetidas, ou que o juiz oficiosamente deve apreciar. Por sua vez, o excesso de pronúncia significa que o tribunal conheceu de questão de que não lhe era lícito conhecer.

      Como refere Oliveira Mendes no Código de Processo Penal Comentado, Almedina 2016, 2.ª edição revista, págs. 1132/3, a propósito do artigo 379.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal: “A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submente à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidas pela parte em defesa da sua pretensão”.

      Como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal, a propósito da omissão de pronúncia prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, a mesma só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença; a pronúncia cuja omissão conduz a nulidade é referida ao concreto objecto submetido à cognição do Tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas (assim, acórdão do STJ de 21-01-2009, proferido no processo n.º 111/09 - 3.ª Secção, que refere: “a pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.° do CPP - a nulidade da sentença - deve incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegados”).

       Acerca da omissão de pronúncia respiga-se o que já escrevemos no acórdão de 11 de Junho de 2014, no processo n.º 14/07.0TRLSB.S1 (branqueamento de capitais) e que se retomou no acórdão de 30 de Novembro de 2017, no processo n.º 403/12.8JAAVR.G2.S1, em que se decidiu arguição de nulidade por omissão de pronúncia do acórdão de 21 de Junho de 2017, versando burla qualificada e roubo agravado:

       “A omissão integradora de nulidade

      A nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.° do Código de Processo Civil, fonte da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.° do CPP, consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o não conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes.

     Nesse sentido, a doutrina e jurisprudência distinguem entre «questões» a decidir e «razões», «considerações», ou «argumentos», produzidos na defesa das teses em presença, formulação de juízos de valor alegados pela parte; a falta de apreciação das primeiras consubstancia a verificação da nulidade; o não conhecimento dos segundos, será irrelevante.

     Neste exacto sentido se pronunciou a Revista dos Tribunais, a propósito da alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do Código de Processo Civil - RT, 61.º - 134; 68.º - 190; 77.° - 147; 78.º - 172; 89.º - 456; 90.º - 219.

      Na Doutrina, podem ver-se, a propósito, João de Castro Mendes, “Manual de Processo Civil”, Lisboa, 1963, Depositário Coimbra Editora, págs. 409 a 412, onde se lê:

       “Objecto da prova são factos. Não argumentos, razões, pontos ou questões de direito”; Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 1970, volume III, pág. 247; José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume 5.°, págs. 137 e 143; Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 84.°, pág. 137, Ano 93.°, pág. 9; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição, Lex, Lisboa, 1997, págs. 219/221.

      Em Abílio Neto, “Código de Processo Civil Anotado”, 5.ª edição, págs. 501 e ss., e 9.ª edição, págs. 515 e ss., pode ler-se:

      “A omissão de pronúncia, causa de nulidade da sentença, consiste no facto de o juiz ter deixado de proferir decisão sobre questão de que devia conhecer. Assim, não há relação directa entre fundamentos ou razões de que as partes se socorrem e omissão de pronúncia.

       A doutrina e a jurisprudência estão de acordo que ela não ocorre só porque o juiz deixou de apreciar qualquer consideração produzida pela parte. (...)

       É constante a jurisprudência no sentido de que o tribunal não julga divergências teóricas sobre teses jurídicas.”.

       Para Paulo Cunha, “Processo Comum de Declaração”, II, págs. 356 e ss., se o juiz, em vez de julgar, se abstém de proferir decisão a respeito de determinado ponto, a omissão de decisão não constitui vício de conteúdo da sentença, um vício substancial, antes incide apenas na actividade da elaboração da sentença, sendo portanto, um vício formal.

      Sobre este ponto, opina recentemente, António Oliveira Mendes, no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1182, dizendo: “A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão”.

      Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, podem ver-se, em tempos mais recuados, os acórdãos de 13-02-1959, proferido no processo n.º 57.341, BMJ n.º 84, pág. 416; de 02-02-1960, BMJ n.º 94, pág. 305; de 13-03-1962, BMJ n.º 115, pág. 282; de 13-01-1967, BMJ n.º 163, pág. 313; de 13-05-1969, BMJ n.º 187, pág. 79; de 02-07-1974, processo n.º 64.863, BMJ n.º 239, pág. 168 [a nulidade da 1.ª parte da alínea d) do n.º 1 do art. 668.° do CPC (aplicável à 2.ª instância por força do disposto na l.ª parte do n.º 1 do art. 716.°) só se verifica quando o juiz deixe de se pronunciar sobre alguma questão que devesse apreciar e não sobre algum argumento produzido pelas partes]; de 06-01-1977, BMJ n.º 263, pág. 187; de 26-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 406; de 30-10-1987, BMJ n.º 370, 471; de 16-03-1989, BMJ n.º 385, pág. 552; de 27-07-1990, BMJ n.º 399, pág. 460; de 03-10-1990, BMJ n.º 400, pág. 567; de 02-02-1993, recurso cível n.º 82 330, no caso reconhecendo nulidade por omissão de pronúncia em revisão de sentença estrangeira, in CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 108.

      Conforme estabelece o artigo 379.°, n.º 1, alínea c), primeira parte, do Código de Processo Penal (alínea introduzida, bem como o n.º 2, pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, correspondendo aquela a uma transposição do dispositivo do artigo 668.°, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil), é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, sendo tal disposição correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, por força do n.º 4 do artigo 425.° do mesmo diploma.

       A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.

      Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetem à apreciação do tribunal (então, artigo 660.º n.º 2, do Código de Processo Civil, hoje, artigo 608.º) e as que sejam de conhecimento oficioso, de que o tribunal deva conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual.

      Como uniformemente tem sido entendido neste Supremo Tribunal de Justiça, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que como tal tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.

       A pronúncia cuja omissão determina a consequência prevista no artigo 379.°, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal - a nulidade da sentença - deve incidir sobre problemas, os concretos problemas, as questões específicas sobre que é chamado a pronunciar-se o tribunal (o thema decidendum), e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou razões alegadas.

     Como de forma clara, dizia o acórdão do STJ de 11 de Novembro de 1987, proferido no processo n.º 38.920, in BMJ n.º 371, pág. 374, há que distinguir: uma coisa é uma «questão» sobre a qual o Tribunal tem de se pronunciar, nos termos do artigo 660.°, n.º 2, do CPC, outra é uma «razão», ou um «argumento» para se decidir de outro modo o problema.

       Neste sentido, podem ver-se os acórdãos de 01-06-1971, BMJ n.º 208, pág. 126; de 22-03-1979, BMJ n.º 285, pág. 254; de 10-07-1979, BMJ n.º 289, pág. 235; de 11-01-2000, proferido no processo n.º 1089/99, BMJ n.º 493, pág. 385 (firmado em sede de propriedade horizontal, onde se afirma que “a omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 668.°, n.º 1, alínea d), e 716.°, n.º 1, do Código de Processo Civil, só existe se o Tribunal não resolver todas as questões que deva apreciar, sendo que essas questões não se confundem com os argumentos, as razões ou os pressupostos em que as partes fundam as suas posições na controvérsia”); na síntese do acórdão de 19-06-2002, processo n.º 1450/01: “a nulidade da alínea c) do n.º 1 do art. 379.° do CPP não resulta da omissão de conhecimento das razões, mas sim de questões”; de 30-11-2005, processo n.º 2237/05; de 21-12-2005, processo n.º 4642/02; de 11-01-2006, processo 3013/04-3.ª, onde se afirma que a respeito de omissão de pronúncia interessa ter presente que “não há omissão de pronúncia quando o tribunal conhece da questão que lhe é colocada, mesmo que não aprecie todos os argumentos apresentados, como impressivamente resulta da alínea c) do n.º 1 do art. 379.° do CPP, ao declarar a nulidade da sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questão que devesse apreciar”; de 27-04-2006, processo n.º 1287/06; de 25-06-2006, processo n.º 1389/5.ª; de 25-10-2006, processo n.º 2170/06-3.ª; de 08-11-2006, processo n.º 967/06-3.ª (com citação de Rodrigues Bastos, Notas ... ); de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 25-01-2007, processo n.º 3943/06-5.ª; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07-3.ª; de 17-1-2008, processo n.º 607/07-5.ª; de 06-03-2008, processo n.º 4634/07-5.ª; de 26-03-2008, processo n.º 820/08-3.ª; de 07-05-2008, processo n.º 1132/08-3.ª; de 03-07-2008, processo n.º 1312/08-5.ª; de 16-09-2008, processo n.º 2491/08-3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 1881/08-5.ª; de 08-10-2008, processo n.º 3068/08-3.ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3.ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08-5.ª; de 19-11-2008, processo n.º 3776/08-3.ª; de 11-12-2008, processo n.º 3850/08; de 08-01-2009, processo n.º 3861/08-5.ª; de 21-01-2009, processo n.º 111/09-3.ª; de 18-02-2009, processo n.º 4128/08-3.ª; de 12-03-2009, processo n.º 3781/08-3.ª, por nós relatado; de 14-05-2009, processo n.º 96/09, por nós relatado; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 5/05.5PBOLH.SI-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 313/03.0JABRG.S1-5.ª; de 21-10-2009, processo n.º 192/08.0GDLRS.L1.S1-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 22/07.0GACUB.E1.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 845/09.6JDLSB.S1-3.ª; de 27-04-2011, processo n.º 20/10.7SSLSB.S1; de 13-07-2011, processo n.º 127/09.3PCPRT.P1.S1-3.ª; de 15-12-2011, processo n.º 17/09.0TELSB.Ll.S1-3.ª; de 9-02-2012, processo n.º 131/11.1YFLSB-3.ª, em caso de foro especial, em processo respeitante a magistrado do Ministério Público; de 12-07-2012, por nós relatado no processo n.º 350/98.4TAOLH.E1.S1; de 24-10-2012, processo n.º 2965/06.0TBLLE.E1.S1-3.ª; de 18-04-2013, processo n.º 180/05.9JACBR.C1.S1-5.ª; de 11-07-2013, processo n.º 631/06.5TAEPS.G1.S1-5.ª.

       Porém, o artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal diz respeito a sentenças, sendo aplicável, por via da remissão operada pelo artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, de igual forma, aos acórdãos proferidos em recurso.

      Não existindo remissão expressa que permita a aplicação na norma constante da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal às decisões instrutórias, cumpre averiguar se – à semelhança do que é o entendimento do recorrente – é de aplicar subsidiariamente, ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal, os artigos 613.º, n.º 3 e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, ou se, ao invés, é de considerar que inexiste qualquer omissão/lacuna que cumpra suprir - como considera a assistente na resposta apresentada, a fls. 140 e segs..

      

       Vejamos.

      A instrução vem regulada nos artigos 286.º e seguintes do Código de Processo Penal.

     O artigo 309.º, do mesmo diploma legal tem como epígrafe “Nulidade da decisão instrutória”, estabelecendo, no seu n.º 1, que “A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.

      É também nulo o despacho instrutório que não contiver as menções dos artigos 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3 e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

       Ou seja, existem normas processuais penais expressas, em sede de instrução, que prevêem os casos em que se verifica a nulidade da decisão instrutória.

      Assim, entende Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, UCP, págs. 805 e segs., pontos 4 e 5, que refere:

       “A faculdade da remissão [referindo-se à faculdade de remissão para os factos e incriminações enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução] não inclui a discussão dos indícios (artigo 97.º, n.º 5), pelo que a omissão da discussão dos indícios no despacho instrutório constitui uma irregularidade resultante da violação do disposto no dito art. 97.º, n.º 5. Não se verifica uma nulidade já que este elemento da decisão instrutória (a discussão dos indícios) não está incluído no artigo 308.º, n.º 2, conjugado com o artigo 283.º, n.º 3.

      Com efeito, é irregular o despacho instrutório que omita a pronúncia sobre questões que o tribunal devia apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Por exemplo, é irregular um despacho instrutório que se pronuncia sobre a admissibilidade do pedido de indemnização civil, como é irregular um despacho de pronúncia que omita a discussão sobre os indícios ou um despacho que omita a decisão sobre nulidade arguidas na instrução (é o caso do acórdão do TRL, de 23.9.1992, in CJ, XVII, 4, 201). Se se tratar de um despacho de pronúncia que não conheça de questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não devesse apreciar, a irregularidade deve ser arguida perante o juiz de instrução e cabe recurso do despacho judicial que indefira a irregularidade do despacho de pronúncia (artigo 310.º, n.º 3, por identidade de razão), subindo o recurso com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo ao processo (artigo 407.º, n.º 3) (acórdão do TRL, de 10.1.1996, in CJ, XXI, 1, 148, e acórdão do TRG, de 18.10.2004, processo 1425/04-1, embora admitindo a subida imediata). Se se tratar de um despacho de não pronúncia que não conheça de questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não devesse apreciar, a respectiva irregularidade pode ser arguida e conhecida no recurso interposto do despacho de não pronúncia (artigo 379.º, n.º 2, por identidade de razão).”.

      Esta parece ser a leitura mais correcta a realizar de todas as disposições legais acima citadas. Ou seja, existindo normas expressas, no âmbito do processo penal, que tratam da matéria da nulidade – da sentença e da decisão instrutória – não nos parece que exista alguma lacuna ou omissão por parte do legislador penal que cumpra suprir através da aplicação subsidiária das normas específicas do Código de Processo Civil.

       Tendo o legislador processual penal tratado especificamente tal matéria, certo será que, nas disposições legais supra citadas, terá elencado todas as situações de nulidade da sentença e da decisão instrutória que pretendeu enquadrar como tal, inexistindo, pois, qualquer lacuna que legitime a aplicação das normas de processo civil. Tanto mais que, teve o cuidado de, no que se refere aos acórdãos proferidos em sede de recurso, remeter para o regime das nulidades da sentença, nos termos do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, não tendo feito qualquer outra remissão a propósito de qualquer outro tipo de decisão/despacho, o que apenas poderá querer dizer que não o fez porque intencionalmente não o quis fazer.

       Na verdade, como se pode ler no Parecer n.º 70/99 do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, de 27-01-2000, publicado no Diário da República, II Série, de 18/05/2000:

      “A lacuna é sempre uma incompletude, uma “incompletude contrária ao plano” da lei (ver nota 48).

       Mas, lacuna “não é tudo o que não está na lei” (ver nota 49). Isto é, para além das questões estranhas no âmbito da regulação jurídica intentada pela lei, que caem no espaço livre do Direito ou respeitam a qualquer outra ordem normativa, nem todos os silêncios, omissões ou falhas da lei constituem lacunas. Há “silêncios eloquentes” da lei que são significativos e traduzem a resposta a certa questão de direito (ver nota 50).

       A existência ou não de lacuna - escreve Larenz (ver nota 51)- “há-de aferir-se do ponto de vista da própria lei, da intenção reguladora que lhe serve de base, dos fins com ela prosseguidos e do “plano” legislativo”.

      Para Baptista Machado (ver nota 52), existirá uma lacuna “quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global - ou melhor: não contêm a resposta a uma questão jurídica”.

       Segundo Karl Engisch (ver nota 53), “não podemos falar de uma lacuna no direito (positivo) logo que neste não exista uma regulamentação cuja existência nos representamos. Não nos é lícito presumir pura e simplesmente uma determinada regulamentação, antes temos de sentir a sua falta, se queremos apresentar a sua não existência como uma “lacuna”. Mas a inexistência da regulamentação em causa pode corresponder a um plano do legislador ou da lei e então não representa uma “lacuna” que tenha de se apresentar sempre como uma “deficiência” que estamos autorizados a superar.

     Uma lacuna de lege ferenda apenas pode motivar o poder legislativo a uma reforma do direito, mas não o intérprete ao preenchimento da dita “lacuna”. A colmatação das lacunas pelo intérprete pressupõe uma lacuna de lege lata.

       Há, pois, que distinguir entre lacunas da lei e falhas de política legislativa.

      “A fronteira entre uma lacuna da lei e uma falha da lei na perspectiva da política legislativa só pode traçar-se na medida em que se pergunta se a lei é incompleta comparada com a sua própria intenção reguladora ou se somente a decisão nela tomada não resiste a uma crítica de política legislativa (...)

       Mas a pauta de valoração posta como base é diferente em cada passo: num caso é a intenção reguladora e a teleologia imanente à própria lei; no outro caso são pautas de uma crítica, fundamentada em termos de política legislativa, dirigida à lei. Se a lei não está incompleta mas defeituosa, então o que está indicado é não uma integração de lacunas, mas, em última instância, um desenvolvimento do direito superador da lei.” (ver nota 54).

       Enfim, não basta, para a existência de uma lacuna jurídica em sentido próprio, que “a situação se possa considerar, em abstracto, susceptível de tratamento jurídico, mas é preciso que este seja exigido pelo ordenamento jurídico concreto. Bem pode acontecer, com efeito, que certo caso não encontre cobertura normativa no sistema, sem que isso fruste as intenções ordenadoras deste. Razões político-jurídicas ponderosas podem estar na base da abstenção do legislador. “Esses silêncios eloquentes” da lei não têm de ser supridos pelo juiz, ainda que este, porventura, em seu critério, entenda o contrário. Diz-se, por isso, que tais faltas de regulamentação constituem lacunas impróprias (de lege ferenda, de jure constituendo, político-jurídicas, críticas, etc.), que eventualmente poderão vir a desaparecer em futuros desenvolvimentos do sistema, a cargo dos órgãos competentes" (ver nota 55).

       A integração de uma lacuna jurídica supõe a interpretação, quer no momento da determinação da lacuna, quer no do respectivo preenchimento (ver nota 56). De outro modo: a questão de saber se “numa dada hipótese a lei deve ser entendida em termos de se concluir que certos factos pertencem ao domínio do jurídico, é novamente uma questão de interpretação” (ver nota 57).”.

       Ora, no caso em apreço, o legislador processual penal elencou e regulou especificamente quer os casos de nulidade da sentença, quer os casos de nulidade da decisão instrutória, tendo tido o cuidado de prever a aplicação, aos acórdãos proferidos em recurso, do regime de nulidades previsto para a sentença. Inexiste, pois, qualquer lacuna que permita a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil.

     Posto isto, cumpre perguntar: será aplicável às decisões instrutórias apenas o disposto nos artigos 309.º e 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3 e 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, ou, pelo contrário, para além destes dipositivos legais, será ainda aplicável o disposto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal?

      Neste Supremo Tribunal a questão foi (implicitamente) abordada no acórdão de 4 de Dezembro de 2008, proferido no processo n.º 2823/08 - 3.ª Secção, publicado na CJSTJ, 2008, tomo III, págs. 243 e segs., tendo sido aplicado o regime da nulidade de sentença, previsto no artigo 379.º, do Código de Processo Penal a uma decisão instrutória.

       Contudo, não perfilhamos tal opinião. Com efeito, o artigo 379.º do Código de Processo Penal diz respeito apenas a sentenças e, por via da remissão constante do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, aos acórdãos proferidos em recurso. Nenhuma outra remissão foi feita pelo legislador que, com certeza, o teria feito se assim o entendesse.

      Mais, as sentenças e os acórdãos proferidos em recurso são actos processuais com estrutura e requisitos - constantes dos artigos 374.º a 377.º e 425.º do Código de Processo Penal - bem diferentes dos exigidos para uma decisão instrutória, previstos nos artigos 307.º e 308.º do mesmo Código.

       Destas disposições legais verifica-se que a decisão instrutória de pronúncia – atenta a própria natureza da instrução que, nos termos do artigo 286.º do CPP, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – possui uma estrutura mais próxima de uma acusação do que de uma sentença, pelo que, naturalmente, as causas de nulidade de tal acto processual terão de ser diferentes das instituídas para as sentenças, proferidas após julgamento com fixação de matéria de facto, e acórdãos proferidos em recurso.

      Em suma, à semelhança do que entende Paulo Pinto de Albuquerque, no já indicado “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª edição, UCP, págs. 805 e segs., pontos 4 e 5, considera-se que, estando em causa (na perspectiva do recorrente) um despacho de pronúncia que alegadamente não conheceu de questão que devia ter apreciado, o eventual vício de que a decisão instrutória padeceria seria o da irregularidade (artigo 123.º do Código de Processo Penal), e não o da nulidade, como pretende o recorrente, sendo que tal “irregularidade deve ser arguida perante o juiz de instrução e cabe recurso do despacho judicial de pronúncia (artigo 310.º, n.º 3, por identidade de razão), subindo o recurso com o que vier a ser interposto da decisão que ponha termo ao processo (art. 407.º, n.º 3) (acórdão do TRL, de 10.1.1996, in CJ, XXI, 1, 148, e acórdão do TRG, de 18.10.2004, processo 1425/04-1, embora admitindo a subida imediata).”.

       O recorrente invocou a eventual irregularidade apenas em sede de recurso, ou seja, a mesma não foi tempestivamente invocada, pelo que a existir sempre estaria sanada.

       Ainda que se entendesse que a alegada omissão de pronúncia constituiria uma nulidade - invocável ao abrigo do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, posição que não se perfilha - ou caso a irregularidade tivesse sido tempestivamente invocada, sempre haveria que concluir pela inexistência de qualquer vício.

      Com efeito, na apreciação de um eventual vício da decisão instrutória há que ter em conta o âmbito desta decisão, sendo que, como já sobejamente referido, as meras razões, argumentos e opiniões expostos pelos sujeitos processuais não fazem parte do thema decidendum.

      Ora, como já tivemos oportunidade de indicar, a decisão instrutória de pronúncia tem uma estrutura em tudo semelhante à acusação, sendo o seu âmbito delimitado pela finalidade da instrução, isto é “a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (artigo 286.º do Código de Processo Penal).

       Assim, o que a decisão instrutória deve conter é a verificação da prova recolhida e o seu exame, por forma a aferir se, em termos indiciários, estão ou não verificados os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. E isto foi feito pela decisão instrutória: a mesma indicou a factualidade constante da acusação que considerou suficientemente indiciada, motivando fundamentadamente a razão pela qual o fez, isto é, realizou uma leitura articulada de todos os meios probatórios, tendo de seguida enunciado o direito aplicável, discorrendo sobre o crime de difamação, e concluído pela existência de indícios suficientes da prática do crime pelo arguido e consequente possibilidade razoável de vir a ser aplicada ao arguido, em julgamento, uma pena. Tanto basta para afastar a ocorrência da alegada omissão de pronúncia.

       Com efeito, atenta a estrutura da decisão instrutória, estas eram as questões essenciais a decidir, que foram efectivamente decididas. No mais, estarão em causa meros motivos ou argumentos invocados pelo recorrente, sendo que, como já referido, a omissão de pronúncia apenas se verifica nos casos em que se detecta falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer (que foram efectivamente conhecidas) e não nos casos em que se verifica falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam.

       Improcede, pois, a nulidade por omissão de pronúncia arguida pelo recorrente.

       Questão II - Caducidade do direito de queixa.

Na conclusão C) do recurso, veio o recorrente invocar a caducidade do direito de queixa. Considera, em suma, que o direito de queixa está caduco no que diz respeito à factualidade relativa à reunião no armazém do Sr. EE (factualidade constante nos pontos 18) e 19) da decisão instrutória – fls. 66 e 67), uma vez que a assistente já teria conhecimento de tais factos em meados de Junho de 2014, no âmbito do processo n.º 5/13.1...., pelo que, “quando em 24-04-2015 apresentou a queixa-crime, fê-lo intempestivamente (art. 115.º, n.º 1, do CP).”.

       Vejamos se assim é.

Qualquer facto punível para que seja efectivamente punido exige, para além do preenchimento de pressupostos substantivos (tipicidade, ilicitude, culpa), também a verificação de determinados pressupostos processuais, sendo um deles, no que diz respeito aos crimes semi-públicos e particulares, a existência de queixa válida e tempestivamente apresentada pelo ofendido.

 Segundo Figueiredo Dias, “Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 663, queixa “é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respectivo direito (em regra o ofendido), exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada.”.

       Como se pode ler no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2012, publicado no Diário da República, Série I, n.º 98/2012, de 21 de Maio de 2012:

       “A queixa (designada, ainda, denúncia, ao nível do processo penal) é um pressuposto processual (pressuposto positivo da punição), “cujo conteúdo contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efetivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e a sua razão de ser” (16).[12]

       Por isso, o regime da queixa, é, no essencial, regulado no Código Penal. Aí se contendo as normas que dispõem sobre: os titulares do direito de queixa (artigo 113.º), a extensão dos efeitos da queixa (artigo 114.º), a extinção do direito de queixa (artigo 115.º), a renúncia e desistência da queixa (artigo 116.º).

       Já no que se refere à forma da queixa, o Código Penal é omisso, devendo entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto.

       O que só é reforçado pelo disposto no n.º 1 do artigo 49.º ao acentuar que, quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.

      Podendo a queixa ser apresentada pelo titular do direito respetivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais (n.º 3 do artigo 49.º).”.

A matéria do prazo para o exercício da queixa encontra-se prevista no artigo 115.º do Código Penal, o qual, com a epígrafe “Extinção do direito de queixa”, estabelece:

       “1 - O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.

  2 - O direito de queixa previsto no n.º 6 do artigo 113.º extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos.

 3 - O não exercício tempestivo do direito de queixa relativamente a um dos comparticipantes no crime aproveita aos restantes, nos casos em que também estes não puderem ser perseguidos sem queixa.

4 - Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.”.

       Sobre esta matéria cumpre lembrar o que consta do já citado Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2012:

      “O prazo de exercício do direito de queixa, é de seis meses como decorre imediatamente do nº 1 do artº 115º do CPP, pois que o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.

       Sobre a natureza do prazo para o exercício do direito de queixa, vem entendendo a doutrina, bem como a jurisprudência, que tem natureza substantiva, sendo um prazo de caducidade.

      Com efeito, não constitui prazo de natureza judicial uma vez que ainda não se iniciou a instância processual que da queixa depende, sendo esta como pressuposto positivo de punição, condição de procedibilidade, e por isso, o exercício do direito de queixa, um ato extrajudicial e extraprocesso, na dependência da vontade do titular legítimo.

       O exercício do direito de queixa, não é pois um ato processual.

      Sendo de natureza substantiva, e, portanto não processual, não são as normas do Código de Processo Civil, porventura a coberto do disposto no artº 4º do CPP, que se aplicam à sua contagem, uma vez que as normas processuais civis apenas se aplicam à contagem dos atos processuais, como resulta do disposto no artigo 104º do CPP, ao determinar que: “Aplicam-se à contagem de atos processuais as disposições da lei do processo civil.»

       Neste sentido, e com referência ao disposto no artº115º nº 1 do CPP, se pode afirmar, como refere FIGUEIREDO DIAS “que se trata ali de um prazo de caducidade. O período de tempo decisivo para contagem deste prazo é pois aquele que medeia entre a tomada de conhecimento e a deposição da queixa, não entre a prática do facto e a tomada de conhecimento: este relevará só, nos termos gerais, para efeitos de prescrição do procedimento criminal.

      O conhecimento relevante refere-se, por seu lado, não só à realização típica («ao facto»), mas também à pessoa do agente, seja ele autor ou comparticipante a qualquer título (o que a lei chama impropriamente «autores»). O requisito do conhecimento do agente estará dado logo que seja possível ao ofendido individualizar a pessoa presumivelmente culpada, sem que se torne necessária uma indicação completa dos dados identificadores.”[24]

       Também o diploma criminal substantivo – o Código Penal – não define o critério ou forma de como deve efetuar-se a contagem do referido prazo, nomeadamente a determinação do seu termo.[25]

       O prazo como limite do exercício do direito de queixa – distinto do prazo de prescrição do procedimento criminal -, é absolutamente essencial, como pressuposto positivo de punição, nos crimes semipúblicos e particulares, para dar início ao procedimento criminal.

      VICTOR DE SÁ PEREIRA E ALEXANDRE LAFAYETTE assinalam: - «Não se justificaria que o titular do direito de queixa pudesse exercê-lo a todo o tempo, v.g. por ódio ou vingança. Conhecidos, na verdade, o facto e os seus autores [a lei não fala agora – incorretamente, como acentua FIGUEREDO DIAS (ibidem, 674) – em comparticipantes: cfr. Artigos 114º e 116º, nº 2], preenchidos se encontram, em princípio, os pressupostos sem os quais se não desencadeia o termo inicial da caducidade, a todos os títulos se impondo, então que a queixa seja deduzida em certo prazo. Este terá de ser contado, pois, a partir da data em que o titular passou a dispor de tal conhecimento. (nº1). Há, todavia, casos especiais e é assim que o prazo de caducidade se conta a partir da morte do ofendido (nº 2 do artigo 113º), do início da sua incapacidade (nº 4 do mesmo artigo 113º) ou da data em que o ofendido perfizer 18 anos (nº 2) se o efeito extintivo, nas duas primeiras hipóteses, não houver operado antes dos factos a que as mesmas se reportam. E, quanto às pessoas coletivas (em sentido lato), a contar do conhecimento do órgão competente para o exercício do direito de queixa (ibidem), nos termos do nº1.”[26]

      Em relação ao crime continuado:” A solução mais correta parece ser, porém, a de o fazer correr relativamente a cada um dos atos parciais em que aquele crime se desdobra, não podendo o procedimento ter lugar relativamente aos atos parciais de que não tenha havido queixa tempestiva

      Por isso se compreenderá igualmente que o direito de queixa possa ser exercido ainda durante a execução do facto, se bem que não antes de esta ter tido início.”[27]

       A averiguação dos requisitos necessários ao exercício do direito de queixa tem de reportar-se ao momento da sua apresentação, como salienta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE..[28]

       Como refere MAIA GONÇALVES:

       “2. Remodelou-se profundamente a caducidade do direito de queixa, relativamente ao CP de 1886.

       Para além do encurtamento do prazo em que a queixa pode ser exercida, sucede que outros aspetos denotam dilatação desse prazo.

       Por um lado, o prazo passa a contar-se a partir do momento em que o titular do direito de queixa teve conhecimento do facto e dos seus autores, e já não, como anteriormente, a partir da prática do crime. Por outro lado, como podem ser muitos os titulares do direito de queixa, no caso de algum destes só tarde vir a ter conhecimento do facto e dos seus autores, pode até suceder que a caducidade, em relação a ele, venha a ocorrer muito depois do momento em que se verificava no regime anterior.

      Dada a relativa incerteza que este sistema comporta, desenhou-se na Comissão Revisora uma tendência, que não resultou, no sentido de ser concedido maior prazo e de este ser contado sempre a partir do momento da consumação do crime”

       3. O conhecimento do facto e dos seus autores, aqui referido, é manifestamente, um simples conhecimento naturalístico, e não judicial, pois estas disposições legais reportam-se a um momento em que não existe mesmo ainda ação penal pendente.”[29]
  III

  A contagem do prazo na lei substantiva e o dies ad quem                 

  1. Problemática legislativa e doutrina crítica

      Sendo de seis meses o prazo que a lei confere ao exercício do direito de queixa, importa saber quando termina esse prazo, como se identifica concretamente o seu limite final, ou seja, qual o seu terminus, enfim, como deve determinar-se o último dia do prazo de apresentação da queixa, de forma a garantir que a queixa foi apresentada no prazo legalmente concedido.

      Como salienta a recorrente:- “Trata-se, assim, de uma questão de relevante interesse, um vez que a determinação do concreto dia em que o exercício do direito de queixa se considera extinto, contende com a apreciação da tempestividade do exercício de tal direito.”

       A aplicação da lei substantiva à contagem do prazo já vem de longe.

      1. Respiga-se do Assento nº 1/82, do Plenário das Secções Cíveis do STJ, de 14 de janeiro de 1982 (atinente a uma contradição de julgados em eleições para a Assembleia da República)[30]

      “Não são apenas de agora, nem exclusivo do mundo forense português, os inúmeros problemas que têm preocupado os juristas acerca do modo de contar os prazos.

Apesar da natural exiguidade de assentos tirados anualmente pelo Supremo Tribunal de Justiça, basta atentar que, entre nós, nos últimos 15 anos três deles debruçaram-se precisamente sobre esse tema: o Assento de 4 de novembro de 1966 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 161, p. 229), que mandou observar o artigo 562.º do Código Civil de Seabra no cômputo do prazo estabelecido no artigo 46.º, § 1.º, da Lei de 11 de abril de 1901; o Assento de 16 de março de 1971 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 205, p. 115), que prescreveu a transferência para o primeiro dia útil seguinte ao encerramento da secretaria judicial do termo do prazo para se pedir a anulação ou suspensão de deliberações sociais, e o Assento de 5 de dezembro de 1973 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 232, p. 37), segundo o qual a contagem do tempo de cumprimento da pena de prisão fixado em meses é feita nos termos da alínea c) do artigo 279.º do Código Civil.

      A profunda divisão que se cavou nos tribunais franceses a respeito de saber se aos prazos de caducidade seria aplicável o artigo 1033.º, alínea 3), do Código de Processo Civil (que prolonga para o primeiro dia útil qualquer prazo de processo que finde em dia feriado ou num sábado) levou Michel Vasseur (Révue Trimestrielle de Droit Civil, 49.º, n.º 4, p. 472) a reconhecer: «La jurisprudence n'en saurait être incriminée. Le problème est d'ordre législatif.»

      Para evitar mais dúvidas e disparidades de tratamento, os Códigos Civis alemão e suíço optaram pela via de firmar regras unitárias sobre o cômputo dos prazos mais ou menos completas (Vaz Serra, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 105, p. 244), nesta linha de orientação se havendo também inspirado os artigos 279.º e 296.º do nosso Código Civil.

      Não obstante, aqui e além-fronteiras, as hesitações permanecem, constituindo o preço inevitável da diversificada legislação que a vida moderna obriga a publicar todos os dias.

«(…)»

      Durante os trabalhos preparatórios do Código Civil foi, efetivamente, sentida a necessidade de firmar regras unitárias sobre a contagem dos prazos (Vaz Serra, Boletim do Ministério da Justiça, n.ºs 50, p. 92, 105, p. 242, e 107, p. 249), havendo-se na oportunidade destacado que, no direito alemão, «as regras dos §§ 187.º a 193.º valem, não só para o direito privado, mas também [...] para todas as esferas do direito, valem, como diz o § 186.º, para os prazos e termos contidos nas leis, resoluções judiciais e negócios jurídicos, em especial também para [...] o direito político» (Vaz Serra, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 50, p. 93).

       Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, 2.ª ed., ano I, p. 250) também reconhecem que, mercê do artigo 296.º, as normas do artigo 279.º se aplicam «tanto no campo do direito privado como no direito público», e outro não foi o entendimento do Assento de 5 de dezembro de 1973 (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 232, p. 37) ao ordenar a aplicação da alínea c) do artigo 279.º do Código Civil à contagem da pena de prisão fixada em meses - matéria que não ultrapassa a órbita do direito público.

      Técnica defeituosa, sem dúvida, a de, em diploma de direito privado, se traçar o regime de outros ramos de direito; mas, de qualquer modo, orientação preferível à adotada na Itália, onde a disciplina do cômputo do tempo estabelecida no Código Civil a respeito da prescrição é forçada a alargar-se a todos os casos em que o cômputo do tempo tenha relevância jurídica (Santoro-Passarelli, Teoria Geral do Direito Civil, trad. de ... de Alarcão, p. 87). »

       2. Com efeito já o Acórdão respeitante ao recurso nº 33882 para o Tribunal Pleno, de 5 de dezembro de 1973 (referente à contagem do prazo de cumprimento de pena de prisão), tinha assinalado:[31]

       «O Código Civil de 1867, a propósito da prescrição, continha o preceito do artigo 560.º (norma a generalizar para o cômputo civil do tempo - cf. Prof. ... de Andrade, Teoria Geral, p. 442), e daí resultava que o ano se regulava pelo calendário gregoriano; o mês era sempre computado em trinta dias e os dias em vinte e quatro horas. Complementarmente, regulava o artigo 78.º do Código de Processo Civil de 1876, depois substituído pelo artigo 148.º do Código de Processo Civil de 1939, e, salvas algumas hesitações e divergências que os registos jurisprudenciais dão conta, da adoção de tais princípios tinha resultado um critério uniforme, atinente a determinar a contagem das penas de prisão e momento final desta.

      O atual Código Civil chamou a si a completa estatuição dos princípios genéricos do cômputo do tempo, por isso que pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11 de maio de 1967, foram suprimidos os n.ºs 1 e 3 do citado artigo 143.º do Código de Processo Civil e no artigo 296.º afirmou, a propósito da contagem dos prazos, que «as regras constantes do artigo 279.º são aplicáveis, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei, pelos tribunais ou por qualquer outra autoridade».

      Portanto, no pendor da orientação seguida, agora confirmada por esta regra generalizadora, terminada a vigência do Código Civil de 1867 e desaparecidas da lei processual civil as adjuvantes normas da contagem dos prazos, não podemos deixar de recorrer aos princípios do artigo 279.º para computar a prisão imposta por certo prazo.

      Não há, como razão obstativa, a existência de qualquer disposição especial em contrário nem princípio que se extraia de uma impossível revivescência da norma do § 2.º do artigo 148.º do Código de Processo Civil de 1939, por força do § único do artigo 1.º do Código de Processo Penal ou de quaisquer outros preceitos, sendo ainda ininvocáveis os preceitos dos artigos 9.º do Decreto-Lei n.º 35042 e 22.º do Decreto n.º 35007 (cf. Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XVII, pp. 239 e segs.), por terem sido revogados pelos artigos 337.º e 308.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 185/72, de 31 de maio.

      Não há, pois, razões válidas para abandonar a tradicional orientação integradora da lacuna que o legislador, propositadamente ou não propositadamente, deixou por preencher, com socorro aos princípios da lei civil, e neste sentido se pronunciaram já os Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 17 de dezembro de 1969 e de 10 de março de 1971, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nos n.ºs 192, p. 162, e 205, p. 147, respetivamente.»

       3. VAZ SERRA – que analisou pormenorizadamente a questão da contagem dos prazos - considerava que o cômputo dos prazos de caducidade não estava especialmente regulado na lei. Discutia-se se lhe eram aplicáveis as regras sobre contagem dos prazos de prescrição (Código Civil, art.° 560.° e segs.) ou as regras sobre contagem dos prazos judiciais (Código de Processo Civil, art.°s 144.° e seguintes).

       Segundo uma opinião, as regras aplicáveis eram as relativas à contagem dos prazos de prescrição, porque, sendo os prazos de caducidade prazos de direito substantivo, deviam aplicar-se ao seu cômputo, por analogia, as normas que regulavam o cômputo dos prazos prescricionais

     Segundo outra, eram aplicáveis as normas que regulavam a contagem dos prazos judiciais

       E parecia-lhe que as regras aplicáveis deviam ser as respeitantes ao cômputo dos prazos de prescrição. Os prazos de caducidade são de direito substantivo, não são prazos judiciais, e, portanto, as regras aplicáveis a esses prazos, por analogia, são as da prescrição. [32]

      Referia que também, no direito italiano, se entendia que ao cômputo dos prazos de caducidade se aplicam as regras relativas aos prazos de prescrição (1208). [33]

       Esta solução seria facilitada se se estabelecessem regras gerais sobre cômputo de prazos, face aos efeitos legais que estão ligados ao decurso dos prazos, quer no direito privado, quer no direito público, além de que as partes ou o juiz e outras autoridades podem fixar prazos de cuja observância ou inobservância resultem vantagens ou prejuízos. [34]

       Referia ainda em nota de rodapé: [35]

      Esta solução tem, no regime do art.° 562º do Código Civil, o inconveniente (que não tem já no regime proposto para o computo dos prazos da prescrição) de se contar o dies a quo, mesmo que não seja completo (art.o 562.°), o que faz com que, fechando as secretarias judiciais às 17,30 e, aos sábados, às 12,30 (Decreto-Lei n.º 42800, de 11 de janeiro de 1960, art.o 8.°), conforme decidiu o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de fevereiro de 1960 (no citado Boletim, n. 94, pág. 218), não se observe esse mesmo art.° 562.°, segundo o qual deve ser completo o dia em que a prescrição finda; por isto, entende a Revista dos Tribunais, 78, pág. 224, que, exigindo o art.° 562.° seja completo o último dia, deve transferir-se para o imediato o termo do prazo para propositura da ação.

       Com a solução proposta acerca do cômputo dos prazos, não se verifica tanto o referido inconveniente, visto não se contar o dia inicial. No entanto, devendo ainda então ser completo o último dia, sempre se verifica em parte; mas o mesmo se daria, se se aplicasse o artº 148.° do Código de Processo Civil.

      No direito francês, discutia-se se era aplicável aos prazos de caducidade o art.° 1033.°, alínea 3, do Código de Processo Civil, pelo qual, quando o último dia de qualquer prazo de processo é um dia feriado ou um sábado, este prazo será prolongado até ao primeiro dia útil que se segue ao dia feriado ou ao sábado: ver Vasseur, n.º 25, que defende a aplicação. [36]

       4. Outro ponto de interesse que era objeto de divergência era o de saber se, acabando o prazo em férias, pode o direito ser exercido no primeiro dia útil depois delas.

       A orientação dominante era a afirmativa, mas havia opinião em contrário. (Alberto dos Reis, na Revista de Legislação, 81, pág. 37. [37]

       Com dúvidas, M. de Andrade, Noções elementares de processo civil, 2.a edição, pág. 120, nota, que parecia inclinar-se para a opinião dominante.

       Referia VAZ SERRA:

      “Observa-se que a solução do prolongamento do prazo terminado em férias não tem, em regra, que ver com a tese de que aos prazos de caducidade são aplicáveis as regras sobre cômputo dos Prazos judiciais, pois, se o art.° 146.º,§ 1.º, do Código de Processo Civil dispõe que, se o prazo perentório findar nas férias, em domingo ou um dia feriado e o ato não puder, por sua natureza, praticar-se nesse dia, o termo da prazo se transfere para o primeiro dia útil que se seguir, também o art.°563.° do Código Civil determina que, sendo feriado o último dia da prescrição, esta só se considera finda no primeiro dia seguinte não feriado - e a palavra «feriado» pode ser interpretada como abrangendo as férias (1212).

      O que importa é averiguar se a razão do art.° 563.° do Código Civil abrange as férias. Sustenta-se que as abrange, porque o art.° 563.° se destina a evitar que o titular do direito seja privado até ao último momento do prazo de exercer os atos judiciais necessários à conservação do seu direito, e isto também se verifica quando o prazo termina em férias”. [38]

      5. Prazo é, para o Código, um lapso de tempo delimitado (determinado ou determinável); termo é um momento determinado antecipadamente, que deve servir como limite temporal.

      As disposições sobre prazos e termos são apenas regras interpretativas, só sendo, portanto, aplicáveis quando da lei, da disposição judicial ou da autoridade ou do negócio jurídico se não concluir coisa diferente.

       Como a segurança do tráfico jurídico exige uma regulação clara das determinações de tempo, as disposições sobre prazos e termos são de interpretar estritamente (548). [39]

       VAZ SERRA propunha uma divisão na parte geral do Código um artigo que abarcasse prazos e termos que se computariam segundo o calendário comum (alínea K) da proposta)

        Estabelecia a alínea g) dessa proposta:

       g) O prazo fixado em meses, ou por um lapso de tempo que compreende vários meses, isto é, em anos, semestres, trimestres, etc., acaba no dia que, no último mês, corresponde, pelo seu número ao dia do acontecimento a partir do qual corre o prazo. Se, no último mês, não existir dia correspondente, o prazo acaba no último dia desse mês.

       O último dia do prazo deve ter decorrido completamente.

       Nos trabalhos preparatórios do Código Civil referia o mesmo Professor:

      Não parece de adotar, pelo menos em relação ao tempo da prestação, a regra do art.° 562.° do nosso Código, mas antes a regra dies a quo non completatur in termine. O prazo da prestação pode ser curto, não se - afigurando que deva cercear-se ao devedor uma parte, que pode ser importante, do dia em que se verifica o acontecimento, a partir do qual esse prazo corre (66).

       Mas, se o ponto de partida do prazo é o começo de um dia, este dia deve contar-se. Tal é o que prescreve o § 187.°, alínea 2, do Código alemão e resulta da natural interpretação daquela determinação.

       Quanto ao dia, em que o prazo termina, esse é o último dia do prazo.

       «(…)»

      «f) O prazo fixado por meses ou por um lapso de tempo; que compreenda vários meses, isto é; por anos, semestres ou trimestres, deve acabar no dia que, no último mês, corresponde, pelo seu número; ao dia do acontecimento a partir do qual se conta o prazo

(74). Assim, o prazo de cinco meses, começado em 15 de abril, acaba em 15 de setembro.

Se; no último mês, não existe dia correspondente; o prazo deve acabar no último dia desse mês (75). Assim, se o prazo é de três meses, contados do dia 30 de novembro; acaba em 28 de fevereiro (ou em 29 de fevereiro, se o ano for bissexto).»[40]

       Na nota 75 referia: O Anteprojeto brasileiro (art.° 63.°, § 3.°) declara que «os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do de início, ou no imediato, se faltar exata correspondência».

       6. Felizmente, com a vigência do Código Civil., tais incertezas findaram, como já previa a Revista dos Tribunais, ao comentar um assento sobre direito mercantil:[41] 

       “O art. 296.° manda aplicar as regras do art. 279.°, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei, pelos tribunais ou por qualquer outra autoridade.

      E uma das regras do art. 279.°, a da alínea b), é que, na contagem de qualquer prazo, não se inclui o dia em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr.

       Esta regra coincide com a do art.148., 1, C. P. C.:

      Acabou, pois, a divergência entre os prazos civis e os processuais.

       E a alínea e) do art. 279.° resolveu a questão de saber se as acções tinham de ser intentadas em férias no sentido da jurisprudência ultimamente unânime, equiparando aos domingos e dias feriados as férias judiciais, se o acto sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo.

      É certo que, na alínea c), se dispõe que o prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; só quando a esse caso continuará a haver desarmonia com os prazos civis e os processuais.

       O Prof. VAZ SERRA, Prescrição Extintiva e Caducidade, pág. 243, entendia que a regra dies a quo non computatur in termine parece de preferir à do art. 562.º, que cerceava esse prazo em um dia.

       - Contudo, a partir da data em que o Código comece a vigorar, não se conta, em direito civil, como em direito comercial, o primeiro dia.

       Relativamente a factos posteriores a 1-V-I967, quem "tenha de intentar qualquer ação, poderá afoitamente, contar os prazos como se computam os relativos a processos pendentes.”[42]

       7. “Já nas Ordenações Afonsinas (III, título 19, § único) se dizia «e recresce dúvida ao julgador, se aquele dia, em que se acaba o dito termo, se entenderá inclusive, ou exclusive, que quer tanto dizer como se compreenderá em o dito termo ou não».

            (…)

       O termo ad quem de um prazo há de ser traduzido sempre por um momento determinado. Matéria que tem a ver, efetivamente, com a atribuição de direitos ou a sua recusa, um termo ad quem não pode ser expresso por um período de tempo um tanto vago, indefinido e incerto.”[43]

      O critério legal de computação do prazo está atual e expressamente inscrito no artº 279º do Código Civil (C.C.):

       O artigo 296.º (Contagem dos prazos), da Secção I (Disposições gerais), do Capítulo III (O tempo e a sua repercussão nas relações jurídicas) do Livro I do Código Civil, determina: «As regras constantes do artigo 279.º são aplicáveis, na falta de disposição especial em contrário, aos prazos e termos fixados por lei, pelos tribunais ou por qualquer outra autoridade.

     O artº 279º do C.C. dispõe sobre o cômputo do termo, da seguinte forma:

  «À fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras:

a) Se o termo se referir ao princípio, meio ou fim do mês, entende-se como tal, respetivamente, o primeiro dia, o dia 15 e o último dia do mês; se for fixado no princípio, meio ou fim do ano, entende-se, respetivamente, o primeiro dia do ano, o dia 30 de junho e o dia 31 de dezembro;

b) Na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr;

c) O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês;

d) É havido, respetivamente, como prazo de uma ou duas semanas o designado por oito ou quinze dias, sendo havido como prazo de um ou dois dias o designado por 24 ou 48 horas;

e) O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o ato sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo»

       ABÍLIO NETO anota: «3. A regra do nº 3 é simples aplicação do princípio de que o último dia do prazo deve ter decorrido completamente (RLJ,100- 87)». [44]

       Que o último dia do prazo deve ter decorrido completamente já era assim entendido no domínio legal anterior

       O artigo 562.º do Código Civil de 1867 preceituava:

       "O dia em que começa a correr a prescrição conta-se por inteiro, ainda que não seja completo, mas o dia em que a prescrição finda deve ser completo".

       O entendimento abrangente desta norma passou até a aplicar-se ao direito comercial.

       O assento de 4 de novembro de 1966 referido estabeleceu que "no computo do prazo estabelecido no artigo 46, paragrafo 1, da Lei de 11 de abril de 1901, deve observar-se o preceituado no artigo 562 do Codigo Civil".

       E, como se referiu no assento de 16 de março de 1971: [45]

       “Aquele assento de 4 de Novembro de 1966 apreciou e decidiu apenas se a regra aplicável, no cômputo do prazo estabelecido no artigo 46, paragrafo 1, da Lei 11 de Abril de 1901, era a do artigo 562.º do Código Civil ou a do artigo 73 da Lei Uniforme, pois foi isso apenas o que nele se discutiu (ver Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 100, pagina 367 - Professor Vaz Serra).

       O artigo 562.º do Código Civil, aplicável a contagem dos prazos de caducidade das ações de suspensão e anulação das deliberações sociais a que se refere o artigo 46 da Lei das Sociedades por Quotas, alterado pelo artigo 396º do Código de Processo Civil de 1961, manda contar por inteiro o dia em que o prazo começa a correr, ainda que não seja completo; mas o dia em que o prazo termina deve ser completo.

       Em obediência a este preceito, o ultimo dia do prazo tem de ser completo, terminando portanto as 24 horas”

      VAZ SERRA em anotação ao referido assento de 4 de novembro de 1966, na Revista de Legislação e Jurisprudência, igualmente referia:[46]

       «Segundo o artigo 279.º, alínea c), o prazo fixado em semanas, meses ou anos, contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data 1.»

       Assinalava na nota 1:

       «(…)

      A regra da alínea c) do artigo 279.º é simples aplicação do princípio de que o último dia do prazo deve ter decorrido completamente, conforme dispunha o artigo 562.° do Código de 1867, para a prescrição, e se declara, em termos gerais, nos Códigos alemão (§ 188º, al.I) e grego (art. 242.°), e ainda, para a prestação do devedor e para a prescrição, no Código italiano (arts.187.° e 2636.°).»

         Perante a lei vigente, mesmo que por aplicação da alínea b) do artº 279º do C.C. b) na contagem do prazo do exercício do direito de queixa não se inclui o dia, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr; o termo final desse prazo de harmonia com a alínea c) do artigo ao fazer coincidir o dia do último mês com o dia correspondente ao evento, já engloba a interpretação dessa alínea b).

       A alínea c) do artº 279º do CC não invalida o disposto na alínea b) deste preceito.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao vigente artº 279º do C.C.: [47]

       «1. Os princípios contidos neste artigo são aplicáveis em caso de dúvida. São, portanto, de natureza supletiva e interpretativa.

       2. Tem especial interesse o disposto na alínea b), visto ter-se adotado o regime processual da contagem dos prazos (Cód. de Proc. Civil, art. 148.º, n.º 1), em prejuízo do sistema do Código Civil de 1867 (art. 562.°). Os prazos contam-se, portanto, agora, com mais um dia ou uma hora, conforme os casos. 

      3. A doutrina da alínea c) harmoniza-se com as regras das alíneas anteriores. Assim, o prazo de uma semana que começou numa segunda-feira termina às 24 horas da segunda-feira seguinte, não se contando, portanto, o dia do início do prazo. O mesmo acontece com o prazo de meses ou anos.(…)»

       No sentido de interpretação exposta, do disposto no artº 279º do C.C. e, com referência ao dies ad quem, se vem pronunciando a nossa jurisprudência, da qual, disponível em www.dgsi.pt, se indicam, como exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-07-2010; os Acórdãos do Tribunal Constitucional: n.º 542/2005; n.º 540/2005; n.º 414/2004; n.º 404/99; os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo: de 21-09-2011; de 23-08-2008; de 28-11-2007;de 18-02-2004; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-07-2011; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-01-2011; o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-11-2005.

      Já o Acórdão de 28-05-1992, do Pleno da 1.ª Secção do Contencioso Administrativo, citado pelo Ministério Público em suas doutas alegações, referiu «[…] É certo que nada exclui, no caso da alínea c), a aplicação da regra da alínea b), mas certo é também que não é o intérprete que tem de fazer essa aplicação, uma vez que é o próprio preceito legal que dela parte ao dispor nos termos em que o faz, levando assim o intérprete a essa exclusão. […] Com efeito, a regra de contagem do prazo estabelecida na alínea c) assegura ao interessado o prazo que a lei lhe concede já com desprezo do dia em que ocorreu o evento a partir do qual esse prazo começou a correr. […] A regra da alínea b) do artigo 279º do Código Civil está contida na sua alínea c), não havendo, por isso, que aplicar autónoma e conjuntamente nos casos em que esta funcione, visto que, então, aquela funcionaria duas vezes, sem qualquer justificação»;

       De igual forma, escreveu-se no Acórdão n.º 404/2000, de 27 de Setembro, do Tribunal Constitucional «segundo o recorrente haveria que contar o prazo de 2 meses de acordo com a alínea c) do artigo 279º do CC e, depois, como a alínea b) se aplica na contagem de qualquer prazo haveria que adicionar mais um dia, uma vez que na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia em que ocorrer o evento. […]. Porém, um tal entendimento não colhe qualquer apoio na doutrina civilista ou na jurisprudência […] verifica-se assim que a regra de cálculo do prazo fixado em semanas, meses ou anos, estabelecida na alínea c) do artigo 279º do Código Civil, tem ínsita a que se estabelece na alínea b) do mesmo preceito, não havendo, por isso, que fazer preceder o seu funcionamento da prévia aplicação desta alínea b)[…]». 

      Também os membros do Conselho da Europa signatários da Convenção Europeia para a computação de tempo, ou contagem de prazo (Convention européenne sur la computation des délais) considerando que o objetivo do Conselho da Europa é conseguir uma união mais estreita entre os seus membros, incluindo a adopção de regras comuns no domínio jurídico e que a unificação das regras que regem o cálculo de tempo, tanto a nível interno como na área internacional, ajudará a atingir este objetivo, acordaram: [48]

       “Artigo 2 º

      Para efeitos da presente Convenção, as palavras dies a quo, designam o dia a partir do qual o prazo começa a correr e as palavras ad quem o dia onde o prazo expira.

       Artigo 3 º

       1. Os prazos expressos em dias, semanas, meses ou anos, correm a partir da meia noite do dies a quo até à meia-noite, do dies ad quem.

       (…).

       Artigo 4 º

       1. (…)

       2.Quando um prazo é fixado em meses ou anos, o dies ad quem é o dia do último mês ou do ano passado cuja data corresponde àquela do dies a quo ou, na falta de uma data correspondente, o último dia do último mês.

       3. (…)” [49]

       O termo final do prazo de 6 meses constante do artº 115º nº 1 do CP, encontra-se de harmonia com a contagem da alínea c) do Código Civil, - a qual já engloba a da alínea b) do mesmo artigo – de forma a que o direito de queixa extingue-se às 24 horas do dia correspondente no sexto mês (último mês) ao dia em que o titular do direito de queixa tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.

       Por isso, como doutamente observa o Digníssimo Magistrado do Ministério Público em suas doutas alegações: “Neste quadro e dimensão normativa, não pode deixar de concluir-se que, também na contagem do prazo, de 6 meses, para o exercício do direito de queixa, o seu termo final, o dies ad quem, verifica-se às 24 horas do dia que, no sexto mês subsequente, corresponda ao próprio dia em que o respetivo titular tiver tido conhecimento do facto e do seu autor, que não no dia seguinte àquele.»

       A razão está pois do lado do acórdão fundamento, e não do acórdão recorrido, na determinação do dies ad quem,

       O acórdão recorrido refere que “Os factos ocorreram a 22.2 e deles teve o recorrente conhecimento bem como dos seus autores na mesma data e o prazo de 6 meses iniciou a sua contagem no dia seguinte 23.2.”, aplicando assim a regra da alínea b) quanto ao dies a quo.”

       Porém, “se o recorrente apresentou a queixa, como data de entrada no Tribunal, o dia 23.8 seguinte” já não se pode ter como “óbvia a conclusão que, sendo este o último dia do prazo de 6 meses, foi apresentada atempadamente, antes de expirado o prazo”, como entendeu o acórdão recorrido”, que veio a considerar que, “a queixa foi apresentada no último dia do prazo dos 6 meses.“

       Pois, se o recorrente teve conhecimento dos factos a 22 de fevereiro, ainda que apresentasse a queixa a 23 do mesmo mês, o dies ad quem ocorreu às 24 horas de 22 de agosto seguinte, nos termos da alínea c) do artº 279º do C.C.”.

           

       Posto o enquadramento jurídico da questão, cumpre reverter ao caso concreto.

       Os concretos factos que são susceptíveis de configurar a prática de um crime de difamação são, nos termos do artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, aqueles em que alguém imputa a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formula sobre ela um juízo ofensivo da sua honra e consideração, ou reproduz uma tal imputação ou juízo.

       Ou seja, o que é susceptível de configurar a prática de um crime de difamação é a concreta acção de imputar um facto ou formular um juízo, independentemente de quantas vezes o mesmo facto ou juízo é imputado ou formulado. O que quer dizer que se o agente imputar, em diferentes ocasiões, um mesmo facto ou formular um mesmo juízo várias vezes, cometerá tantos crimes de difamação, quantas as vezes que imputou tal facto ou formulou tal juízo.

       Ora, o recorrente labora em erro quanto a este ponto, sendo esse o motivo que o leva a alegar que o direito de queixa da assistente não foi tempestivamente exercido.

       Senão vejamos.

       Considera o recorrente que, já no âmbito do processo 5/13.1..., em meados de Junho de 2014, processo em que a ora assistente era então arguida, esta teve conhecimento de que o mesmo lhe imputava o facto constante em 18) da presente decisão instrutória proferida (fls. 66), já que tal imputação constava do requerimento de abertura de instrução que em tal processo foi apresentado pelo ora arguido então assistente.

      Porém, não é essa imputação que está em causa nos presentes autos, mas sim a que foi realizada pelo arguido, no dia 15 de Janeiro de 2015, aquando da prestação de declarações na acção ordinária n.º 704/12.5... (processo em que este era Autor). É certo que a factualidade imputada pelo arguido à assistente (reunião no armazém do Sr. EE) é a mesma, porém a ocasião em que tal foi realizado é totalmente diferente, sendo por isso outra a imputação realizada, se bem que respeitante à mesma factualidade.

       Ou seja, estão em causa realizações típicas do mesmo tipo de crime, conclusão que se retira do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal que estabelece que “O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

      A nossa lei escolheu como factor decisivo a unidade ou pluralidade de tipos legais de crime violados. O critério legal não é tão simples quanto aparenta, tendo cabido à doutrina e à jurisprudência a solução da questão primordial, da unidade e pluralidade de crimes.

      Vários autores desenvolveram um importante trabalho de concretização conceptual do mencionado preceito legal, sendo os dois grandes marcos de referência nesta temática, os ensinamentos de Eduardo Correia e de Figueiredo Dias.

       Para Eduardo Correia, a antijuridicidade de uma relação social começa por se exprimir pela possibilidade da sua subsunção a um ou vários tipos de crime, pelo que é na concreta violação desta norma de determinação que assenta o juízo de censura em que se estrutura a culpa.

      Assim, a uma reiterada ineficácia da mesma norma de determinação corresponderão plúrimos juízos concretos de reprovação. O critério para averiguar acerca da existência dessa reiteração é o da pluralidade de resoluções – isto é, de determinações da vontade – pelas quais o agente actuou: se foram tomadas duas ou mais resoluções no desenrolar da actividade criminosa, então duas ou mais vezes falhou a eficácia determinadora da norma. Sendo que, por cada vez que tal sucedeu, há um fundamento para o juízo de censura em que se estrutura a culpa. Assim, segundo este Autor, essencial será determinar os critérios que permitem afirmar tal pluralidade de processos resolutivos.

      Tais critérios terão de passar pela análise do concreto modo como se desenvolveu o acontecimento exterior e, em particular, da conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. Assim, há uma pluralidade de resoluções sempre que medeie entre as actividades do agente um intervalo de tempo tal que, de acordo com as regras de lógica e experiência comum, se possa afirmar que o agente as levou a cabo sem qualquer renovação do processo de motivação. O critério da conexão temporal não é, contudo, rígido, admitindo a prova de que o agente se determinou efectivamente de forma diversa da que resulta do critério da conexão temporal.

      Em suma, para Eduardo Correia, o número de vezes de preenchimento do tipo pela conduta do agente conta-se pelo número de juízos de censura de que o agente se tenha tornado passível, o que, por sua vez, se deve reconduzir à pluralidade de processos resolutivos, resoluções ou decisões criminosas, ou nas suas próprias palavras - “Direito Criminal”, volume II, 1971, pág. 200 - a unidade ou pluralidade de crimes é revelada pelo “número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade. (...). Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados. (...) Pelo que, deste modo, chegamos à primeira determinação essencial de solução do nosso problema: se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos valores jurídico-criminais e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções; pelo contrário, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente só nega um valor jurídico-criminal e estamos, portanto, perante uma única infracção.”.

      Por sua vez, Figueiredo Dias apresenta uma construção dogmática algo diferente.

       Para este Autor, o critério para determinar quantos os crimes cometidos pelo agente é o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

      Assim, nas suas próprias palavras, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 988/9, é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes”.

      Ou seja, constituindo o crime um facto punível, o mesmo traduz-se numa violação de bens jurídico-penais, que preenche um determinado tipo legal. O núcleo dessa violação não é o mero actuar do agente, nem o tipo legal que o integra, mas o ilícito-típico. Pelo que, o que está em causa é determinar a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica em que o significado do comportamento global do agente se traduz, o que nos permite determinar quantos os crimes cometidos pelo agente.

      A apreensão do conteúdo de ilicitude material do facto deverá ser feita recorrendo a alguns (concretos) subcritérios fundamentais. Esses critérios são o da unidade de sentido do comportamento ilícito global, o da relação ilícito-meio/ilícito-fim, o da unidade do desígnio criminoso do agente, o da conexão situacional espácio-temporal e o dos diferentes estádios de realização da actuação global.

      Será atendendo às particularidades do caso concreto que se decidirá da premência de uns em detrimento de outros, podendo acontecer que dois ou mais critérios convirjam em direcção ao mesmo resultado. Pelo que, os mesmos funcionam como indicadores da unidade ou da pluralidade de sentidos sociais de ilicitude do comportamento global.

       Assim, poder-se-á utilizar, para sintetizar as duas posições dos citados Mestres, o referido por Leal-Henriques e Simas Santos, no Código Penal Anotado”, 3.ª edição, 1.º volume, 2002, Rei dos Livros, págs. 384 e 385: “Embora a lei não o refira expressamente, para se concluir pela existência de concurso efectivo torna-se necessário, além da pluralidade de tipos violados, o recurso ao critério da pluralidade de juízos de censura, traduzido por uma pluralidade de resoluções autónomas (Eduardo Correia), ou pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexado com um resultado típico concreto (Figueiredo Dias).”.

       Na jurisprudência deste Supremo Tribunal podem ver-se sobre esta temática, entre outros, o acórdão de 13 de Outubro de 2004, proferido no processo n.º 3210/04 - 3.ª Secção, e o acórdão de 20 de Setembro de 2006, proferido no processo nº 1942/06 - 3.ª Secção, decidindo-se, como consta no acórdão de 27 de Maio de 2010, proferido no processo n.º 474/09.4PSLSB.L1.S1 – 3.ª Secção, que:

    “A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

      O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.

    A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal. Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

      O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

       Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.

      A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.

   Especialmente difícil na sua caracterização é a consunção. Diz-se que há consunção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cfr. v. g. H. H. JESCHECK e THOMAS WEIGEND, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, p. 788 e ss.).

   A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.

       O critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de acções ou pluralidade de tipos realizados existe, efectivamente, unidade ou pluralidade de crimes, id. est, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime. Ao critério de bem jurídico têm de ser referidas as soluções a encontrar no plano da teoria geral do crime, sendo a matriz de toda a elaboração dogmática.”.

  Do mesmo modo, refere-se no Acórdão de fixação de jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2013, de 5 de Junho de 2013, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 131, de 10 de Julho de 2013:

       “(…) Para que exista uma infracção não basta que uma conduta seja tipicamente antijurídica: é preciso, também, que ela possa ser reprovada ao seu agente, isto é, que seja culposa. Assim, ao lado daquele Juízo que refere o comportamento humano a bens ou valores jurídico-criminais, outro juízo de valor se requer como pressuposto do crime, o qual se analisa na censura dum certo facto típico à pessoa do seu agente.

      Por vezes o momento psicológico correspondente à realização de uma série de actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal estrutura-se de tal forma que o concreto juízo de reprovação tem de ser formulado várias vezes. Consequentemente, o todo formado por tais actividades, enquanto encarnam a violação do mesmo bem jurídico, fragmenta-se na medida em que algumas das suas partes são objecto de um juízo autónomo de censura, adquirindo, portanto, independência e individualidade.

      Assim, a consideração da «culpa», elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou pluralidade de infracções, pela unidade ou pluralidade de tipos realizados. A unidade de tipo legal preenchido não importará definitivamente a unidade das condutas correspondentes, na medida em que, sendo vários os juízos de censura que as ligam à personalidade do seu agente, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável, e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

       Tais juízos de reprovação têm de ser desdobrados, e repetidos, sempre que uma pluralidade de resoluções, e de resoluções no sentido de determinações de vontade, tiver iluminado o desenvolvimento da actividade do agente.

      Com efeito, afirma o mesmo Professor, a resolução neste sentido é o termo daquele especifico momento do processo volitivo em que o «eu» pondera o valor, ou desvalor, os prós e os contras dum projecto concebido. É o termo daquela específica fase da volição que, metafisicamente se costuma descrever como constituída por uma luta de motivos e contra motivos, em que o próprio intervém numa afirmação da sua personalidade. Deste modo, quando se trate de um projecto criminoso que entra em execução, é precisamente no momento em que o agente toma a resolução de o realizar que a ineficácia da norma, na sua função de determinação, se verifica. Se, pois, diversas resoluções foram tomadas para o desenvolvimento da actividade criminosa, diversas vezes deixa a norma de alcançar concretamente a eficácia determinadora a que aspirava e vários serão os juízos de censura a formular ao agente.

       O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando, fundamentalmente, à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. A experiência, e as leis da psicologia, referem que, se entre diversos actos medeia um largo espaço de tempo, a resolução que, porventura, inicialmente os abrangia a todos, se esgota no intervalo da execução, de tal sorte que os últimos não são a sua mera descarga, mas supõem um novo processo deliberativo. Daqui resulta que se deve considerar existente uma pluralidade de resoluções sempre que se não verifique, entre as actividades efectuadas pelo agente, uma conexão de tempo tal que, de harmonia com a experiência normal e as leis psicológicas conhecidas, se possa e deva aceitar que ele as executou a todas sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.”.

      Assim, tendo em conta o critério previsto no artigo 30.º do Código Penal, desenvolvido pela doutrina e jurisprudência supra citada, o agente comete tantos crimes quantos juízos de censura - traduzidos por uma pluralidade de resoluções autónomas (Eduardo Correia), ou pluralidade de resoluções no sentido de nexos finais e de uma pluralidade de violações do próprio dever de cuidado conexionado com um resultado típico concreto (Figueiredo Dias) - tiverem sido realizados.

     In casu, e como já referido, ao contrário do referido pelo recorrente, estão em causa duas resoluções autónomas, perfeitamente distintas e delimitáveis, ou, se se preferir, duas resoluções no sentido de nexos finais. E isto porque, não obstante a factualidade imputada ser a mesma, a efectivação de tal imputação foi realizada em ocasiões completamente distintas e por meios totalmente diversos: uma foi feita através de documento escrito (requerimento de abertura de instrução) subscrito por advogado e apresentado em Junho de 2014; a outra (a que está em causa nos presentes autos) foi efectuada aquando da prestação de declarações de parte pelo ora arguido no dia 15 de Janeiro de 2015.

     Assim sendo, estando em causa factos praticados em 15 de Janeiro de 2015 e tendo a queixa, deduzida pela assistente, dado entrada em juízo em 24 de Abril de 2015 (cfr. fls. 2 e 34 da decisão instrutória), a queixa foi tempestivamente deduzida, não se encontrando ultrapassado o prazo previsto no artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal. Bem andou, pois, a decisão recorrida ao considerar improcedente a invocada caducidade do direito de queixa.

       Improcede, pois, a conclusão C).

       Questão III - Violação da autoridade do caso julgado.

     Invoca, ainda, o recorrente que a decisão instrutória violou a autoridade do caso julgado formado nos processos n.º 595/11.3PBBGC.G1 e n.º 114/12.4TRPRT, do Tribunal da Relação de Guimarães, que decidiram “que, estando o arguido obrigado a responder às perguntas com verdade, “No que concerne aos factos afirmados pelo Arguido, de duas uma: ou são “verdadeiros” ou são “falsos”; na primeira das hipóteses, nenhuma infracção foi perpetrada; na segunda, poderá estar em causa a prática do crime de falsidade de testemunha (artº 360º do CP), nunca o de difamação”.

      Conclui, desta forma, o recorrente que “Trata-se da mesma questão jurídica (comete ou não o crime de difamação quem presta declarações em processo judicial, estando obrigado a responder com verdade às perguntas formuladas), que foi tratada de forma diametralmente oposta quando o aqui recorrente tinha a posição processual de assistente (não comete) e tem a posição de arguido (comete).”.

       Atenta a questão colocada, cumpre, antes de mais, realizar uma breve análise sobre o caso julgado.

       O Código de Processo Penal apenas faz referência à excepção do caso julgado no seu artigo 84.º, aí se estatuindo que “a decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.

       Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 25 de Fevereiro de 2015, proferido no processo n.º 804/03.2TAALM.L.S1, desta 3.ª Secção:

      “O “dictum” judicial opera na opinião e na confiança dos cidadãos como verdade judicialmente acertada, como a representação social da realidade objectiva do direito, com toda a probabilidade a verdade objectiva e absoluta, a expressão genuína e provável da verdade, escreve Conde Correia, in O Mito do Caso do Julgado e a Revisão Propter Nova, pág. 47, na citação, entre tantos outros, de autores italianos como Rocco e Antonio Cristiani, para quem é comum o pensamento de que o caso julgado resulta da necessidade de a função judicial actuar a lei penal em concreto e o direito em definitivo, harmonizando-se, com ele, a consciência do juiz e dos seus concidadãos, sem deixarem, contudo, de reconhecer que é obra humana, por natureza falível, representando, apenas, uma certeza legal, que deve ceder perante a certeza dos factos, princípio subjacente, por exemplo, na revisão das sentenças. (…)

      O caso julgado forma-se logo que a decisão passada ou transitado em julgado não seja susceptível de recurso ordinário ou reclamação, nos termos dos art.ºs 668.º, 669.º e 677.º, do CPC e 4.º, do CPP, e, se recair unicamente sobre a relação processual assume natureza formal, tendo força obrigatória intraprocessualmente ( art.º 672.º, do CPP ); o caso julgado material incide sobre a relação material controvertida, equiparando-se –lhe os despachos que recaiam sobre o mérito da causa –art.º 671.º, do CPC.”.

       Mais, e em sede estritamente penal, a excepção de caso julgado encontra-se plasmada no artigo 29.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que prevê que “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”: trata-se do princípio non bis in idem.

       O caso julgado é um efeito processual da sentença transitada em julgado, que impede que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material).

       A proibição do duplo julgamento, traduzida no princípio non bis in idem, segundo o qual o Estado não pode submeter a um processo um acusado duas vezes pelo mesmo facto, seja em forma simultânea ou sucessiva é uma garantia processual penal fundamental, motivo pelo qual se encontra, constitucionalmente prevista.

       Para que a excepção funcione e produza o seu efeito impeditivo, a imputação tem que ser idêntica, sendo que tal sucede quando a imputação tem por objecto o mesmo comportamento atribuído à mesma pessoa. Está em causa identidade fáctica, portanto independentemente da qualificação legal atribuída.

      Em suma, para que proceda a excepção de caso julgado é necessária identidade factual, bem como da pessoa do arguido.

       Porém, o que o arguido invoca no presente recurso não é a excepção do caso julgado, mas a autoridade do caso julgado. E, quanto a esta é na jurisprudência produzida pelas secções cíveis deste Supremo Tribunal de Justiça que tal tema surge mais profundamente tratado. Vejam-se, a título exemplificativo, alguns dos acórdãos proferidos nos dois últimos anos sobre o tema; assim: os acórdãos de 27 de Fevereiro de 2018, processo n.º 2472/05.8 TBSTR.E1, da 1.ª Secção; de 13 de Setembro de 2018, processo n.º 687/17.5T8PNF.S1, da 2.ª Secção; de 18 de Setembro de 2018, processo n.º 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1, da 2.ª Secção; de 18 de Setembro de 2018, processo n.º 379/16.2T8LSB.S1, da 1.ª Secção; de 6 de Novembro de 2018, processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1, da 1.ª Secção; de 8 de Novembro de 2018, processo n.º 478/08.4TBASL.E1.S1, da 2.ª Secção; de 13 de Novembro de 2018, processo n.º 4263/16.1T8VCT.G1.S1, da 6.ª Secção; de 4 de Dezembro de 2018, processo n.º 190/16.0T8BCL.G1.S1, da 1.ª Secção; de 8 de Janeiro de 2019, processo n.º 5992/13.7TBMAI.P2.S1, da 1.ª Secção; de 26 de Fevereiro de 2019, processo n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1, da 6.ª Secção; de 26 de Fevereiro de 2019, processo n.º 1684/14.8T8VCT.G1.S2, da 6.ª Secção e de 12 de Fevereiro de 2019, processo n.º 654/13.8TBPTL.G1.S1, da 7.ª Secção, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

       Citando o acórdão de 6 de Novembro de 2018, proferido no processo n.º 1/16.7T8ESP.P1.S1-1.ª Secção: “A doutrina e a jurisprudência têm sido unânimes no reconhecimento de duas dimensões distintas ao caso julgado material: a de exceção e a de autoridade. A primeira, que desempenha uma função negativa, obsta a que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura (proibição de repetição). A segunda, que desenvolve uma função positiva, conduz a que a solução compreendida no julgado se torne vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais (proibição de contradição). A exceção de caso julgado implica uma não decisão sobre a nova ação e pressupõe uma total identidade entre as duas ações. A autoridade de caso julgado implica uma aceitação de uma decisão proferida numa ação anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objeto, no objeto da segunda ação, enquanto questão prejudicial.

Autoridade de caso julgado e exceção de caso julgado da mesma sentença parecem ser duas faces da mesma medalha. Refere-se a exceção quando a eadem quaestio se suscita na ação ulterior como thema decidendum do mesmo processo e fala-se em autoridade de caso julgado quando a eadem quaestio se coloca na ação subsequente como questão de outro tipo (fundamental ou mesmo tão somente instrumental).

       Segundo Miguel Teixeira de Sousa, os efeitos do caso julgado material projetam-se em processo subsequente necessariamente como exceção, consubstanciando-se a decisão anterior num impedimento à decisão de idêntico objeto posterior, ou como autoridade, em que o conteúdo da decisão anterior constitui uma vinculação à decisão de distinto objeto posterior. Segundo o mesmo Autor, “Quando o objecto processual anterior é condição para a apreciação do objecto processual posterior, o caso julgado da decisão antecedente releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente; quando a apreciação do objecto processual antecedente é repetido no objecto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como excepção do caso julgado”.

       De acordo com José Lebre de Freitas, “pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito”. Enquanto a exceção é alegada para impedir que seja proferida uma nova decisão, a autoridade é invocada como decisão de um pressuposto de uma nova decisão.

     Esta distinção pressupõe a identidade dos objetos processuais na exceção, sendo o objeto da ação anterior repetido na ação subsequente, de um lado, e a diversidade dos objetos processuais na autoridade, surgindo o objeto da primeira ação como pressuposto da apreciação do objeto da segunda. No primeiro caso, deve impedir-se a repetição, porquanto esta iria reproduzir inutilmente a decisão anterior ou decidir diversamente, contradizendo-a. Na segunda hipótese, verificando-se a existência como que de uma dependência do objeto da segunda ação perante o objeto da primeira, as questões comuns não devem ser decididas de modo diferente. Por isso, a decisão da segunda ação deve incorporar o que foi decidido na primeira, como pressuposto indiscutível.

      Prescindindo da identidade objetiva, a autoridade de caso julgado exige a identidade das partes.

     A) Da exceção de caso julgado

      Enquanto exceção, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa idêntica, a verificação de uma tríplice identidade: dos sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

(…)

      Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, a função negativa (exceção de caso julgado) e a função positiva autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma medalha, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade.

       Para outros, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado. Diferentemente da exceção, que pressupõe sempre a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir (art. 581.º, n.ºs 1-4, do CPC), a autoridade não a requer. Pois a exigência dessa tríplice identidade redundaria no aniquilamento do caso julgado enquanto autoridade. "A autoridade existe onde a excepção não chega, justamente nos casos em que não há identidade objectiva".

      Todavia, quanto à identidade objetiva, segundo João de Castro Mendes, “(…) se não é preciso entre os dois processos identidade de objecto (pois justamente se pressupõe que a questão que foi num thema decidendum seja no outro questão de outra índole, maxime fundamental), é preciso que a questão decidida se renove no segundo processo em termos idênticos” – o que in casu não se verifica, pois que não se discute o direito de propriedade da A. Constitui problema delicado a “relevância do caso julgado em processo civil posterior, quando nesse processo a questão sobre a qual o caso julgado se formou desempenha a função de questão fundamental ou mesmo de questão secundária ou instrumental, não de thema decidenum”. Considera, apesar disso, que “base jurídica para afirmarmos que, havendo caso julgado e levantando-se num processo civil seguinte inter easdem personas a questão sobre a qual este recaiu, mas levantando-se como questão fundamental ou instrumental e não como thema decidendum (não sendo, pois, de usar a excepção de caso julgado), o juiz do processo novo está vinculado à decisão anterior, é apenas o artigo 671.º n.º 1, na medida em que fala de força obrigatória fora do processo, sem restrição, e ainda a ponderação das consequências a que essa falta de vinculação conduziria”.

       O mesmo Autor observa que “o respeito pelo caso julgado posto em causa num processo posterior, não como questão central, mas como questão fundamental, ou instrumental, representa uma conquista da ciência processual que vem já dos tempos de Roma. Não nos parece estar em causa no direito português. Só nos parece inconveniente que o seu fundamento seja apenas o vago e genérico art.º 671.º n.º 1. A vinculação do juiz ao caso julgado quando a questão respectiva seja levantada como fundamental ou instrumental baseia-se, evidentemente, na função positiva do caso julgado. De iure condito, a excepção de caso julgado, quando peremptória nos termos do art.º 496.º, alínea a), desenvolve igualmente a função positiva do caso julgado”.

Também outros Autores consideram que “(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito. Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

      A autoridade do caso julgado implica, pois, o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação subsequente, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

       De acordo com José Lebre de Freitas, a autoridade de caso julgado “assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”. Conforme Miguel Teixeira de Sousa, "o caso julgado material pode valer em processo posterior como autoridade de caso julgado, quando o objecto da acção subsequente é dependente do objecto da acção anterior (…)”.

     Uma decisão é passível de ser pressuposto da segunda ação, um antecedente na apreciação da nova ação. Está em causa, segundo Miguel Teixeira de Sousa, uma “consumpção prejudicial” entre objetos processuais, uma vez que a decisão sobre o objeto antecedente é uma premissa da decisão sobre o objeto subsequente.

     Por seu turno, para Maria José Capelo, “Transparece do regime legal a opção por um sistema restritivo (não extensão do caso julgado), embora sejam atraentes as vantagens de economia e harmonização de julgados emergentes de um sistema que estenda a indiscutibilidade aos fundamentos”. Com efeito, o princípio dispositivo, que, apesar de matizado, continua a reger o direito processual civil português, concilia-se mais facilmente com uma tese mais restritiva dos limites objetivos do caso julgado. Para João de Castro Mendes, “Talvez o argumento mais forte a favor dum sistema restritivo esteja em que este é mais adequado ao princípio dispositivo dominante no processo civil moderno”. Em prol desse mesmo sistema restritivo depõe ainda uma noção de proporcionalidade enquanto graduação de esforços no processo pela extensão dos interesses que nele são postos em causa, assim como o sistema da substanciação da causa de pedir. De acordo com o mesmo Autor, “só deve revestir força de caso julgado a solução da questão central do processo, para cujo esclarecimento convirjam todos os esforços, que seja no processo o tema primário, absoluto, de investigação; não as soluções de questões que no processo só interessem relativamente, como simples meio de esclarecimento daquela”. Por isso, os motivos esgotam a sua função enquanto servem para explicar o conteúdo e âmbito da decisão.”.

       Em síntese, a autoridade do caso julgado impõe o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreva, como pressuposto fundamental, no objecto de uma acção posterior, ainda que este possa não ser integralmente idêntico, de tal forma que isso obste a que a relação jurídica ali definida venha a ser decidida de forma diversa.

       Assim, como refere o acórdão de 08 de Novembro de 2018, proferido no processo n.º 478/08.4TBASL.E1.S1 – 2.ª Secção, “embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”

     Nesta linha, a eficácia de autoridade de caso julgado pressupõe uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida aqui invocada.”.

       Revertendo ao caso concreto.

      Como já referido supra, invoca o recorrente que a decisão instrutória violou a autoridade do caso julgado formado nos processos n.º 595/11.3PBBGC.G1 e n.º 114/12.4TRPRT, do Tribunal da Relação de Guimarães. Entende o recorrente que em tais processos foi decidido que, nos casos em que o agente está obrigado a falar com verdade (porque, por exemplo, depõe enquanto testemunha), sempre que os factos que consubstanciam o seu depoimento forem verdadeiros nenhuma infracção foi cometida; ao invés, caso tais factos sejam falsos poderá estar em causa a prática do crime de falsidade de testemunho (artigo 360.º do Código Penal), mas nunca a prática do crime de difamação. Considera, ainda, que tal entendimento terá de ter autoridade de caso julgado nos presentes autos.

       A este respeito, cumpre, desde já, afirmar, que não assiste razão ao recorrente. Com efeito, está em causa um entendimento jurídico, uma interpretação dos normativos jurídicos eventualmente aplicáveis a um determinado caso concreto e que, por isso mesmo, não reveste qualquer autoridade de caso julgado.

      Como refere Miguel Teixeira de Sousa, “Estudo sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, abordando os limites objectivos do caso julgado, no que toca a fundamentos de direito, pág. 583:

      “a. A fundamentação jurídica da decisão não se inclui, em princípio no valor de caso julgado da decisão, pelo que os juízos sobre a validade, interpretação e aplicação do direito não se integram no caso julgado. Quer dizer: mesmo quando os fundamentos de facto ficam englobados nesse caso julgado, tal sucede sem essa eficácia se estender à sua qualificação jurídica (cfr., v.g., RE – 22/2/1983, CJ 83/1, 321).

      b. Encontram-se algumas excepções a este princípio. Elas podem ser agrupadas em dois conjuntos. Num primeiro, cabem as excepções impostas pelo exercício da função jurisdicional. É o que se verifica no âmbito de um processo pendente: as decisões definitivas proferidas pelos tribunais superiores sobre o regime jurídico aplicável são vinculativas para os tribunais recorridos (cfr. artº 4º, nº 1, EMJ; concretizando esta vinculação numa situação especial, cfr. artºs 729º, nº 3, e 730º, nº 1).

       Um outro conjunto de excepções inclui as situações em que uma determinada qualificação jurídica integra uma previsão e em que, portanto, o caso julgado produz um efeito normativo. Assim, por exemplo, são incompensáveis os créditos provenientes de factos ilícitos dolosos (artº 853º, nº 1, al. a) CC), pelo que o tribunal da execução não pode aceitar a extinção de um desses créditos com base num contracrédito alegado pelo lesante executado. Dessa circunstância também se pode concluir que, se o tribunal considerar que o lesante agiu com negligência, o lesado não pode invocar, contra os embargos deduzidos pelo executado (cfr. artº 813º, al. g)) numa acção executiva instaurada por aquele, que a compensação declarada pelo executado não pode operar, porque a sua conduta foi dolosa.”.

       Tal é também o entendimento seguido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal acima citada.

       Assim, o que o recorrente qualifica como autoridade de caso julgado, mais não é do que a fundamentação jurídica das decisões invocadas, isto é, a interpretação e articulação das várias normas jurídicas em apreciação naqueles concretos casos. Não podem, pois, as mesmas revestir a autoridade de caso julgado pretendida, improcedendo, desta forma, nesta parte, o recurso.

       Questão IV - Verificação da causa de justificação prevista nas alíneas b) e c) do artigo 31.º do Código Penal, bem como da prevista no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal.

       Nas conclusões D) a H), invoca o recorrente que estando em causa declarações prestadas pelo mesmo em sede de declarações de parte, sempre se verificaria a causa de justificação prevista nas alíneas b) e c) do artigo 31.º do Código Penal, bem como a prevista no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal, uma vez que estando obrigado a falar com verdade, o mesmo limitou-se a fazer isso mesmo, em cumprimento do dever legal de contribuir para a descoberta da verdade e no exercício de um direito legítimo.

       Está em causa uma decisão instrutória, pelo que convirá, antes de mais, recordar as finalidades da fase processual de instrução.

      Como decorre do disposto no artigo 286.º do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

      No que respeita à direcção e natureza da instrução, o artigo 288.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, dispõe que o juiz de instrução – a quem compete a direcção da instrução –, investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior.

       Por outro lado, determina o artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que, encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução. Acrescenta o artigo 308.º, n.º 1, do mesmo diploma que se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

       Da análise deste regime extrai-se que, visando a instrução, no caso de ter sido deduzida acusação, a comprovação judicial da acusação, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido deve conter as razões de facto e de direito que fundamentam a sua discordância relativamente à acusação deduzida.

       O requerimento de abertura de instrução procurará infirmar a acusação, substanciando uma contestação àquela, devendo contribuir para a determinação do objecto da instrução, delimitando e definindo o âmbito e os limites da investigação a cargo do juiz de instrução, bem como a final da decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia; o texto do requerimento constitui o horizonte e o limite da correcção possível.

     A este propósito, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, Editorial Verbo, 1994, a págs. 130/131, afirma: “formulada a acusação pelo MP (art. 283.º) ou pelo assistente quando o procedimento depender de acusação particular (art. 285.º), o arguido pode (…) requerer a abertura da fase da instrução, fundamentando o requerimento com as razões de facto e de direito que, na sua perspectiva, deverão conduzir à rejeição total ou parcial da acusação (…)”.

       Acrescenta este Autor (loc. cit.) que “(…) a instrução pode ser requerida pelo arguido com o fim de ilidir ou enfraquecer a prova judiciária da acusação, mas também por razões puramente de direito material ou adjectivo, que a tornem inadmissível. Já não parece que possa ter lugar a requerimento do arguido quando apenas pretenda ilidir ou enfraquecer a prova indiciária ou preparar a defesa sem pretender, porém, a neutralização da acusação, pela sua rejeição na decisão instrutória”.

      Conclui que a instrução a requerimento do arguido “visa o controlo negativo da acusação”.

       Nas palavras de Cecília Santana, “Dos limites do requerimento do arguido para abertura da instrução”, “Questões Avulsas de Processo Penal”, A.A.F.D.L., 2000, pág. 47, “numa primeira leitura conjugada dos artigos 286.º, n.º 1, e 287.º, n.º 1, alínea a), do CPP, pode apreender-se que, para o arguido, o requerimento para abertura de instrução funciona como uma impugnação da acusação do MP, nos crimes públicos e semi-públicos, onde ela é a acusação dominante (artigos 283.º e 284.º do CPP), ou da acusação particular, nos crimes dela dependentes, onde ela, existindo, se apresenta igualmente como a acusação dominante (artigo 285.º, n.º 3, do CPP)”.

       Explica Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2007, pág. 741 (e pág. 781, na 4.ª edição actualizada, 2011), em anotação ao artigo 287.º do citado Código, que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido é constituído pelas seguintes partes: a) a narração dos factos que fundamentam a não aplicação de uma pena ou uma medida de segurança; b) as razões de direito de discordância relativamente à acusação; c) a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo; d) e os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito.

       No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Março de 2007, proferido no processo n.º 4688/06 - 3.ª Secção, refere-se:

       “A estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para abertura de instrução.

      O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais – artigo 287.º, n.º 2, do CPP – mas há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação.

      O objecto da instrução deve ser suficientemente delimitado, com a indicação («mesmo em súmula», diz a lei – artigo 287.º, n.º 2, do CPP) das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação ou arquivamento, bem como a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.

       (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução”.

      A dedução de acusação pressupõe a presença de “indícios suficientes” ou “prova bastante” de prática de crime e da sua imputação ao acusado.

       Estabelece o artigo 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

       Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, 1.º vol., Coimbra Editora, 1981, págs. 132/3, pondera que o Ministério Público tem de considerar que já a simples dedução da acusação representa um ataque ao bom nome e reputação do acusado, o que leva a defender que os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.

     De seguida, cita Castanheira Neves, que ensina que na suficiência dos indícios está contida “a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final - só que a instrução preparatória (e até a contraditória) – assim era ao tempo – não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

      Acrescenta que a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de aferir-se no plano fáctico e não no plano jurídico.

      Comentando o preceito, diz Maia Costa no “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 992: “No n.º 2 define-se a suficiência de indícios, em termos coincidentes com a doutrina há muito estabilizada (ver Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 133). Em síntese, poderá dizer-se que são suficientes os indícios que ultrapassem o teste da “dúvida razoável”, na perspectiva da produção da prova na audiência de julgamento. Por isso se entende que o juízo sobre a suficiência da indiciação deve ter o mesmo grau de exigência que o do julgamento (Paulo Dá Mesquita, “Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária”, pág. 92; e Carlos Adérito Teixeira, “Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar”, Revista do CEJ, 2.º Semestre de 2004, n.º 1, pág. 189).

      Acrescenta na edição de 2016, pág. 949: Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, Jornadas de direito processual penal e direitos fundamentais, pp.180-181.

       O já citado Carlos Adérito Teixeira, pág. 161, refere “o conceito de “indícios suficientes” torna-se a questão central do sentido da decisão (de acusação), a qual não reveste apenas natureza instrumental que faz despoletar o procedimento, antes se assume como verdadeira decisão de mérito pela qual se “fixa” uma factualidade e respectiva qualificação jurídica e, por essa via, se define o objecto do processo”.

     Para o mesmo Autor apenas o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de probabilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e é o melhor que se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo. Acrescenta que, por esta via, afirma-se a necessidade de se verificar - na linha, agora refinada, da concepção que presidia ao ensinamento doutrinal e jurisprudencial ao tempo do Código de Processo Penal de 1929 - uma convicção de “alta probabilidade” de condenação, ainda decalcada no termo “razoável”, atenta a maleabilidade do mesmo (logo, não determinante do estabelecimento de uma precisa linha de fronteira).

      Esta interpretação (necessidade de uma possibilidade particularmente forte de futura condenação) defende que os indícios são suficientes quando a possibilidade de futura condenação do arguido em julgamento for mais provável do que a possibilidade da sua absolvição. É a chamada teoria da probabilidade predominante.

       Não basta uma probabilidade aleatória, uma mera possibilidade, que há-de conduzir à acusação ou à pronúncia, sendo de repudiar a solução que consigna a mera possibilidade de condenação, ainda que diminuta ou ínfima, por violar o princípio da presunção de inocência do arguido. 

       Analisando.

       O crime em causa nos autos é o crime de difamação.

       Vejamos.

       Nesta abordagem seguiremos de perto o que escrevemos nas decisões instrutórias proferidas em 18 de Maio de 2016, no processo n.º 161/14.1TAAMR.S1 e em 8 de Junho de 2016, no processo n.º 409/14.2T9EVR.S2.

       Difamação - O contributo da sociedade civil

      Estes contributos, oriundos de fora do campo da juridicidade, presentes em dicionários e enciclopédias de referência, são obviamente importantes para a percepção do quadro em que nos movimentamos, até porque não estão presos às amarras das definições dos tipos criminais. Como óbvio é, deverão ser lidos com alguma parcimónia e tendo em conta o seu contexto e as suas fontes, em que inclusive, se socorrem dos ensinamentos dos tratadistas na matéria, mas que hoje podem estar desactualizados, como a referência a exigência de dolo específico, havendo que ter em conta a época de produção da definição.  

      Como se vê, alguns dos conceitos são apresentados como sinónimos como na definição de injuriar e de caluniar, o que não é de estranhar, atenta a identidade de bem jurídico tutelado, a vertente pessoal ou moral ou a dimensão social do valor honra, havendo quem defenda que o crime matricial deveria ser a injúria e não a difamação.

  No Dicionário Enciclopédico Luso-Brasileiro, Lello Universal, em dois volumes, obra editada e impressa por Lello & Irmão, Editores, Rua das Carmelitas, 144, 1980, Porto, de acordo com a Livraria Larousse, volume primeiro, letras A-K, a págs. 752, consta:

      Difamação, s. f. (Latim diffamatione) - Acto ou efeito de difamar. Descrédito. Calúnia.

      A difamação é a acção de difamar ou desacreditar alguém, de viva voz, por escrito ou desenho publicado, ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe factos ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação (Cód. Pen., arts. 407 e segs.)

      Difamar, v. t., proveniente do latim diffamare. “Tirar a boa fama ou o crédito a. Desacreditar publicamente. Caluniar: Difamar um adversário político

      Na pág. 435, define Calúnia - substantivo feminino, oriundo do latim calumnia, como “Imputação falsa; ofensiva da reputação e crédito de alguém: A calúnia é a arma dos cobardes”.

      Em termos de enciclopédia, avançava-se com o seguinte: “Chamava-se calúnia o facto de se proceder com intenção vexatória, sabendo-se sem direito e só se esperando vencer, graças ao erro ou à iniquidade do juiz. A calúnia era punida quando formava a base de uma acusação judiciária. A pena era, na origem, a de talião, em caso da acusação capital, ou as de deportação ou de degredo. Mais tarde, a pena tornou-se arbitrária e foi proporcionada às circunstâncias. Na actualidade está compreendida juridicamente em difamação e injúria”.

       Caluniador, como adjectivo: “Que calunia”, e como s.m.: “Aquele que calunia”: Um vil caluniador.   

       De seguida, define “Caluniar” como “Ofender com calúnias. Difamar por meio de acusações conscientemente falsas”.

      Chama à colação como alusão literária a frase em que se resume a famosa tirada de D. Basílio, no Barbeiro de Sevilha: “Caluniai, caluniai, que da calúnia sempre alguma coisa fica!”.

       No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa e Editorial Verbo, 2001, sendo coordenador João Malaca Casteleira, I volume – A-F, na pág.1252, consta:

       Difamação – Acção de por em causa, publicamente, e por qualquer meio, a honra ou a reputação de alguém; acto ou efeito de difamar. = Calúnia. Detratacção.

       Difamador. adj. Que desacredita, calunia publicamente alguém, pondo em causa a sua honra ou reputação; que difama.

       Difamadors. Pessoa que, publicamente, põe em causa a honra e a reputação de outrem; pessoa que difama. = Caluniador.

Difamarv. Atacar, manchar a honra, o nome, a reputação …, fazendo acusações graves e caluniosas; desacreditar publicamente. = Caluniar, desacreditar, infamar.

No volume A-F, na pág. 642, consta:

       Calúnias.f. Acusação ou imputação falsa que ofende a honra ou a dignidade de alguém. = Difamação.

       Caluniarv. Fazer falsas declarações acerca de uma pessoa com o intuito de atingir a sua reputação ou credibilidade; proferir calúnias. = Difamar.

       Caluniadoradj. Que faz acusações falsas, que calunia outrem. =Difamador

      Caluniadors. - Pessoa que faz acusações falsas, que calunia outrem, atribuindo-lhe falsos delitos, acções ou palavras. = Difamador. 

       Na Nova Enciclopédia Larousse, Editora Delta SA, Rio de Janeiro, 1983, no n.º 1, consta, a págs. 373:

       Calúnia – Falsa acusação que fere a reputação, a honra; difamação.

       Caluniador – Que, ou aquele que calunia, detrata, difama.

       Caluniar – Atingir alguém em sua reputação, em sua honra, por acusações falsas; difamar.

       No volume 2, pág. 629:

       Difamação – Ação de difamar./Imputação que se faz a alguém de um fato ofensivo a sua honra e consideração; descrédito, calúnia, infâmia.

       Difamador – Que, ou o que difama; caluniador.

       Difamar – Imputar a alguém fato ofensivo de sua honra ou de sua reputação. /Desacreditar publicamente. / Caluniar.

       No Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube, 1996, Tomo IV, a págs. 1149, consta:

       Caluniar – Atribuir indevidamente a alguém palavras, actos ou intenções desonrosas; difamar.

       Calúnia – Acusação falsa, feita maliciosamente, para causar dano.

       Calunioso – Que contém calúnia; difamatório.

       A págs. 2047 do Tomo VI, consta:

       Difamaçãos. f. Acto ou efeito de difamar. Sinónimo - Murmuração, calúnia, maledicência,  detração.

       Difamação – É a imputação de um facto ofensivo da honra e consideração de uma pessoa, feita perante terceiros e sem a presença do ofendido. Toda a difamação pressupõe a existência de uma calúnia, mas não se deve confundir com a injúria, pois enquanto a difamação é feita perante terceiro sem a presença do ofendido, a injúria é feita perante aquela.

       Difamar – 1. Publicar informações contra o bom nome e fama de. 2. Por em baixo conceito e estima. Sinónimo: Caluniar, denegrir, desacreditar, infamar.

       Começar-se-á por abordar a caracterização do imputado crime de difamação e o bem jurídico tutelado por tal tipo legal.

       Bem jurídico tutelado

      A decisão acerca do carácter lesivo da honra/reputação da assistente, face às expressões proferidas aquando do depoimento de parte prestado pelo arguido no âmbito da acção ordinária n.º 704/12.5... da ... Vara Cível de Lisboa, ora em causa, sempre dependerá, em primeira linha, da determinação do bem jurídico protegido pela incriminação do crime de difamação pelo qual o arguido foi pronunciado.

     Como se pode ler no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 128/2012, de 7 de Março de 2012, proferido no processo n.º 385/11, da 1.ª Secção “Pode dizer-se que a honra deverá ser hoje entendida, enquanto objecto de tutela penal, como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição) e, nessa medida, como um conceito normativo cuja concretização não dispensa a convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social, enquanto pessoa empenhada na realização dos seus planos de vida e ideais de excelência, o que tem correspondência constitucional no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição. È este bem jurídico, necessariamente complexo – como o interesse da estima que cada um tem por si próprio, e simultaneamente, como valor de não desconsideração social –, que a norma protege através dos tipos legais das injúrias e da difamação”.

      Vejamos, pois, a configuração da honra e reputação como um dos direitos que enformam os direitos de personalidade.

Honra e consideração/reputação como direito de personalidade

       O direito ao bom nome e reputação é um direito fundamental que encontra assento no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República, que estabelece:

       1 – A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.

       O artigo 26.º, n.º 1, da lei fundamental consagra, de entre outros vários (oito) direitos de personalidade, o direito «ao bom nome e reputação». Como explicitação directa do princípio da dignidade humana integra este direito um núcleo essencial representativo da dimensão existencial do homem, pelo que, sem a sua protecção perante certas agressões, não é concebível o desenvolvimento social da pessoa. O seu conteúdo é constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros.

      Como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, 4.ª edição, revista, 2007, pág. 466, “O direito ao bom nome e reputação consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social, mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação (cfr. Cód. Penal, arts. 164.º e 165.º). Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (designadamente, a liberdade de informação e de imprensa).

       [A referência aos preceitos indicados não se justifica desde 1 de Janeiro de 1983, devendo entender-se como sendo os artigos 180.º e 181.º].

      O direito ao bom nome e reputação constitui um direito de personalidade, que encontra tutela civil no artigo 70.º, n.º 1, do Código Civil, a celebrar o Cinquentenário, que estabelece:

       “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”.

      O n.º 2 do artigo 70.º estabelece que para além da responsabilidade civil, a pessoa ameaçada ou ofendida, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já consumada.

       Deste preceito retiram-se três formas de tutela, alternativas ou cumulativas, a saber:

       Responsabilidade civil; Providências preventivas e Providências atenuantes.

      (Assim, Tiago Soares da Fonseca, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Lisboa, Janeiro de 2006, Da tutela judicial civil dos direitos de personalidade - Um olhar sobre a jurisprudência, pág. 230).

       Para Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Novembro de 2006, pág. 126, “Os meios de tutela civil do direito subjectivo de personalidade são de duas ordens: as providências especiais de defesa da personalidade e a responsabilidade civil. A págs. 127, refere que da redacção do n.º 2 são de retirar três linhas de protecção dos direitos de personalidade: a responsabilidade civil, a tutela preventiva e a atenuação do possível, não estando no mesmo plano a responsabilidade civil e os remédios directos, sendo as providências decretadas em processo especial de jurisdição voluntária, regulado nos artigos 1474.º e 1475.º do CPC. [Actualmente, artigos 878.º, 879.º e 880.º do CPC em vigor].

       Disposição específica atinente à ofensa do crédito ou bom nome é o artigo 484.º do Código Civil, que estabelece: “Quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”.

       A afirmação ou divulgação de factos capazes de prejudicarem o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, constitui facto antijurídico especialmente previsto na lei, a par dos simples conselhos, recomendações ou informações, para além das omissões, como pressuposto da responsabilidade civil - Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. I, 3.ª edição, Almedina, 1980, págs. 426 e 439/440.

      Quanto à referência a pessoa colectiva, cfr. Pais de Vasconcelos, loc. cit.,  pág. 126.

       Os crimes de difamação e de injúrias na lei e na doutrina

 

       Como se colhe de Luís Osório da Gama e Castro e Oliveira Batista, Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1924, volume III, pág. 306, “Em direito Romano a palavra injúria pela lei das XII tábuas compreendia somente as ofensas corporais, depois estendeu-se a toda a ofensa intencional da pessoa e foram especialmente mencionadas o pulsare, o verberare e o domum vi introire, mas abrangia todas as ofensas ao corpo, como à liberdade, à honra e à situação jurídica.

       A palavra honra não tinha a compreensão que actualmente tem, pois significava pleno gozo dos direitos do cidadão Romano.

       O direito Romano não conheceu uma distinção entre os crimes de injúria semelhante à usada actualmente nos Códigos”.

     Apenas as injúrias estavam previstas no Código Criminal, “intentado pela Rainha D. Maria I., com as provas”, sendo autor Pascoal José de Melo Freire, 3.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1844.

       Como consta das Provas (Provas em que o Autor do Código fundou as doutrinas da obra), pág. 113, as Ordenações desconheciam, não definiam, o verdadeiro conceito e ideia do que é injúria e suas diferentes espécies, e muito menos, penas fixas e certas contra os injuriantes.

       Como aí se dá notícia “A Lei Novíssima de 15 de Março de 1751 sobre o delicto dos cornos à porta dos homens casados só diz que é caso de devassa; mas sobre a sua pena guarda segredo”.

       Querendo suprir este e outros defeitos, disse o Autor no título [XXXV] “o que era injuria em geral e suas espécies, com diferença da pura e simples maledicência, verbal e real, à qual se reduz a que se faz por escrito ou pintura; simples e qualificada; em presença ou em ausência, assinando a cada a competente pena”.

       No Título XXXV - Das injúrias, dizia-se:

       “Chama-se injuria neste logar tudo o que se diz, faz, ou escreve com animo de offender, doestar, ou injuriar alguma pessoa, assim na sua presença, como em ausência”.

       As espécies de injúrias, respectivas penas e modo de execução, constam de 22 (vinte e dois) parágrafos, de que se extrai o teor dos cinco primeiros:

§ 1.º - A injuria, commetida directamente contra os filhos ou mulher, se julga também feita ao pai ou marido; e por elles póde ser prosseguida. 

       § 2.º - Os outros parentes, por mais conjunctos que sejão, e muito menos os estranhos, exceptos os tutores ou curadores a respeito dos menores entregues á sua guarda e tutela, não podem demandar as injurias alheias.

       § 3.º - O que se faz ou diz por brinco ou correcção dentro dos limites do officio e poder de cada um, não injuria.

       § 4.º - Nenhum feito, acção, ou palavras se devem dizer injuriosas, não sendo feitas e ditas com esse animo, ou podendo ter outra interpretação. 

       § 5.º - O que disser injurias com animo de injuriar, ainda que refira o seu auctor, e seja verdade o que diz, sempre se castigará, se não forem as injurias públicas e sabidas de todos.

       Código Penal de 1852

 

      Aprovado pelo Decreto de 10 de Dezembro de 1852 “confirmado pela lei de 1 de Junho de 1853 (D. do G. n.º 128), que lhe deu, do mesmo modo que a outros decretos da dictadura, chamada da regeneração, a indispensável força de lei”.

                                                             Artigo 407.º 

       Se alguem diffamar outrem publicamente, de viva voz, ou por escripto publicado, ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto offensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação, será condemnado a prisão por seis dias a seis mezes, e multa correspondente.

       (Texto extraído do Código Penal, aprovado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Lisboa, Imprensa Nacional, Edição Official, de 1853 e idem de 1867, Código Penal, oitava edição official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, e ainda do Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 228. O texto é semelhante, com a única diferença de no último constar “mulcta” em vez de multa).

                                                           Artigo 410.º 

       O crime de injuria, não se imputando facto algum determinado, se fôr commettido contra qualquer pessoa publicamente, de viva voz, ou por escripto publicado, ou por qualquer meio de publicação, será punido com tres dias a tres mezes de prisão, e multa correspondente.

       § único. Na accusação por injuria não se admitte prova sobre a verdade de facto algum a que a injuria se possa referir, salvo nos casos declarados nos dois números do artigo 408.º

       (Texto extraído do Código Penal, Approvado por Decreto de 10 de Dezembro de 1852, Lisboa, Imprensa Nacional, Edição Official, de 1853 e idem de 1867, Código Penal, oitava edição official, Lisboa, Imprensa Nacional, 1882, e ainda do Código Penal Portuguez Annotado por Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, Lente de Prima, Decano e Director da Faculdade de Direito, 6.ª edição, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1881, pág. 228. O texto é semelhante, com a única diferença de no último constar “mulcta” em vez de multa).

       Nova Reforma Penal

       Aprovada por Decreto de 14 de Junho de 1884 e publicada por Carta de Lei da mesma data.

      Diploma constituído por 91 artigos. Os primeiros noventa estabeleceram novos princípios relativamente a toda a matéria do Livro I do Código, tendo o artigo 91.º dado diferente redacção a 123 artigos (incluídos os artigos 407.º e 410.º e § único) do Livro II, o qual tinha a epígrafe “Dos crimes em especial”. 

       Pode ver-se o texto em Código Penal Portuguez Annotado, 1881, de Antonio Luiz de Sousa Henriques Secco, mas numa Segunda Parte, contendo a Nova Reforma Penal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1884, com os noventa artigos da Parte Geral e as alterações introduzidas pelo artigo 91.º na Parte Especial, incluídos os artigos 407.º e 410.º - págs. 51 e 52) em substituição dos citados artigos do Código Penal de 1852, passando a estabelecer:

                                                            Artigo 407.º 

       Se alguem diffamar outrem publicamente, de viva voz, por escripto ou desenho publicado ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto offensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação, será condemnado a prisão correccional até quatro mezes e multa até um mez.

(Alterada a pena).

                                                             Artigo 410.º 

       O crime de injuria, não se imputando facto algum determinado, se for commettido contra qualquer pessoa publicamente, por gestos, de viva voz, ou por desenho ou escripto publicado, ou por qualquer meio de publicação, será punido com prisão correccional até dois mezes e multa até um mez.

       § único. Na accusação por injuria não se admitte prova sobre a verdade de facto algum a que a injuria se possa referir.

(Alargado o modo de execução extensível a “gestos” e “desenho”, sendo alterada igualmente a pena e no § desaparecendo a ressalva final).

       Código Penal de 1886

       Estabelecia o artigo 5.º da Nova Reforma Penal: “É auctorisado o governo a fazer uma nova publicação official do codigo penal, na qual deverão inserir-se as disposições da presente lei”.

       Pelo Decreto de 16 de Setembro de 1886 (Diário do Governo, de 20 de Setembro do mesmo ano), usando da autorização concedida ao Governo pelo artigo 5.º da Carta de Lei de 14 de Junho de 1884 (Nova Reforma Penal), foi aprovada a nova publicação oficial do Código Penal, inserindo as disposições da mesma Lei, ou seja, as da Nova Reforma, continuando o crime de difamação previsto no artigo 410.º e o de injúria no artigo 410.º

       A redacção fundamental do Código Penal vigente até 31 de Dezembro de 1982 (artigos 2.º e 6.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, que aprovou o Código Penal de 1982) é assim a do Código de 1852 com a nova publicação oficial de 1886, em que foram introduzidos os princípios da Nova Reforma Penal de 1884 (a que se juntaram reformas parciais posteriores, como a de 1931 – Decreto-Lei n.º 20 146, de 1 de Agosto – e a de 1954 – Decreto-Lei n.º 39 688, de 5 de Junho).

       Integrado no Capítulo V “Crimes contra a honra, difamação, calúnia e injúria” do Título IV – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Dos crimes em especial, estabelecia o

                                                            Artigo 407.º

                                                            (Difamação)

      Se alguém difamar outrem publicamente, de viva voz, por escrito ou desenho publicado ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto ofensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação, será condenado a prisão correccional até quatro meses e multa até um mês.

(Fonte: Código Penal Português, nona edição, Coimbra, Imprensa da Universidade 1928).

                                                            Artigo 410.º

                                                               (Injúria)

       O crime de injúria, não se imputando facto algum determinado, se fôr cometido contara qualquer pessoa publicamente, por gestos, de viva voz, ou por desenho ou escrito publicado, ou por qualquer meio de publicação, será punido com prisão correccional até dois meses e multa até um mês.

       § único. Na acusação por injúria não se admite prova sôbre a verdade de facto algum a que a injúria se possa referir.

(Fonte: Código Penal Português, nona edição, Coimbra, Imprensa da Universidade 1928).

       Código Penal de 1982

       Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor, de acordo com o artigo 2.º deste diploma legal, em 1 de Janeiro de 1983.

       Integrado no Capítulo V “Crimes contra a honra” do Título I – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Parte especial, estabelecia o                                                     

                                                          Artigo 164.º

                                                           (Difamação)

1 – Quem, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, será punido com prisão até 6 meses e multa até 50 dias.

2 – O agente não será punido:

a) Quando a imputação for feita para realizar o interesse público legítimo ou por qualquer outra justa causa;

b) Prove a verdade da mesma imputação ou tenha fundamento sério para, em boa fé, a reputar como verdadeira.

3 – A boa fé exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso imponham, sobre a verdade da imputação.

4 – Quando a imputação for de facto que constitua crime, será também admissível a prova, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado. 

       Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 1984, 2.ª edição, págs. 261/2 e na 6.ª edição, 1992, págs. 423/4, (do mesmo modo mantida na anotação 3 na 8.ª edição, 1995, já face ao artigo 180.º, a págs. 656, bem como na 10.ª edição, de 1996, pág. 579 e na 12.ª edição, 1998, pág. 573), afirma:

       “Há profundas divergências entre este artigo e o seguinte, relativo ao crime de injúrias, e os correspondentes artigos do código anterior (407.º e segs.). Assim, enquanto, por um lado, o código anterior fazia assentar a distinção entre difamação e injúrias no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, seguiu-se agora como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiros e sem a presença do ofendido, ou perante o ofendido. Por outro lado, enquanto o Código anterior não admitia, como princípio geral, a prova das imputações feitas (art. 408.º), parte-se agora do princípio oposto, embora com algumas excepções (n.º 3). Esta última alteração justificou-a o autor do Projecto, Prof. Eduardo Correia, com a ideia de que a paz social – que numa visão superficial deveria impor a proibição da prova – não deve ser conseguida com o sacrifício da verdade nas relações sociais, aliás a única base viável de uma paz autêntica entre os homens. Neste ponto, o Código seguiu agora uma tendência que se tinha sentido na moderna legislação, particularmente de imprensa. (Anotação presente ainda na 18.ª edição, 2007, pág. 666).

       Adianta ainda: “3. Para além das diferenças já assinaladas, nota-se agora uma maior e mais pormenorizada descrição das condutas integradoras do ilícito, particularmente a referência à imputação do facto ofensivo sob a forma de suspeita, o que virá permitir mais fácil incriminação de condutas reprováveis, como as imputações indirectas e outras, sabendo-se, como se sabe, que aqui são usados artifícios e camuflagens para encobrir difamações e injúrias.

       Dentro desta orientação, ainda a consagração expressa de que a boa fé se exclui quando o agente não cumpriu o dever de informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação”.

                                                             Artigo 165.º

                                                                (Injúrias)

1 – Quem injuriar outrem imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, será punido com prisão até 3 meses e multa até 30 dias.

2 – Tratando-se de imputação de factos, serão aplicáveis à injúria as regras dos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.

Os artigos antecedentes previam tão somente as difamações e injúrias verbais, contendo o artigo 166.º outros meios de execução equiparáveis.

                                                            Artigo 166.º

                                         (Equiparação à difamação ou injúria)

À difamação ou injúria verbais serão equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

       Código Penal de 1995

       Com a revisão de 1995 operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, entrada em vigor em 1 de Outubro seguinte, os crimes contra a honra foram deslocalizados.

       Integrado no Capítulo VI “Dos crimes contra a honra” do Título I – Dos crimes contra as pessoas – do Livro II – Parte especial, passou a estabelecer o                                           

                        

                                                         Artigo 180.º

                                                         (Difamação)

1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º deste Código, o disposto no número anterior não se aplica tratando-se da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

5 – Quando a imputação for de facto que constitua crime, é também admissível a prova da verdade da imputação, mas limitada à resultante de condenação por sentença transitada em julgado.

                                                           Artigo 181.º

                                                               (Injúria)

1 – Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.

2 – Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3, 4 e 5 do artigo anterior.

 

                                                         Artigo 182.º

                                                        (Equiparação)

À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.

       Revisão de 1998

       Os artigos 180.º e 181.º foram alterados pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro (Diário da República, I-A Série, n.º 202/98), que operou a 4.ª alteração ao Código Penal, sendo que, no que toca ao artigo 180.º, foi alterado formalmente o n.º 3 e eliminado o n.º 5, ficando a estabelecer assim:

                                                            Artigo 180.º

                                                            (Difamação)

1 – Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias.

2 – A conduta não é punível quando:

a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

3 – Sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 31.º, o disposto no número anterior não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar.

4 – A boa fé referida na alínea b) do n.º 2 exclui-se quando o agente não tiver cumprido o dever da informação, que as circunstâncias do caso impunham, sobre a verdade da imputação.

       No artigo 181.º foi alterado o n.º 2, atenta a eliminação do n.º 5 do artigo anterior, passando a estabelecer:

                                                            Artigo 181.º

                                                               (Injúria)

1 – Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.

2 – Tratando-se da imputação de factos, é correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.

                               

                                                                  *****

       Honra/reputação vs Liberdade de expressão

      Quando cometidos por meio de imprensa, os crimes de difamação e injúria eram considerados abuso de liberdade de imprensa, no termos dos artigos 10.º, 11.º e 13.º a 18.º da lei de liberdade de imprensa, aprovada pelo Decreto n.º 12.008, de 29-07-1926.

       Mais tarde, os abusos de liberdade de imprensa passaram a estar previstos no Decreto-Lei n.º 85-C/75, de 26 de Fevereiro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 181/76, de 9 de Março e pela Lei n.º 13/78, de 21 de Março, prevendo crimes de abuso de liberdade de imprensa por difamação e injúria nos artigos 25.º, 26.º, 27.º, 28.º e 29.º.

       Actualmente rege a Lei n.º 2/99, de 13 de Janeiro, rectificada pela Declaração n.º 9/99, de 4 de Março, e alterada pelas Leis n.º 18/03, de 211 de Junho, n.º 19/12, de 8 de Maio e n.º 78/2015, de 29 de Julho, prevendo a responsabilidade criminal nos artigos 30.º a 32.º

       Na Revista Sub Judice, 1999, Junho/Dezembro, n.ºs 15/16, podem ver-se várias abordagens sobre o tema das intersecções da justiça com a comunicação social.

       Vistas as soluções legislativas, passemos às formulações e propostas da

 

       Doutrina

           

       Começar-se-á por apontar a resposta a uma consulta feita por um assinante à Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 23.º, n.º 1123, 1125 e 1127 (1890 a 1891), págs. 179 a 182, com desenvolvimentos em termos de “correspondência polémica”, de págs. 212 a 218 e 242 a 246, segundo a qual “É diffamação o facto de imputar num jornal a um medico determinado, ou que possa determinar-se, o costume de indicar aos seus clientes a pharmacia onde hão de ser aviadas as suas receitas, recommendando essa pharmacia com exclusão de qualquer outra, se do contexto da noticia e do commentario do facto se conhecer que, segundo a opinião publica, não contrariada pelo espírito das leis, o mesmo facto, sendo verdadeiro, prejudicaria o medico na sua honra e consideração”.    

       A págs. 181 pode ler-se: “Também nós pensamos que um facto pode ser offensivo da honra e consideração sem que seja criminoso. Comprehendemos até que se posterguem os deveres impostos pela honra e consideração, sem que seja violada qualquer lei positiva, não querendo com isto dizer que possa tomar-se em conta para effeitos juridicos uma honra ou consideração baseada em principios puramente convencionaes, e que a lei não reconheça como respeitaveis. É que a lei não tutela o individuo até ao ponto de regular preceptivamente aquelles actos em que apenas está empenhado o interesse individual do próprio agente. Esses actos pertencem ao direito de liberdade, que comprehende o pensamento, a expressão e a acção (Codigo civil, artigo 361.º), e pelos abusos do direito de acção só é responsavel o individuo attentando contra os direitos de outrem ou do sociedade (citado Codigo, artigo 364.º). Esta responsabilidade porem é a que é imposta nos termos das leis; mas, alem da responsabilidade legal, ha outra meramente moral, que se traduz na perda do respeito alheio, todas as vezes que alguem, embora sem lesar os outros, viola os deveres impostos pela honra e deixa de merecer a consideração social.

       O facto neste caso não será illicito á face da lei juridica, mas é censuravel, em presença dessas outras leis sociaes, não escriptas nos Códigos, mas que emanam da orientação particular de uma época e dominam os costumes, comquanto sejam variaveis segundo a categoria social dos individuos. A imputação de tal facto é em todo o caso illicita e punivel, constituindo diffamação”.

       Na mesma Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 41.º, n.º 1749 a 1787 (1908/1909), igualmente a resposta a uma consulta feita por um assinante, dá-se nota das mudanças de paradigma do legislador, por onde se vê que a solução de 1982 já anteriormente havia sido adoptada.

       Numa primeira consulta, colocava-se a questão de saber se os crimes de injúria e difamação podiam ser cometidos por meio de carta missiva fechada, tendo a resposta sido positiva (referida RLJ, n.º 1769, a págs. 330/2).

       Numa segunda consulta a questão posta consistia em saber se as expressões contidas poderiam ser consideradas injuriosas.

       Na resposta, contida no n.º 1771, fazendo págs. 359 a 361, pode ler-se: “O critério diferencial entre a Difamação e a Injúria é o de o facto imputado ser determinado no primeiro crime e indeterminado no segundo”.

       De seguida, afirma-se: “Admitiu, assim, o nosso Código um critério de distinção entre a injúria e a difamação geralmente seguido pelas legislações modernas. Foram, pois, abandonados o de terem sido pronunciadas as palavras ofensivas na presença ou na ausência do ofendido, havendo injúria no primeiro caso e difamação no segundo, e o de se verificar ou não a publicidade, tendo lugar a difamação no primeiro caso e injúria no segundo”. (…)

       Para que o facto seja determinado não se torna necessário que ele se encontre especificado com todas as circunstâncias de tempo, lugar, modo, etc., pois a imputação da difamação contrapõe-se à vaga e genérica da injúria, não se tornando por isso necessário que o facto imputado seja determinado com todas as suas circunstâncias.

       A honra refere-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter, ao passo que a consideração se refere ao património do bom nome, de crédito e de confiança que cada um pode ter adquirido e que pode ser lesado sem se ofender a honra.

       A honra é, pois, a essência da personalidade humana, ao passo que a consideração é o seu aspecto exterior e superficial, pois provem do juízo em que somos tidos pelos nossos semelhantes.      

       J. P. Frola, Das injúrias e difamações, tradução de Sousa Costa, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1912, volume I, pág. 318, afirmava: “A palavra irreverente pensada, e pelo espírito desejada, quer irrompa dos lábios, ou caia da pena, ou saia da oficina do tipografo, atingindo a pessoa a quem se refere, tem como resultado afectá-la na honra, na reputação ou no decoro.

       A honra pode com os Romanos definir-se: illesae dignitatis status, moribus ac legibus comprobatus; e nas relações externas, honrado é o homem que aos olhos dos outros se apresenta justo e íntegro, fiel aos bons costumes e às leis, observador das três regras fundamentais da moralidade: honeste vivereneminem laederejus suum cuique tribuere.

       A reputação é a auréola de estima ou reverência que em torno do homem se forma pelos seus dotes de homem e de cidadão e em alguns casos de profissional, relativamente aos seus méritos e talentos.   

       Logo, a reputação tem significado mais extenso do que a honra: pois que, alguém pode ser ofendido na reputação, ou seja, na estima que goza, ou como homem publico, ou como profissional, sem que seja lesado na sua honra”.

       Luís Osório da Gama e Castro e Oliveira Batista, Notas ao Código Penal Português, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, 1924, volume III, ao abrir a anotação ao Capítulo V, relativo a Crimes contra a honra, difamação, calúnia e injúria, a págs. 305/6, afirmava: 

       “A honra ó o valor que tem uma pessoa em virtude das suas qualidades e do cumprimento dos seus deveres morais, sociais o legais. — Vid. M. Allfeld pág. 368; Erbermayer pág. 515 e Janka pág. 2l5.

       Mas isto é a honra em sentido intrínseco e esta não pode ser violada ou ofendida.

       Em sentido jurídico a honra deve consistir na opinião que os outros teem dêsse valor, pois que é essa opinião que pode ser modificada pelos delitos de injúria. — Vid. Liszt, pág. 349 e 2.º 61; M. Allfeld pág. 368.

       Em sentido subjetivo a honra é o conhecimento daquele valor e a vontade de o conservar. — Erbermayer pág. 517; M. Allfeld pág 368.

       Na noção de honra não se compreende portanto só o valor moral, mas também o valor social e por isso além da honra geral pode também haver uma honra social, determinada pela posição social do indivíduo. Daqui provém a justificação da honra de classe. — Vid. Liszt pág. 349 e 2.º 61; M. Allfeld pág. 368; Erbermayer pág. 517.

       A honra deriva não só das qualidades do indivíduo, mas do cumprimento dos seus deveres; àquela dá-se mais propriamente o nome de honra e a esta o de consideração.

       A honra refere-se propriamente á probidade, à retidão, à lealdade, ao caráter, ao passo que a consideração se refere ao património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido e que pode ser lesado sem ofender a honra. A honra é pois a essência da personalidade humana, ao passo que a consideração é o seu aspeto exterior e superficial, pois provêm do juízo em que somos tidos pelos nossos semelhantes — Rev. Leg. Jur. 41.º 360; Frola 1.° 138.

       A consideração entende-se especialmente da estima que cada um pode ter adquirido no estado que exerce, estima que é para ele uma propriedade preciosa e que a difamação poderia atacar sem ofender a sua honra: porque um homem honrado podo não ser difamado na sua honra, mas pode sê-lo nas outras qualidades morais que o fazem considerar na opinião pública como bom negociante, bom advogado, bom médico, etc. — Jordão 4.º 207.

       Estas incriminações protegem a honra no seu dúplice aspeto de sentimento da própria dignidade pessoal (honra subjetiva-dignitas) e de consideração social por parte da generalidade dos outros homens (honra objetiva, bom nome, estima, fama, reputação) e portanto ainda das possibilidades que derivam de uma boa reputação, de gozar de certas vantagens materiais (lado material da honra, confiança pessoal). — A. Rocco Og. del Reat. pág. 589.

       Mediante as incriminações dos deditos de difamação e do injúria a lei tutela o bem jurídico e complexivo da inviolabilidade da personalidade moral, quo se subdistingue nos bens da comum simpatia social, da honra, da reputação e do decôro. Quando se diz que a lei penal com as incriminações de que falamos tutela a honra das pessoas, afirma-se uma coisa duplamente inexata, quer porque a proteção penal não diz respeito só à honra, quer porque se atende ainda àqueles que não teem honra ainda em sentido moral. — Manzini 7.º 294.

       A honra, compreendendo o decôro e a reputação, como a liberdade, não é um direito subjetivo, mas um estado negativo (ausência de culpas morais, ou ainda simplesmente ausência da obrigação de se sujeitar a uma imoputação ou desqualificação), protegido pelo direito objetivo, que só pode dar lugar a direitos individuais quando venha positivamente desconhecido por qualquer pessoa. A lei penal tutela nos indivíduos o interesse concernente à honra, garantindo-o contra aquelas agressões que diminuem ou destruem a condição favorável relativa ao dito estado. (…)

       A dignidade é a qualidade absoluta da pessoa humana pela qual em todo o indivíduo é respeitada a própria natureza humana. A boa fama é o valor moral do indivíduo na consciência dos outros.

       A ofensa à honra não é uma violação daquele valor, mas uma manifestação de desistima dele que pode influir na opinião que os outros dele teem.

       A ofensa é a agressão sobre a honra de outrem mediante a exteriorização intencional e ilegal de menos prezo ou desprezo.

       A ofensa é a manifestação da vontade mediante a qual alguém exterioriza injustificadamente o menosprezo por outrem. 

       A propósito do termo genérico injúria, a págs. 308, afirma:

       “A injúria divide-se em difamação e injúria propriamente dita, conforme há ou não atribuição de um fato determinado, conforme se faz perante os outros uma apreciação depreciativa do valor moral do indivíduo, ou se apresenta um fato que determina nos outros esse julgamento depreciativo. (…)

       A difamação também se divide em calúnia e difamação propriamente dita, conforme são falsos, ou se não provam que o sejam, os fatos imputados”. 

       Ao comentar o artigo 407.º, na pág. 310, afirma: “Este artigo protege a honra e consideração de uma pessoa contra a imputação a alguém de fatos ofensivos da sua honra e consideração, assim como a reprodução da mesma imputação, desde que esses fatos sejam acompanhados de publicidade.

       Objecto da tutela penal é o interesse público relativo ao bem jurídico individual de incensurabilidade moral, enquanto a lei reconhece a todo o indivíduo o direito de não ser diminuído na avaliação ético-social da sua personalidade pela maledicência dos outros.

       Trata-se de um delito de perigo, não é necessária a efetivização de um dano, mas também esse dano não é excluído.

      Nem o direito Romano, nem a nossa antiga legislação consideraram especialmente o crime consistente em atribuir a alguém um determinado fato ofensivo da sua honra e consideração”, parecendo ter sido fonte deste artigo o artigo 13.º da lei Francesa de 17 de Maio de 1819.

      Ao comentar o artigo 410.º, na pág. 341, afirma: “Este artigo protege a honra e consideração de uma pessoa contra as injúrias que lhe são pùblicamente feitas sem imputação de um fato determinado.

      À face da nossa lei o interesse protegido por êste artigo é o mesmo interesse protegido pelo art. 407.º; a diferença entre os dois casos está apenas no conteúdo da ofensa. No caso do art. 407.º a ofensa faz-se por meio da imputação de um fato determinado; aqui por qualquer outro meio”.

      José Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 92.º (1959-1960), debruçou-se sobre o tema em Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria, n.º 3152, págs. 164 a 168, n.º 3153, págs. 180 a 185, n.º 3154, págs. 196 a 202 e n.º 3155, págs. 213 a 216.

       A págs. 164, versando os elementos constitutivos da difamação e injúria, diz que dentre eles são essenciais: a imputação a outrem de factos concretos e determinados, ofensivos da sua honra e consideração, como, por exemplo, dizer do ofendido que praticou certo desvio ou dissipação de dinheiro do Estado (difamação, art. 405.º). Ou então a afirmação genérica de que ele procede por forma reprovável (injúria, art. 410.º). É o que acontecerá, por exemplo se alguém diz de outrem que ele é um ladrão, um desavergonhado, um imoral.

       Há um elemento comum à difamação e à injúria: é que estas ofendem o sentimento da honra ou a reputação de outrem, isto é, as atingem ou podem atingir.

       A lei não exige como elemento do tipo criminal, em nenhum dos casos, um dano efectivo do sentimento de honra ou da consideração. Basta, para a existência do crime, o perigo de que aquele dano possa verificar-se. Trata-se indubitavelmente de crimes de perigo, isto é, daqueles em que para a consumação não é necessário que se produza concretamente um dano.

      A págs. 167 refere que “ (…) nem tudo aquilo que alguém considere ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria punível

      Há pessoas com um amor próprio tal, com uma estima tão grande pelo eu, atribuindo um valor de tal maneira excessivo àquilo que possa tocá-los e ainda ao que dizem ou pensam os outros, que se consideram ofendidos por palavras ou actos que, para a generalidade das pessoas, não constituiriam ofensa alguma. Neste caso, não deve considerar-se existente qualquer difamação ou injúria.

      Aquilo que razoavelmente se não deve considerar ofensivo da honra ou do bom nome alheio, aquilo que a generalidade das pessoas de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos, não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena”.

      “Em conclusão: não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”. 

      A págs. 167/8 sintetiza: As difamações e injúrias têm como objecto jurídico as duas ordens de interesses que se exprimem pelas palavras honra e consideração.

      A honra é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale.

       A consideração é aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público.

       A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente de um ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo”.

      Adriano de Cupis, Os Direitos da Personalidade, Colecção «Doutrina», Livraria Morais Editora, Lisboa, 1961, com tradução de Adriano Vera Jardim e António Miguel Caeiro, págs. 111/2, considera o direito à honra como primário, em ordem de importância, entre aqueles direitos da personalidade que têm por objecto um modo de ser exclusivamente moral da pessoa.

      A «honra» significa tanto o valor íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento, ou consciência, da própria dignidade pessoal. Quando entendida unicamente no primeiro sentido, a honra está subtraída às ofensas de outrém e é alheia, por consequência, à tutela jurídica; entendida no segundo e no terceiro significados, está, pelo contrário, exposta às referidas ofensas. A opinião pública é bastante sujeita à recepção das insinuações e aos ataques de toda a espécie, produzidos contra a honra pessoal; assim também o sentimento da própria dignidade é diminuído, ferido, pelos actos referidos. Por consequência, o ordenamento jurídico prepara a reacção adequada. Podemos, pois, dar, no campo jurídico, a seguinte definição de honra: a dignidade pessoal reflectida na consideração dos outros e no sentimento da própria pessoa.

       Ao referir-se aos crimes de injúria e de difamação previstos nos artigos 594.º (o qual pune aquele que ofende «a honra ou o decoro de uma pessoa presente») e 595.º (o qual pune aquele que ofende «a reputação de outrem», em presença de mais pessoas, mas na ausência do ofendido) do Código Penal Italiano, referia, a págs. 112: “A característica distintiva destas duas infracções é constituída respectivamente pela presença e pela ausência da pessoa ofendida: estando presente a pessoa, dá-se o crime de injúria (equipara-se à presença o ser o facto cometido por comunicação telegráfica ou telefónica, ou por escritos ou desenhos dirigidos à pessoa ofendida); no caso contrário, verifica-se o de difamação.

       Figueiredo Dias, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, (1982-1983), n.º 3697, págs. 100 a 106; n.º 3698, págs. 133 a 137, n.º 3699, págs. 170 a 173, em Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português, tece considerações sobre o tema das relações entre o direito de informação e a tutela da honra no moderno direito penal da imprensa português [O estudo procurou aprofundar ideia sugerida pelo Autor na comunicação que fez em Roma, em 25 de Novembro de 1978 ao «Convegno Giuridico Informazione-Diffamazione-Risarcimento»]. 

       Começa por afirmar: “De uma Constituição como a portuguesa tão centralmente preocupada com a defesa da «dignidade humana» (art. 2.º), não podia deixar de esperar-se igualmente uma tutela efectiva da honra das pessoas. Por isso declara o artigo 26.º que «a integridade moral (…) dos cidadãos é inviolável» e o artigo 31.º, n.º 1, que «a todos é reconhecido o direito à identidade pessoal, ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar»”.

       O Autor versa o conflito entre as figuras jurídico-constitucionais do «direito à honra» e do «direito de informação», direitos em princípio de igual hierarquia, um e outro direitos fundamentais das pessoas constitucionalmente reconhecidos e garantidos ao mesmo título.

       A págs. 105, pode ler-se: “O sistema de protecção jurídico-penal da honra das pessoas – subsidiário, em larga medida, do Code Penal napoleónico, mas tendo sofrido notória influência do Código Criminal do Império do Brasil de 1830 e do Código Penal Espanhol de 1848 (reformado em 1850), bem como da lei francesa de 1819 – radica basicamente, como é sabido, na incriminação geral da difamação e da injúria, distinguindo essencialmente os dois tipos por no primeiro estar em causa a imputação de um facto determinado ofensivo da honra e consideração, no segundo, diferentemente, a produção de uma ofensa que se não concretiza em facto algum determinado. Mas já, seguindo via diferente, Os Projectos da Parte Especial do nosso Código Penal, de 1966 e 1979, distinguem os dois tipos, essencialmente, consoante a imputação ofensiva seja feita perante o próprio atingido (injúria) ou perante terceiro (difamação).

       Adianta ainda: “Seja como for quanto a este ponto, aqui importa assinalar particularmente que a jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico «honra», que o faça contrastar com o conceito de «consideração», também constante do artigo 407.º do Código Penal, ou com os conceitos jurídico-constitucionais de «bom nome» e de «reputação». Nomeadamente, nunca teve entre nós aceitação a restrição da «honra» ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito quer puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra. Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas”.

       Leal Henriques - Simas Santos, O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, volume II, versando o artigo 164.º, a págs. 196, dizem (da mesma forma no Código Penal, 2.ª edição, Editora Rei dos Livros, 1996, Volume II, versando o artigo 180.º, págs. 317/8, e no Código Penal Anotado, da mesma Editora, 3.ª edição, 2000, 2.º volume, Parte especial, págs. 469/470): 

       “Doutrinariamente pode definir-se difamação como a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, por conseguinte, que sejam ofensivos da reputação do visado.

       Na linguagem da lei a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém.

       HONRA «é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter…».

       CONSIDERAÇÂO é «o património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provem do juízo em que somos tidos pelos outros» (M.º P.º - Coimbra).

      Por outras palavras pode dizer-se que honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui. Diz assim respeito ao património pessoal e interno de cada um – o próprio eu.

      A consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade cada cidadão – a opinião pública.

       Por isso afirmava Schopenhauer que a honra «objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito; subjectivamente … o nosso receio diante dessa opinião». (in Nélson Hungria, op. cit., Vol. VI, págs. 39 e 40).

      Os processos executivos do crime de difamação podem ser vários:

- imputação de um  facto ofensivo (ainda que meramente suspeito);

- formulação de um juízo de desvalor;

- reprodução de uma imputação ou de um juízo.

      Sendo da essência da difamação que a mesma seja levada a terceiros só se pode falar em lesão do bem jurídico da honra e consideração quando a imputação correspondente chegue ao seu conhecimento (repare-se que o artigo fala em «quem dirigindo-se a terceiros…»). [itálico de 1996].

      Assim, quem se dirigir a outrem, por carta fechada, e lhe imputar algum facto desonroso, comete o crime de injúrias e não o de difamação. 

       No que toca ao dolo específico, os Autores estão de acordo com o M.º P.º no Distrito Judicial do Porto, no sentido da inexigência. «Nestes crimes tem de se verificar o dolo em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual), mas já não é exigível que haja a especial intenção, o propósito de ofender, sendo bastante a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém».   

      Ao abordarem, na 2.ª edição, o artigo 181.º, a págs. 328, afirmam que “Este artigo é, no fundo, o art. 180.º, tendo a particularidade de se exigir aqui qua a conduta seja endereçada ao próprio ofendido e na sua presença e de (segundo o n.º 2) se mandar aplicar as regras dos n.º 2, 3 e 4 do normativo anterior apenas quando se tratar de imputação de factos.

       Injúria «é a manifestação por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém», dirigida ao próprio visado. «O bem jurídico lesado pela injúria é, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, isto é, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal (Nelson Hungria, op. cit., VI, 90 e 91).

      No crime em análise não se protege, pois, a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas.

      Uma das características da injúria é a sua relatividade, o que quer dizer que o carácter injurioso de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.

       Daí que só em cada caso concreto se possa afirmar se há ou não comportamento delituoso. 

       A injúria não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez, ou mesmo com a grosseria, que são comportamentos que apenas podem traduzir falta de educação.

       A injúria é mais do que isso, e quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração. (Exactamente do mesmo modo na 3.ª edição de 2000, a págs. 494/5, com a única diferença de bold na injúria nesta edição).

       Augusto Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, estudo monográfico inserto em Materiais para o estudo da parte especial do Direito Penal, A.A.F.D.L., 1989, parte da apresentação de um caso hipotético de abuso de liberdade de imprensa em artigo de jornalista de um jornal diário contra um ministro.

      Referindo-se ao direito ao bom nome e reputação previsto no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, a págs. 18, afirma que o bem jurídico constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundidos numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é, ao fim ao acabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade.

      A págs. 22, afirma: “Traduzindo-se o bem jurídico honra na pretensão ao reconhecimento da dignidade moral da pessoa por parte dos outros (e não reconhecimento real ou merecido de que uma pessoa goza, ou deve gozar) verifica-se a sua lesão na forma de difamação quando alguém, por exemplo, reproduz uma afirmação de facto alheia cujo conteúdo é entendido pelos destinatários e se apresenta como objectivamente adequado para dirimir ou depreciar socialmente a vítima”.

      A págs. 22/23, o Autor adopta a concepção valorativa que permite configurar os crimes contra a honra como crimes de lesão e não apenas de perigo, como ocorre com as concepções fácticas (como defende Beleza dos Santos).

       “A comprovação da lesão assim entendida não se basta com a aptidão da expressão proferida para lesar o bem jurídico: a frase «ofensivo da honra ou consideração», usada na descrição típica dos crimes de difamação e de injúrias, não significa apenas e principalmente – ao contrário do que sustentava Beleza dos Santos – que a expressão tem de ser adequada ou susceptível de ofender, mas que tem de ofender, de prejudicar a honra de outrem. (…) A compreensão do destinatário funciona, em nossa opinião, como momento da consumação típica dos crimes de difamação e de injúrias”. 

      A págs. 35/6 referia ser pacífico na jurisprudência e na doutrina portuguesas que o «animus difamandi» não integra o tipo subjectivo do crime de difamação, sendo suficiente para a sua realização que o autor saiba que está a atribuir um facto (ou a formular um juízo de valor) cujo significado ofensivo do bom nome ou consideração alheia ele conhece, e o queira fazer. E isto em qualquer das modalidades previstas no art. 14.º do CP.

      Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, ao abordar o conceito de honra, a págs. 301, afirma: “Entre os bens mais preciosos da personalidade moral tutelada no art. 70.º CC figura também a honra, enquanto projecção na consciência social do conjunto dos valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes da sua mera pertença ao género humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço pessoal”.

       A págs. 303 afirma: A honra juscivilisticamente tutelada abrange desde logo a projecção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela Natureza igualmente a todos os seres humanos, insusceptível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância e atributiva a todo o homem, para além de expressões essenciais, de uma honorabilidade média em todos os outros domínios, a não ser que os seus actos demonstrem o contrário. A honra, em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade de cada indivíduo e pelos demais valores pessoais adquiridos pelo indivíduo no plano moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político. Engloba ainda o simples decoro, como projecção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social. E envolve, finalmente, o crédito pessoal, como projecção social das aptidões e capacidades económicas desenvolvidas por cada homem.

       Estes bens são tutelados juscivilisticamente impondo às demais pessoas, não fundamentalmente específicos deveres de acção, mas um dever geral de respeito e de abstenção de ofensas, ou mesmo de ameaças de ofensas, à honra alheia, sob cominação das sanções previstas nos arts. 70.º, n.º 2 e 483.º do Código Civil. Assim, a tutela civil da honra não se limita às áreas específicas da honra cuja ofensa é mais gritante, como acontece no direito penal, antes abrange a globalidade desse bem. Por outro lado, a protecção juscivilística da honra não se restringe, como no direito penal, ao sancionamento de condutas dolosas mas também alcança a defesa face a condutas meramente negligentes.

    Para Maria Paula Andrade, Da ofensa do crédito e do bom nome, Tempus, 1996, pág. 97, o direito à honra, enquanto bem fundamental da personalidade, traduz-se “numa pretensão ou direito do indivíduo a não ser vilipendiado no seu valor aos olhos da sociedade”.

 José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, 1.ª edição, Coimbra Editora, Janeiro de 1999, §§ 3 e 4, págs. 602/3 (e §§ 3 e 4, págs. 905/6, na 2.ª edição de Maio de 2012), ao abordar o bem jurídico honra refere que as distinções e definições do mesmo podem ser agrupadas em duas concepções básicas: a concepção fáctica e a concepção normativa.

      Na primeira, há a distinguir a honra subjectiva ou interior, consistente no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma e a honra objectiva ou exterior, equivalente à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente.

      Na segunda, é possível distinguir entre o conceito normativo-social de honra, segundo o qual a honra nasce da consideração do conjunto de relações interpessoais, representando para Costa Andrade “a merecida ou fundada pretensão de respeito da pessoa no contexto das relações de comunicação e interacção social em que é chamada a viver” e o conceito normativo-pessoal de honra, tomando como decisivo na delimitação de honra uma dimensão pessoal. A honra é um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radicada na sua inviolável dignidade - §§ 8, 9, 10 e 11, págs. 605/6 (e §§ 8, 9, 10 e 11, págs. 908/9, na 2.ª edição de Maio de 2012).

       Versando o artigo 181.º, a págs. 933, afirma que o bem jurídico protegido na injúria – isto é, a honra nas suas múltiplas refracções – é exactamente o mesmo que encontrámos para a difamação.

      Para Pedro Pais de Vasconcelos, Direito de Personalidade, Almedina, Novembro de 2006, pág. 76, “O direito à honra é uma das mais importantes concretizações da tutela e do direito da personalidade. A honra é um preciosíssimo bem da personalidade. A honra é a dignidade pessoal pertencente à pessoa enquanto tal, e reconhecida na comunidade em que se insere e em que coabita e convive com as outras pessoas.

      A honra existe numa vertente pessoal, subjectiva, e noutra vertente social, objectiva. Na primeira, traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa tem por si própria; na segunda traduz-se no respeito e consideração que cada pessoa merece ou de que goza na comunidade a que pertence. A perda ou lesão da honra – a desonra – resulta, ao nível pessoal, subjectivo, na perda do respeito e consideração que a pessoa tem por si própria, e ao nível social, objectivo, pela perda do respeito e consideração que a comunidade tem pela pessoa. A lesão da honra pode não ser total – só em casos excepcionais o será – e limitar-se a um seu detrimento. A honra, neste caso, é lesada, mas não perdida. O respeito e consideração que a pessoa tem por si própria ou de que goza na comunidade, são então apenas diminuídos, agravados, feridos, mas não perdidos”.

  Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 483, comentando o artigo 180.º, afirmam: 

 4. Distingue-se entre difamação e injúria (artigo 181.º) com base na «imputação [directa ou indirecta] de um facto, mesmo sob a forma de suspeita» ou na «formulação [directa ou indirecta] de um juízo», este e aquela «ofensivos da honra ou consideração», ou ainda na mera «reprodução [directa ou indirecta] de tal imputação ou juízo». Se o agente se dirige a terceiroimputação, juízo ou reprodução em via indirecta e ocorre difamação. Se, ao invés, o agente se dirige ao sujeito passivo, por «imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita» ou por «palavras» (que podem traduzir-se em juízo ou reprodução), estas e aqueles «ofensivos da honra ou consideração», age em via directa e temos injúria. Em nenhum destes casos, de resto, a lei exige aquilo que se costuma designar por dolo específico, isto é, animus diffamandi.

       Na nota 2, ao comentarem o artigo 181.º, pág. 485, afirmam: a injúria «concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido. Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente aqueloutra [a difamação] que se realiza em uma relação triangular» (Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, 629).

       M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial, Almedina, 2014, pág. 742, e a págs. 785/6 da 2.ª edição, 2015, afirmam:

       Nos arts. 180.º e 181.º, objecto específico da tutela penal é o bem jurídico pessoalíssimo e imaterial da honra e consideração.

       A ideia da honra é complexa e “esta complexidade espelha-se na forma como o conteúdo e os limites do bem jurídico que é a honra têm sido analisados, sobretudo a partir de um conceito dualístico, fáctico/normativo. Protege-se a chamada honra externa: o bom nome e a reputação que uma pessoa goza no seio da comunidade; mas também a honra subjectiva ou interior: a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (também Costa Andrade, 1996, p. 86; Pinto de Albuquerque, 2010, p. 568; Karl Lackner, 1993, p. 924).

       No ponto 3, pág. 744 (pág. 787 na 2.ª edição), referem os Autores: “Os crimes contra a honra são reconhecidamente crimes de expressão. Exigem, como resultado, palavras e ações significativas no código da honra.

       E no ponto 4 (págs. 744 e 788): “Antes de decidir se os critérios valorativos da imputação direta ou indireta dos factos ou juízos justificam a sua qualificação como desonrosos (injuriosos ou difamatórios) é inevitável passar pela compreensão do sentido exacto da palavra no contexto linguístico e social em que foi proferida”.

       Ao abordarem o crime de injúria, os Autores no ponto 7 (pág. 763 na 1.ª edição e págs. 806/7, na 2.ª), afirmam: “No tipo legal, relevam, sobretudo, as palavras ofensivas da honra e consideração. Importa, sobretudo, o contexto situacional. (…) O contexto individualiza o sentido, “escolhendo na generalidade das noções aquela nota particular que melhor se acomoda ao particular objecto ou fenómeno envolvido na situação concreta, contribuindo ainda mais para a precisão do sentido”.  

       E na pág. 750 (794), ponto 9: O crime é doloso. Em relação ao conteúdo desonroso da afirmação exige-se, pelo menos, o dolo eventual. Não há um animus específico da difamação.

       Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, ao comentar o artigo 180.º, a págs. 495/6, na edição de Dezembro de 2008, págs. 568/9, na 2.ª edição actualizada de Outubro de 2010, e na 3.ª edição, Novembro de 2015, pág. 723, afirma:

       “O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla conceção fáctico-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade (a honra externa, aussere Ehre), mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social (a honra interna, innere Ehre).

       O crime de difamação é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da ação).

       O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é “dirigida”a terceiro, ao invés da injúria”. A injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido.

       O facto desonroso ou ofensivo da honra é o acontecimento da vida real cuja revelação atinge a honra do seu protagonista. O facto pode ser do foro interno ou íntimo, uma valoração ou uma decisão, como sucede por exemplo na valoração propositadamente errada da prova por um juiz ou no julgamento com manifesta intenção de fazer improceder a acção (acórdão do TEHD Falter Zeitschriffen GMBH v. Áustria (n.º 2), de 18.9.2012, § 44, e os casos do acórdão do TRP, de 13.4.2100, processo 707/08.4TAMAI.P1, acórdão do TRG, de 28.2.2011, in CJ, XXXVI, 1, 317 e acórdão do TRL de 5.2.2103, in CJ, XXXVIII; 1, 129)

       No ponto 8, pág. 724 (pág. 569 na edição de 2010 – pág. 496 em 2008), consta: O tipo subjectivo admite qualquer modalidade do dolo (acórdão do TC n.º 113/97, referindo-se ao dolo eventual).

       Não se exige um animus diffamandi vel injuriandi.

       Comentando o artigo 181.º, o Autor a págs. 500, na edição de Dezembro de 2008, a págs. 575 na 2.ª edição de 2010, e na 3.ª edição, Novembro de 2015, na pág. 731, afirma:

       “O bem jurídico protegido pela incriminação é a honra, numa dupla concepção fáctica-normativa, que inclui não apenas a reputação e o bom nome de que a pessoa goza na comunidade, mas também a dignidade inerente a qualquer pessoa, independentemente do seu estatuto social.

       O tipo objectivo do crime de injúria é composto pelas mesmas condutas do crime de difamação, com uma particularidade: as condutas devem ser “dirigidas” directamente ao ofendido”.  

       1982 – A mudança de paradigma; a profunda divergência

       A difamação como ofensa à honra cometida em via indirecta

 

       A partir de 1982 o crime de difamação é praticado quando alguém, dirigindo-se a terceiros, imputa a outra pessoa, mesmo que sob a forma de suspeita, um facto, ou formula sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduz tal imputação ou juízo.

       Como se viu acima, na resposta dada em 1908 pela Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 41.º, a consulta de assinante, reportando-se ao artigo 407.º do Código Penal de 1886, então em vigor, realçava-se o facto de se ter seguido então o critério de distinção geralmente seguido pelas ao tempo modernas legislações (facto imputado ser determinado na difamação e indeterminado na injúria).

       Abandonado fora o critério de as palavras ofensivas terem sido pronunciadas na presença ou na ausência do ofendido: no primeiro caso haveria injúria; no segundo, difamação.

       Donde decorre que poderia integrar um crime de difamação uma imputação dirigida directamente ao ofendido, feita na sua presença.

       Algo impossível a partir de 1 de Janeiro de 1983, data da entrada em vigor do Código Penal de 1982.

       Tomemos como exemplo o acórdão da Relação de Coimbra de 27 de Julho de 1977, Colectânea de Jurisprudência, Ano II, tomo 4, pág. 821.

       Ao tempo fazia sentido dizer o seguinte:

       “No crime de difamação imputa-se a alguém um facto certo e determinado: no de injúrias faz-se apenas uma imputação genérica.

       Integra difamação o dizer-se para a ofendida, frente a uma casa que construía, que esta tinha uma casa nova, mas era à custa de andar debaixo de uns homens e outros”.

       (Sublinhado nosso).

       A partir de 1 de Janeiro de 1983, o arguido para cometer difamação não verbalizaria a imputação directamente para a ofendida, teria de fazer uso de uma caixa de ressonância, com a utilização/interposição de um terceiro, que se encarregaria de “levar a carta a Garcia”. 

       Apreciando a nova narrativa do legislador, pronunciaram-se, na doutrina:

       Como referimos supra, justificando-se a repetição, para enfocar o ponto ora em análise, Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 1984, 2.ª edição, págs. 261/2 e na 6.ª edição, 1992, págs. 423/4, (do mesmo modo na anotação 3 na 8.ª edição, 1995, já face ao artigo 180.º, a págs. 656, bem como na 10.ª edição, de 1996, pág. 579, na 12.ª edição, 1998, pág. 573, e na 18.ª edição de 2007, na pág. 666), afirma:

       “Há profundas divergências entre este artigo e o seguinte, relativo ao crime de injúrias, e os correspondentes artigos do código anterior (407.º e segs.). Assim, enquanto, por um lado, o código anterior fazia assentar a distinção entre difamação e injúrias no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, seguiu-se agora como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiros e sem a presença do ofendido, ou perante o ofendido. (…)”. (Sublinhados nossos).

       Leal Henriques - Simas Santos, O Código Penal de 1982, Rei dos Livros, 1986, volume II, versando o artigo 164.º, a págs. 196, e o artigo 180.º, no Código Penal, 2.ª edição, Editora Rei dos Livros, 1996, Volume II, pág. 317, e no Código Penal Anotado, 3.ª edição, 2000, 2.º Volume, Parte Especial, pág. 470, afirmam:

       “Sendo da essência da difamação que a mesma seja levada a terceiros só se pode falar em lesão do bem jurídico da honra e consideração quando a imputação correspondente chegue ao seu conhecimento (repare-se que o artigo fala em «quem dirigindo-se a terceiros…») – imputação indirecta. [Aditamento final da edição de 2000].

       Assim, quem se dirigir a outrem, por carta fechada, e lhe imputar algum facto desonroso, comete o crime de injúrias e não o de difamação.

       Victor Sá Pereira, Código Penal, Livros Horizonte, Colecção Horizonte Jurídico, Série B, 5, 1988, pág. 217, antes de referir no ponto 10, que “Está em causa a chamada honra subjectiva”, que na aliciante expressão de Nélson Hungria, corresponde ao «sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal», afirmava no ponto 2: “ A distinção entre difamação e injúria não reside mais em haver ou não imputação de factos determinados. É costume acentuar-se, a propósito, que a diferença está em se produzir imputação, juízo ou reprodução perante terceiros ou perante o ofendido. Mas o dado decisivo é, de rigor, a presença do ofendido. Com esta, haverá injúria, na sua falta, será caso de difamação. O ofendido presente nunca deixa de ser destinatário. A difamação, em qualquer das respectivas modalidades, acontece sempre à rev... do difamado (artigo 165.º). (Sublinhados nossos).

       No ponto 5, na mesma pág. 217, afirmava. “Não constitui difamação nem injúria aquilo que a generalidade das pessoas de certo país, no ambiente em que se passaram os factos, não considera difamatório ou injurioso (Colectânea de Jurisprudência, ano IX, tomo 3.º, pág. 80). E na sequência aditava. “É um entendimento que se aceita apenas como critério de orientação ou ponto de partida”.

       No ponto 6, referia o Assento de 24 de Fevereiro de 1960, que prescreveu a possibilidade de as pessoas colectivas serem ofendidas de crimes de difamação e injúria, assumindo posição que se afastava de uma posição restritiva sobre o tema de modo a afastar a solução, relembrando a posição de ... de Andrade, segundo a qual “Podem ser titulares de direitos de personalidade como sejam o direito ao nome (firma, quanto às sociedades) ou a distinções honoríficas ou até, o direito ao bom nome (honra) RLJ Ano 83.º, pág. 226, critério não aceite por Nelson Hungria que não deixou de referir que a chamada pessoa jurídica, como pura ficção, é estranha ao direito penal”. [A questão viria a ser resolvida legislativamente, na reforma de 1995, com o artigo 187.º do Código Penal, a prever e punir “Ofensa a pessoa colectiva, organismo ou serviço” e após a reforma de 2007 “Ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva]. 

       Na pág. 218, ao abordar o crime de injúrias, então previsto no artigo 165.º do Código Penal, no ponto 2, pode ler-se:

       “2. Devem considerar-se as notas produzidas sobre o artigo 164.º. A imputação de factos é agora feita na presença do ofendido, dirigindo-se-lhe, por isso, haja ou não terceiros presentes. Não se referem, de modo expresso, a formulação de juízo e a reprodução de imputação ou juízo; mas crê-se que as mesmas têm a disciplina da imputação, por disporem ou quando dispuserem de idêntica carga ofensiva da honra ou consideração. A injúria por palavras, sem imputação ou juízo, não tem paralelo formal na difamação; mas terá igualmente de se dirigir ao ofendido. Aliás, a injúria por palavras pode ainda exprimir imputação ou juízo e na mesma são inseríveis, também, as citadas formulação e reprodução, se não couberem na imputação”.

       Augusto Silva Dias, Alguns aspectos do regime jurídico dos crimes de difamação e de injúrias, A.A.F.D.L., 1989, a págs. 31/32, refere a substancial alteração no Código Penal de 1982. Ao arrepio da nossa tradição legislativa, o legislador de 1982 seguiu o modelo consagrado no Código Penal italiano, que distingue entre difamação e injúria, não de acordo com a natureza das expressões mas, basicamente, segundo a sua diferente implicação com os destinatários; enquanto a difamação se dirige a terceiros, a injúria é cometida na presença do ofendido.

      A págs. 32/33, o Autor figura um exemplo de um debate televisivo em que um dos participantes, A, insulta um adversário político, B, sabendo que este está a assistir ao programa; suponha-se, ao invés, que B está presente no referido debate. No primeiro caso considera estar-se perante uma difamação perpetrada através de um meio de comunicação social; o autor dirige-se ao grande público e o facto de nele se encontrar o ofendido é irrelevante, pois qualquer atitude de réplica ou defesa da sua parte é inconcretizável imediatamente. No segundo caso considera estar-se face a um crime de injúrias cometido pelo mesmo meio; as expressões ofensivas da honra dirigem-se ao ofendido e contam com a sua presença activa, isto é, com a possibilidade da sua réplica imediata, embora sejam ouvidas por alguns milhões de pessoas.

       E a págs. 34 conclui: “Decisiva para a qualificação como injúria ou difamação é a comprovação de se a a presença do ofendido é uma presença activa, susceptível de neutralizar o efeito lesivo da ofensa, ou se é, pelo contrário, uma presença passiva ou uma mera ausência que impossibilita uma resposta directa e, por isso, torna mais fácil a difusão da ofensa. Neste ponto reside, quanto a nós, a diferença de ilicitude entre as duas figuras bem patente na disparidade de molduras penais”.

      Aludindo a estas passagens, Faria Costa no Comentário Conimbricense, 2.ª edição, 2012, págs. 935/6, referindo-se a este critério de “presença activa” para definir o carácter directo da imputação, considera que tal ideia será normativamente eficaz para muitos casos, mas claudica em alguns casos. Daí continuar a julgar que a presença, rectius, a imputação directa, que não tem que ser obviamente determinada pelo mesmo espaço físico – exemplo de por meio de uma vídeo-conferência ou uma transmissão directa de televisão C, em Lisboa, insulta D que estava no Porto – ou a imputação por meio de terceiros deve constituir o critério nuclear e inultrapassável para se distinguir a difamação da injúria.

       Sobre o requisito da “presença activa” do sujeito atingido pelas expressões ofensivas da honra, pronunciam-se ainda M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial, Almedina, 2014, ponto 5, págs. 761/2, e ponto 5, a págs. 805/6 da 2.ª edição, 2015.

       Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, Quid Juris, 2008, pág. 483, comentando o artigo 180.º, afirmam: 

      4. Distingue-se entre difamação e injúria (artigo 181.º) com base na «imputação [directa ou indirecta] de um facto, mesmo sob a forma de suspeita» ou na «formulação [directa ou indirecta] de um juízo», este e aquela «ofensivos da honra ou consideração», ou ainda na mera «reprodução [directa ou indirecta] de tal imputação ou juízo». Se o agente se dirige a terceiroimputação, juízo ou reprodução em via indirecta e ocorre difamação. Se, ao invés, o agente se dirige ao sujeito passivo, por «imputação de factos, mesmo sob a forma de suspeita» ou por «palavras» (que podem traduzir-se em juízo ou reprodução), estas e aqueles «ofensivos da honra ou consideração», age em via directa e temos injúria. Em nenhum destes casos, de resto, a lei exige aquilo que se costuma designar por dolo específico, isto é, animus diffamandi.

       Na nota 2, ao comentarem o artigo 181.º, pág. 485, afirmam: a injúria «concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, à pessoa do ofendido. Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente aqueloutra [a difamação] que se realiza em uma relação triangular» (Faria Costa, Comentário Conimbricense, I, 629). (Sublinhados nossos).

       José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte especial, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, Janeiro de 1999, § 16, pág. 608, ao abordar o tipo objectivo de ilícito afirma: “Para estabelecer a diferenciação essencial, dentro das infracções contra a honra – distinção entre difamação e injúria –, o legislador empregou uma técnica legislativa baseada na imputação directa ou indirecta dos factos ou juízos desonrosos. Forma de perceber o fenómeno da violação do bem jurídico da honra que, manifestamente, apresenta uma lógica material interna e que, por isso, se reflecte na definição das molduras penais abstractas de uma e de outra daquelas infracções. Digamo-lo em termos muito simples: uma coisa é a violação da honra perpetrada de maneira directa (na forma mais simples e comum: isto é, perante a vítima) outra será levar a cabo aquela mesma ofensa fazendo intervir uma terceira pessoa, operando uma tergiversação, instrumentalizando um terceiro para conseguir os seus intentos. Utilizando uma linguagem de sabor geométrico diremos que a difamação pressupõe uma relação tipicamente triangular enquanto a injúria se basta por uma conexão bipolar”.

       Este texto é repetido na edição de Maio 2012, no § 19, a págs. 911/2, aditando-se apenas no final: “(cfr. Acórdão do STJ de 18 de Janeiro de 2006, Proc. 05P4221)”.

        [Nota - Este acórdão está publicado na CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 166]. 

       Prossegue o Autor no § 17, pág. 608: “Nesta óptica, fácil é de entender que o ponto nevrálgico da difamação se centra, como de imediato ressalta mesmo com a mais desatenta das leituras do tipo, na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros.”

       Este texto é repetido no § 20, pág. 912, da edição de 2012, com o aditamento: “possibilitando, deste modo, a desconsideração externa (S / S Lenckner, § 186, 1)”.

       Após afirmar que o crime matricial deveria ser a injúria e não a difamação, procurando obter resposta para esta sistemática, diz que a resposta se encontra na opção de fundo do legislador, traduzível na consideração de que os actos ofensivos da honra de outrem ganham uma maior densidade – constituindo-se assim em matriz – se praticados de jeito enviesado, se praticados de forma indirecta ou mediata. (§ 17, pág. 608, da 1.ª edição e § 20, pág. 912, da 2.ª edição).

       Abordando os elementos do tipo no § 18, pág. 609 (e § 21, pág. 913, na 2.ª edição), afirma: “De jeito sintético poder-se-á afirmar que esses elementos se estruturam em dois grandes segmentos: um, o segmento da ofensa propriamente dita, que pode ser concretizado, por quem quer que seja – logo inexistência de qualquer limitação no que se refere ao universo dos candidatos positivos a sujeito activo –, através da a) imputação de facto ofensivo da honra de outrem, b) por meio de formulação de um juízo de igual modo lesivo da honra de uma pessoa ou ainda c) pela reprodução daquela imputação ou juízo; o outro segmento, o segmento do rodeio, ou do enviesamento, exige que as condutas anteriormente descritas se não façam directamente ao ofendido mas se levem a cabo dirigindo-se a terceiros. (Sublinhado nosso).

      Mais à frente comentando o artigo 181.º, no § 1, a págs. 933 da 2.ª edição, reafirma em jeito de reforço argumentativo, que a injúria concretiza-se em um ataque directo, sem a intromissão de terceiros, ao ofendido.

       Estrutura-se, por conseguinte, em uma relação de existência comunicacional bipolar, contrariamente àqueloutra [difamação] que se realiza em uma relação triangular.

       A págs. 935/6, no § 7 (2.ª edição), afirma “a imputação por meio de terceiros deve constituir o critério nuclear e inultrapassável para se distinguir a difamação da injúria”.

       M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, Código Penal - Parte geral e especial, Almedina, 2014, ponto 6, pág. 745, e a págs. 788/9 da 2.ª edição, 2015, afirmam: “Dentro das infrações contra a honra encontramos dois tipos fundamentais, o art. 180.º (difamação), uma forma de violação do bem jurídico indirecta: o autor dirige-se a terceiro, imputando a outra pessoa factos ou juízos desonrosos; e o art. 181.º (injúria), uma forma directa da violação do bem jurídico, quase sempre perante a vítima, imputando-lhe factos ou dirigindo-lhe palavras ofensivas”. (Sublinhados nossos). 

       Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição actualizada, Novembro de 2015, nota 1, págs. 722/3 (pág. 495, na edição de Dezembro de 2008 e pág. 568, na 2.ª edição actualizada de Outubro de 2010), ao referir as fontes do artigo 180.º (antes 164.º), no que respeita à imputação de factos e formulação de juízos de valor diante de terceiros, afirma: “O legislador pretendeu romper com a tradição nacional. Com efeito, a nova formulação dos tipos da difamação e da injúria no CP de 1982 apresenta “profundas divergências”em relação aos tipos dos artigos 407.º e 410.º do CP de 1886, de que se destacam duas: “Por um lado, enquanto o Código Penal (de 1886) faz assentar a distinção entre difamação e injúria no facto de a imputação ser ou não de factos concretos e determinados, o Anteprojecto segue como critério de distinção o facto de as imputações serem feitas perante terceiro e sem a presença do ofendido ou perante o ofendido. Por outro lado, enquanto o Código Penal (de 1886) não admite, como princípio geral, a prova das imputações feitas (artigo 408.º), o Anteprojecto parte do princípio oposto ainda que admitindo algumas excepções” (ACTAS CP/EDUARDO CORREIA, 1979: 94).

       E no ponto 4, pág. 723 (pág. 496, na edição de 2008, e pág. 569, da 2.ª edição de 2010), afirma:

       “4. O tipo objectivo inclui a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é “dirigida”a terceiro, ao invés da injúria”. A injúria é dirigida exclusivamente ao ofendido”.

       No comentário ao artigo 181.º, respeitante a imputação de factos diante do visado, pág. 731 da edição de 2015, no ponto 4., após referir que «o tipo objectivo do crime de injúria é composto pelas mesmas condutas do crime de difamação, com uma particularidade: as condutas devem ser “dirigidas” diretamente ao ofendido», adianta: «Não se exige que o ofendido se encontre no mesmo espaço físico, nem que a receção da comunicação tenha lugar no mesmo momento em que a comunicação. É suficiente que o ofendido presencie a conduta do agente, mesmo que noutro espaço físico (por exemplo, através de vídeo conferência) ou em momento deferido no tempo em relação á comunicação (por exemplo, através de mensagem gravada no seu telemóvel)».   

       Assim também, com anterior ortografia, a págs. 500, da edição de 2008 e a págs. 575/6, da 2.ª edição actualizada de Outubro de 2010.

      Neste contexto.

       Extrai-se do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Junho de 2009, proferido no processo n.º 617/09 da 5.ª Secção, publicado na CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 242: “O crime de difamação, tendo como objecto o mesmo bem jurídico do crime de injúria – a honra e consideração – distingue-se desta por a imputação de factos ou utilização de expressões ser feita por intermediação de um terceiro, com quem o agente comunica por qualquer forma verbal ou escrita, imputando ao ofendido ausente factos ou formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, ao passo que, na injúria a imputação ou juízo ofensivos são dirigidos directamente ao titular desse bem jurídico (arts. 180.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, do CP)”.

       Explicita: “Essa razão tem levado vários autores a afirmar que, na difamação, se ataca a honra do visado sobretudo no seu aspecto de consideração social (honra em sentido objectivo), pois que interfere nas relações intersubjectivas, e na injúria , se atinge primacialmente a honra no que ela tem de sentimento para o ofendido da sua própria honorabilidade e respeitabilidade pessoal (Assim, Nelson Hungria, “Comentários ao Código Penal”, Rio de Janeiro 1956, Vol. 6.º, 3.ª edição, pág. 85; Borciani, “As ofensas à honra”, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1950, pág. 16; e Alfreddo Piromallo, “Ingiuria e Diffamazione”, Unione Tipográfico-editrice Torinese, pág. 170).      

       O elemento material do referido crime consiste, pois, na ofensa à honra e consideração de uma pessoa materialmente presente ou por meio de comunicação com ela através de telefone, telefax, escritos, desenhos ou outro qualquer meio semelhante, desde que dirigido à própria pessoa. É o chamado tipo objectivo do ilícito”.

 

       Revertendo ao caso concreto.

      Como ponto prévio importa sublinhar que nas conclusões de recurso apresentadas, o arguido não impugnou a matéria de facto que foi considerada indiciada pela decisão instrutória e pela qual foi pronunciado, nem tão-pouco rebateu/colocou em causa os meios probatórios constantes do processo e/ou a leitura articulada realizada dos mesmos, centrando-se a discordância puramente no campo do Direito.

 Considera o recorrente que a sua conduta se encontra (indiciariamente, diremos nós, se bem que o recorrente não aflora tal questão) justificada ao abrigo quer do artigo 31.º, alíneas b) e c), do Código penal, quer ao abrigo do n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal.

      A causa de justificação prevista no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal é específica do crime de difamação pelo que, como refere Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, tomo I, págs. 614 e segs. “(…) salta de imediato, mesmo ao mais dos inadvertidos dos intérpretes, que a criação de uma específica e particular causa de exclusão do ilícito neste campo normativo da incriminação se tem de compaginar e entrecruzar com a regulamentação que a um tal propósito se consagra na parte geral. E se isto já seria evidente perante uma cuidada interpretação do todo normativo que constitui a nossa presente preocupação, mais impressivo ainda se torna já que é o próprio legislador que expressamente (n.º 3) convoca as normas previstas nas als. b), c) e d) do n.º 2 do art. 31.º. Logo, o jogo complexo das determinações que se devam encontrar na descoberta dos correctos limites da aplicação desta precisa causa de exclusão do ilícito tem de operar-se dentro de um horizonte normativo no qual não pode faltar a densidade das opções doutrinárias que nos vinculam à nossa compreensão das causas de justificação.”.

       No que diz respeito especificamente ao funcionamento do n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal, como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 18 de Maio de 2016, processo n.º 202/13.0TRPRT.S1 – 3.ª Secção, nos termos do n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal, a conduta não é punível quando:

       “a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.” Essa não punibilidade “não se aplica quando se tratar da imputação de facto relativo à intimidade da vida privada e familiar” mas, ainda aqui, “sem prejuízo do disposto nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artº 31º.

            (…)

       A doutrina tende abstractamente a distinguir entre a justificação dos atentados contra a honra e perpetrados, respectivamente, sob a forma de juízo de valor ou de imputação de factos.

   “Os juízos de valor ofensivos da honra podem buscar a justificação na derimente geral do Exercício de um direito, concretização dogmático-normativa da ponderação de interesses como princípio comum de justificação. Diferentemente, as imputações de factos terão preferencialmente de encontrar a justificação numa dirimente específica e típica – a Prossecução de interesses legítimos – em que, a par da ponderação de interesses, avulta também o princípio do risco permitido.” (idem, ibidem, p. 274).

       Sendo certo que, com frequência os juízos de factos aparecem entremeados (associados ou misturados) com juízos de valor.

       Releva então a questão de saber de que forma o exercício do direito, ao traduzir a liberdade de expressão, pode ou não dirimir a ilicitude penal de um juízo de valor ofensivo da honra.

       Surge o binómio de confronto dialéctico da honra e da liberdade de expressão, ambos com dignidade constitucional.

  Tudo terá de decidir-se “no contexto de uma ponderação de interesses mediatizada pelo círculo hermenêutico centrado sobre as singularidades do caso concreto.”

       Os limites de justificação do exercício de um direito estarão na barreira instransponível da pura crítica caluniosa, que a juridicidade alemã apelida de Scmähkritik.

       Como refere Costa Andrade, (ibidem, p. 292 e 293): “A garantia da liberdade de expressão e de imprensa permite, de acordo com as circunstâncias, também uma crítica contundente, impiedosa, mesmo ‘chocante’, desde que tenha ainda uma referência objectiva (sachs bezogen). Mas já não cobre nenhuma Scmähkritik, isto é, uma crítica que passa a ser um (mero) ataque doloso à honra.”

   Por outro lado, na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, “É de considerar como Shmähung a expressão de uma opinião que, para além da crítica polémica e exagerada, consiste na degradação da pessoa.”(…) O facto de poder ter efeitos degradantes para terceiros não faz da expressão de uma opinião, só por si, uma Scmähung. Uma expressão degradante só assume o carácter de Schmähung quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento da pessoa.”

 Resumidamente: segundo a jurisprudência desse Tribunal Constitucional só poderá falar-se de Shmähung quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa, atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social.”(idem, ibidem, p. 293 e 294)

Admite-se ainda a justificação nos termos e segundo as exigências do Direito de necessidade, conforme artº 34ºdo CP:

       A falta de comprovação cuidadosa dos pressupostos do direito de necessidade integra o erro se, no ensinamento de Figueiredo Dias, - O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal - constituir “uma falta do conhecimento indispensável à correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor jurídico da conduta e é, portanto, um erro que exclui o dolo.”.

       A propósito do artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal, pode-se ler, ainda, no acórdão deste Supremo Tribunal de 09-04-2015, processo n.º 5/13.1TRGMR.S1 - 5.ª Secção:

       “Nos termos do n.º 2 do artigo 180.º do CP:

       «2. A conduta não é punível quando:
a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e

b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.»

       Consagra, assim, o n.º 2 do artigo 180.º uma específica causa de justificação com um âmbito de aplicação geral e universal (muito embora tenha uma prevalente incidência na conflitualidade entre o direito à honra e o direito a informar).

       Para se afirmar esta causa de justificação é necessário que se verifiquem, cumulativamente, duas condições: a imputação de facto desonroso ser feita para realizar interesses legítimos e, para além disso, o agente provar a verdade da mesma imputação ou ter fundamento sério para a reputar verdadeira.

Para preencher a intencionalidade ínsita na alínea a) é necessário que se demonstre a prossecução de interesses legítimos.

       A justificação jurídico-penal da conduta ofensiva da honra que se traduz na imputação de factos não depende, apenas, da realização de um interesse legítimo, a lei impõe, ainda, que o agente prove a verdade da imputação ou que haja tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.

       A boa fé não pode significar uma pura convicção subjectiva por parte do agente, antes tem de assentar numa imprescindível dimensão objectiva.

Por outro lado, essa específica causa de justificação é inaplicável à formulação de juízos de valor ofensivos, por impossibilidade de preenchimento da condição da alínea b).

       Facto é um juízo de afirmação sobre a realidade exterior, é um juízo de existência ou de realidade.

      Juízo já não é uma apreciação relativa à existência de uma ideia ou de uma coisa mas ao seu valor.”.

      Mas, a justificação da ilicitude da conduta, quando está em causa o crime de difamação, não se verifica apenas nos casos do artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal, operando também as causas de exclusão da ilicitude previstas na parte geral do Código Penal, isto é, no artigo 31.º do Código Penal.

 Assim, e como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 21 de Abril de 2010, processo n.º 1/09.3YGLSB.S2 – 3.ª Secção, “A lei substantiva penal prevê expressamente, aliás, situações em que a lesão de um determinado bem ou interesse penalmente tutelado é considerada, em concreto, lítica. São os casos previstos pelas normas que regulam as causas de justificação. A saber: o exercício de um direito, o cumprimento de um dever, a execução, pelo subordinado hierárquico, duma ordem legítima ou ilegítima do seu superior, a legítima defesa, o uso legítimo de arma, o estado de necessidade, o consentimento do ofendido.

       Significa isto que, quando alguém tem de agir numa das situações tipicizadas, não comete crime, por não ser considerada ilícita a lesão do bem ou interesse em causa dado que o legislador, apreciando a situação de conflito, indicou um interesse como prevalente, cuja tutela quer ver salvaguardada. Só assim se pode encontrar uma solução para as hipóteses de conflito e simultaneamente dar realização a uma exigência de justiça. Há uma ideia, a ideia de proporção entre os interesses em conflito, que paira e domina soberanamente as normas que disciplinam as causas de justificação. O legislador entende que os interesses em conflito devem ser ponderados entre si, já que a desproporção ou as soluções por ela ditadas repugnam à própria essência do direito, que é proportio hominis ad hominem e, portanto, justiça nas relações inter-subjectivas.

      Daqui que as causas de justificação expressamente previstas possam e devam estender-se, por aplicação analógica ou apelando para um princípio geral de direito. É que estas normas penais não estão sob a alçada do princípio da proibição da aplicação por analogia legis ou por analogia juris, na medida em que não são normas restritivas da liberdade como as normas incriminatórias nem são normas excepcionais. Elas gravitam em torno da ideia de que, em caso de conflito de interesses, um deles deve sempre prevalecer, pois seria absurdo consentir no sacrifício de ambos.

      Trata-se evidentemente do princípio da ponderação de interesses, o qual subjacente se acha sempre a todas as situações de conflito, constituindo o fundamento último da justificação do facto.”.

       Vejamos, então, começando pela análise da causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 31.º do Código Penal.

       As expressões em causa foram produzidas no âmbito de uma acção ordinária, que correu termos sob o n.º 704/12.5..., na ... Secção Cível da Instância Central da Comarca de Lisboa, Juiz ..., proposta pelo ora recorrente contra a ora assistente.

       “Invocou [o autor], sucintamente, que no exercício das suas funções como Inspetor Judicial foi nomeado para instruir um procedimento disciplinar que o Conselho Superior da Magistratura havia decidido instaurar contra a R., por motivo desta alegadamente ter chamado de mentiroso ao Dr. Heitor Gonçalves, também Inspetor Judicial.

      No decurso das diligências instrutórias desse procedimento, o A. apurou a falsidade de um depoimento testemunhal em que a R. sustentava a sua defesa, sendo que na sequência a mesma apresentou um incidente de escusa, uma participação criminal e participações disciplinares contra o A.

     Posteriormente, apareceram na comunicação social várias notícias que reproduziam as afirmações que a R. havia produzido nessas peças processuais contra o A., nomeadamente nos jornais “Público” nas edições de 27 de Outubro e 15 de Novembro de 2011, no “Sol”, na edição de 4 de Novembro de 2011, no “Correio da Manhã”, edição de 12 de Novembro de 2011, e no “Diário de Notícias” de 21 de Novembro de 2011.

       Todas essas notícias tiveram origem em informações prestadas pela R. com o propósito de denegrir o A., na sua honra e consideração pessoal e profissional, sendo seu intuito de afastá-lo da direção do procedimento que lhe era movido, de pressionar o Conselho Superior de Magistratura a instaurar processo disciplinar contra o A. e de impedir que o mesmo fosse graduado para o Supremo Tribunal de Justiça, o que conseguiu.

       Em conformidade, concluiu pedindo a condenação da R. no pagamento duma indemnização de €500.000,00, por danos não patrimoniais”.

       Na audiência de julgamento o Autor prestou declarações de parte, como consta da leitura da fundamentação da decisão da matéria de facto, a págs. 218 (§ 4.º), 219 (§§ 3.º e 7.º), 220 (§§ 5.º e 6.º), 221 (§§ 3.º, 6.º e 13.º), 222 (§§ 4.º e 5.º).

       No enquadramento jurídico da decisão proferida na acção ordinária consta que “No caso dos autos, tal como o A. configurou a sua pretensão na petição inicial, a conduta voluntária que foi imputada à R. traduzia-se na divulgação, por sua iniciativa, de peças processuais de conteúdo desabonatório para o A. e de informações falsas e caluniosas, através do jornais “Público”, “Sol”, “Correio da Manhã” e “Diário de Notícias”, documentadas a fls. 46 e 50 a 54, com o propósito de o denegrir na sua honra e consideração pessoal e profissional”.

      Tendo as expressões em causa sido proferidas no âmbito da prestação de declarações de parte, sendo que quanto a estas o arguido (então autor) estava obrigado a falar com verdade, nos termos dos artigos 466.º, n.º 2 e 417.º do Código de Processo Civil, poderá estar eventualmente em causa a alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal, e não, como indicado pelo recorrente, as alíneas b) e c) do artigo 31.º do Código Penal.

       Com efeito, não está em causa o exercício de qualquer direito, tão-pouco está em causa, como alega o recorrente nas conclusões AA) e AB), qualquer direito de denúncia, pois que estão em causa declarações de parte prestadas no âmbito de uma acção cível. O que está em causa é antes o cumprimento de um dever imposto por lei, a saber, o de falar com verdade.

       Mas a exclusão da ilicitude só funcionará, antes de mais, se as declarações de parte prestadas se tiverem confinado ao objecto do processo, uma vez que só nestes casos se verifica o cumprimento do dever de responder com verdade.

       Está em causa um processo de natureza civil, pelo que o objecto do mesmo, nos termos do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se cinge, no essencial, aos factos alegados pelas partes.

       Mais, as declarações de parte, nos termos dos artigos 410.º, 466.º e 461.º, ex vi do n.º 2 do artigo 466.º do Código de Processo Civil, são declarações sobre factos em que o declarante tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo, relativamente aos temas da prova enunciados que, naturalmente se hão-de conter dentro dos limites do objecto do processo, factualmente delimitado pelas partes, nos termos do já citado artigo 5.º do Código de Processo Civil.

       Ora, compulsada a sentença cível, constante de fls. 163 a 227 e segs. dos autos principais, a que os presentes autos de recurso se encontram apensos, referente ao processo onde as declarações de parte em causa nos presentes autos foram prestadas, verifica-se, analisada toda a factualidade aí dada como provada e não provada – ou seja, toda a factualidade que foi levada a tal processo pelas partes e que portanto constitui o objecto do processo – que os factos a que se referem as concretas declarações em causa nos presentes autos não constam de tal factualidade, nem como ela têm qualquer relação, não fazendo, por isso, parte do objecto do processo, extravasando, por isso, os limites das declarações de partes permitidos pelas disposições legais, constantes do Código de Processo Civil, acabadas de citar.

       Com efeito, percorridas as 51 páginas da matéria de facto provada e não provada constante da referida sentença, em nenhuma parte de tal factualidade se fala na pertença a lobbys, nem na realização de reunião para preparação de testemunhas, nem tão-pouco na autoria de qualquer carta anónima.

       Fala-se, isso sim, de uma série de notícias, respeitantes ao ora arguido e à ora assisten te – que constituirão o facto ilícito de tal processo cível de responsabilidade civil – que o arguido (então autor) terá considerado lesivas da sua honra, tendo-lhe causado danos, motivo pelo qual peticionou o pagamento de uma indemnização de 500.000,00€, sendo que nenhuma delas diz respeito - como é natural, já que as notícias dizem respeito ao ora arguido - à pertença a lobbys, nem à realização de reunião para preparação de testemunhas, nem tão-pouco à autoria de qualquer carta anónima, factos imputados por este à assistente e constantes das suas declarações de parte, prestadas no âmbito do referido processo civil, por ele intentado contra a assistente.

       O único facto que eventualmente se conexiona com tais declarações é o constante em 75) dos factos não provados da sentença cível (cf. fls. 200 dos autos principais). Mas, ainda assim, é coisa bem diversa afirmar, como o arguido fez, nas suas declarações de parte, que existe um lobby negativo montado - o que pressupõe uma organização montada especificamente contra si - de que fazem parte, entre outras pessoas, a assistente; do que o que consta do facto 75) de que existia, por parte da assistente, “o objectivo de pressionar o CSM, a instaurar um processo disciplinar contra o A. e de impedir que o A. fosse graduado para o STJ”.

       Assim, é patente que as concretas declarações em causa nos presentes autos extravasam os limites permitidos das declarações de parte – diga-se, aliás, que uma criteriosa condução da audiência impediria, até, que fossem produzidas – pelo que as mesmas não podem beneficiar da causa de exclusão de ilicitude prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal.

      Nem se diga, como parece invocar o recorrente, nas suas conclusões T), W) e AB), que tais seriam factos instrumentais. Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 14 de Março de 2019, proferido no processo n.º 84/07.0TVLSB.L1.S1 – 7.ª Secção: “Factos instrumentais são aqueles que, sem fazerem directamente a prova dos factos principais, servem indirectamente a essa prova como indícios geradores da convicção sobre a realidade ou ocorrência”.

       Ora, mal se compreende como é que os factos constantes das declarações de parte prestadas pelo arguido (de a assistente ter realizado uma reunião para preparação de perguntas contra si, de ser a autora de uma carta anónima e de fazer parte de um lobby negativo montado contra o arguido) podiam ajudar à prova do facto de ter sido aquela a fonte das notícias alegadamente lesivas da honra do arguido e causadoras dos danos peticionados.

       Reafirma-se, extravasando as concretas declarações de parte, em causa nos presentes autos, os limites legalmente permitidos das declarações de parte, não podem estas beneficiar da causa de exclusão de ilicitude prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal.

       Mas, ainda que assim não se entendesse – o que reiteramos, não é o caso – a imputação de factos desonrosos a terceiros responsabiliza quem a faz, que tem de estar preparado para suportar as afirmações por si produzidas, pelo que, uma vez invocado o dever de falar com verdade, importa averiguar objectivamente se existem nos autos indícios suficientes de que estamos na presença do cumprimento desse dever de falar com verdade.

       Quer isto dizer que, não basta a alegação de que se estava em cumprimento de um dever, sem mais, para se encontre excluída a ilicitude, pois que o dever em causa, que constitui causa de exclusão da ilicitude, é o dever de falar com verdade e não apenas o dever de falar/depor.

       Não se desconhece a posição de certa jurisprudência dos Tribunais da Relação – aliás invocada pelo recorrente quando se refere (erroneamente) à existência da autoridade de caso julgado – de que quando esteja em causa o dever de falar com verdade o que pode ser cometido é apenas o crime de falsidade de testemunho e nunca o crime de difamação. Ou seja, para quem assume esta posição, ainda que as declarações prestadas não correspondam à verdade, o único crime que pode estar em causa é o crime de falsidade de testemunho e nunca o de difamação.

      Quanto a nós, tal posição não pode ser adoptada, sob pena de, a coberto de uma pretensa obrigação de falar com verdade, tudo se poder dizer. Reiteramos: o dever em causa só se mostra cumprido com a prestação de depoimento/declarações com verdade e não apenas com a prestação de tal depoimento/declarações. Mais, os bens jurídicos protegidos pelos crimes de falsidade de testemunho e de difamação são diversos – a realização ou administração da justiça no primeiro caso e a honra no segundo – pelo que a punição de tais condutas apenas com o crime de falsidade de testemunho, não protege a totalidade dos bens jurídicos em causa.

       Inexistem, nos autos, indícios de que o arguido cumpriu o dever legal de depor com verdade, sendo que também as causas de exclusão da responsabilidade penal necessitam de ser provadas, não existindo qualquer presunção legal que determine, face à inexistência de prova, a procedência da causa de exclusão da responsabilidade penal concretamente alegada.

       Entendimento diferente colocaria os visados com as imputações, numa posição intolerável, incapaz de fazer a prova da falsidade das imputações que lhe são dirigidas, prova negativa essa que é praticamente impossível. Com efeito, a pessoa que imputa factos desonrosos a terceiros é quem está em melhor posição para, em primeiro lugar, ajuizar da bondade de proceder a essas imputações e, se for caso disso, fazer a prova da sua verdade, sendo mesmo muitas vezes a única pessoa que o pode fazer.

      A circunstância da veracidade da imputação poder ser uma eximente neste caso, não transforma a falsidade da imputação em elemento do tipo incriminador, tal como, por exemplo, a circunstância do legislador afastar a ilicitude em casos de legítima defesa não transforma a ausência de defesa legítima em elemento do crime.

       Com efeito, para que a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 31.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal pudesse proceder, sempre seria necessário que dos autos constassem, pelo menos, indícios no sentido de que o arguido prestou as declarações de parte com verdade, indícios esses que, pura e simplesmente, inexistem.

       Como já referido, o recorrente não impugna a matéria de facto dada como suficientemente indiciada, nem tão-pouco discorda da leitura articulada dos meios probatórios realizada pela decisão instrutória, limitando-se, nas conclusões P) a S), U) a V) e X) a AB), a repetir a sua versão dos factos, que constava já do requerimento de abertura de instrução e que, a decisão instrutória, fundamentadamente, não acolheu.

      Ora, caso pretendesse que outros factos fossem dados como indiciados, designadamente, os respeitantes à causa de exclusão da ilicitude invocada, competia-lhe a especificação dos concretos pontos de facto que considerou incorrectamente apreciados e a especificação das concretas provas que impunham decisão diversa da recorrida, o que não fez.

      Pelo que, sendo a matéria de facto indiciada a constante da decisão instrutória, dela não constam indícios no sentido de que o arguido prestou as declarações de parte com verdade, pelo que não pode operar a causa de exclusão da ilicitude, prevista na alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal.

       Diga-se, ainda, que mal se compreende a invocação por parte do recorrente da causa de exclusão da ilicitude específica do artigo 180.º, n.º 2, do Código Penal (bem como, como já indicado, da alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º do Código Penal). O sistema de causas de exclusão não pode operar “à la carte”: ou bem que se está perante o exercício de um direito – previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 31.º e de que é exemplo o direito de denunciar – ou bem que se está perante o cumprimento de um dever – previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 31.º, que é o caso dos autos –, ou bem que se está perante um interesse legítimo – previsto no n.º 2 do artigo 180.º do Código Penal, de que é exemplo o interesse de informar o público.

       Como sobejamente afirmado, o que está em causa é, apenas e tão-só, o eventual funcionamento da alínea c) do artigo 31.º do Código Penal, já que as imputações em causa foram realizadas no quadro da prestação de declarações de parte.

      Mais, ainda que assim não fosse, as declarações de parte produzidas no âmbito de um processo cível só poderiam fazer actuar a causa de exclusão da ilicitude prevista no artigo 180.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, se essas declarações forem verdadeiras. Só assim, a punibilidade da conduta do agente é afastada.

       E, assim sendo, por não se haver apurado, ainda que a título indiciário, a veracidade das declarações prestadas, não se pode, sem mais, considerar o interesse como legítimo, pelo que também por esta via, nunca a ilicitude da conduta estaria excluída.

       Improcede, pois, o recurso do arguido, nesta parte.



       Questão V - Falta de consciência da ilicitude.

      Entende, ainda, o recorrente, na conclusão M), que agiu com falta de consciência da ilicitude, uma vez que “interiorizou a doutrina” constante das decisões proferidas nos processos n.ºs 595/11.3PBBGC.G1 e 114/12.4TRPRT (relativamente às quais invocou, também a existência da autoridade de caso julgado, já analisada e declarada improcedente supra).

       Vejamos.

       Nos termos do artigo 17.º do Código Penal:

       “1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável.

       2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”.

       Conforme indica Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, UCP, 2008, pág. 102.

       “2. A falta de consciência da ilicitude coloca-se nos seguintes tipos de casos: (1) erro sobre a ilicitude da acção (por exemplo, o estrangeiro comete uma excisão clitoriana em território nacional, convencido de que essa prática é tolerada pela ordem jurídica nacional); (2) erro sobre a existência de um dever de garante na omissão (por exemplo, o pai não age em salvamento do filho, porque pensa que a ordem jurídica não lhe impõe o dever de garante); (3) erro sobre a existência ou os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa (por exemplo, o professor esbofeteia um aluno na convicção de que tem o direito de correcção); (4) erro sobre os elementos normativos do tipo (por exemplo, o empregado apossa-se da receita na loja na convicção de que ela não é coisa “alheia” se o patrão tiver uma dívida para com ele); e (5) erro sobre a validade da norma (por exemplo, o agente supõe erroneamente que a norma seja inconstitucional ou nula).

     3. O erro sobre a ilicitude não censurável é uma causa de exclusão da culpa. A deficiência da consciência ética do agente não lhe permite apreender os valores jurídico-penais e orientar-se para a observância do direito.”.

      No que diz respeito à censurabilidade, que é o critério delimitador da punição ou não da actuação sem consciência da ilicitude, citando o acórdão deste Supremo Tribunal de 27-01-2016, processo n.º 23/10.1PEAGH.L1.S1 – 3.ª Secção:

“No âmbito da definição e critério dos limites da não censurabilidade da falta de consciência da ilicitude, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS convoca a natureza da relação que se pode estabelecer entre o erro ou engano que se exprime no facto, e a personalidade da pessoa que erra ou se engana, considerando que «A. Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável. B. Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante».

       Segundo o mesmo Autor, «a falta de consciência do ilícito será não censurável «sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamente em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deva responder. Também a personalidade que erra sobre o sentido de uma valoração jurídica se mantém substancialmente “responsável”, parecendo por isso dever arcar com a culpa pelo ilícito-típico cometido».

       Acompanhando o mesmo Autor, «a censurabilidade da falta de consciência do ilícito implica sempre “um certo pedaço de culpa na condução da vida” ou na preparação da personalidade. No preciso sentido em que a prova da persistência no agente, apesar do erro da consciência ética, de uma atitude de fidelidade ou de correspondência a exigências do direito depende não só do que puder concluir-se da atitude interna documentada no facto, como ainda da verificação de que o agente é um tal que se tem esforçado por assegurar o carácter jurídico (lícito) dos seus actos, até ao ponto de aquele esforço se revelar como uma forma do existir».

       Analisando.

       Desde logo, importa sublinhar que não basta a mera invocação da falta de consciência da ilicitude completamente desgarrada de qualquer suporte/invocação factual, para que a mesma possa proceder.

       Com efeito, a consciência da ilicitude tem suporte factual, não se tratando de pura matéria de Direito. E, no caso, da factualidade que foi dada como indiciada, e pela qual o arguido foi pronunciado, constam factos que sustentam a efectiva existência de consciência da ilicitude por parte do recorrente. Assim, para que a invocação do recorrente pudesse ter hipóteses de ser bem-sucedida sempre o recorrente teria de impugnar a matéria de facto que foi dada por indiciada, o que não fez.

       Mas, ainda que assim não se entendesse, o resultado final seria o mesmo, isto é, a improcedência da alegação da falta de consciência da ilicitude.

       Como decorre do que acima se explanou, a falta de consciência da ilicitude pressupõe um erro do agente acerca da natureza ilícita da sua conduta, ou seja, pressupõe que o agente aja na convicção de que a sua conduta não é ilícita.

      Invoca o recorrente que, uma vez que nos processos n.ºs 595/11.3PBBGC.G1 e 114/12.4TRPRT se entendeu que, estando o arguido obrigado a responder às perguntas com verdade, caso mentisse, o único crime que poderia ter praticado era o de falsidade de testemunho e nunca o de difamação, o mesmo “interiorizou a doutrina” de tais acórdãos, tendo, por isso, agido com falta de consciência da ilicitude.

       Ora, mal se compreende o que o recorrente pretende afirmar, pois que para que isso fosse verdade, sempre teria de se apurar – indiciariamente, face à fase processual em que nos encontramos – a veracidade das afirmações que produziu, pois que, caso contrário, ainda dentro de tal “doutrina”, estaria a cometer um crime, a saber, o de falsidade de testemunho. Pelo que, a questão não se centra, nem coloca em tela de juízo, como é bom de ver, a matéria da falta de consciência da ilicitude, mas antes a da prova da veracidade das afirmações produzidas, questão que já analisámos quando nos debruçámos sobre a Questão IV.

      A problemática da falta de consciência da ilicitude colocar-se-ia, por exemplo, se o recorrente desconhecesse que imputar factos desonrosos a outrem, dirigindo-se a terceiro, é crime, o que, convenhamos, é difícil de sustentar estando em causa um magistrado judicial.

      Pelo que, sem necessidade de mais considerandos, também quanto a esta questão improcede o recurso apresentado.

  Questão VI - Inconstitucionalidade do artigo 180.º do Código Penal, por violação dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretado no sentido de que comete tal crime quem, em declarações de parte, em que está obrigado a dizer a verdade, “afirma que se criou um lóbi negativo relativamente à sua imagem e que teve lugar reunião para se combinar as perguntas e respostas que teriam lugar no âmbito da inquirição em processo disciplinar da assistente, como lhe foi relatado por pessoa da sua confiança”.

Os fundamentos em que o recorrente sustenta a inconstitucionalidade que invocou, cingem-se à afirmação apodíctica de que, leitura diversa da plasmada nos processos n.º 595/11.3PBBGC.G1 e n.º 114/12.4TRPRT, do Tribunal da Relação de Guimarães - que nos casos em que o agente está obrigado a falar com verdade (porque, por exemplo, depõe enquanto testemunha), apenas pode ser cometido o crime de falsidade de testemunho, p. e p. no artigo 360.º do Código Penal, sempre que se prove a falsidade das declarações prestadas, nunca sendo possível a existência de um crime de difamação – é inconstitucional por violação dos arts. 2.º, 13.º e 20.º, da Constituição da República Portuguesa [conclusões N) e O)].

      Limita-se, ainda, a afirmar na conclusão AC) que tal interpretação viola a “letra e espírito dos art.º 2.º e 20.º da CRP, bem como de garantias, princípios e direitos constitucionais (como a garantia da segurança jurídica, o princípio da protecção da confiança dos particulares relativamente à continuidade da ordem jurídica, o princípio do processo equitativo e o direito à tutela judicial efectiva), quando interpretado, como no douto despacho recorrido, no sentido de que está verificado o tipo legal da difamação quando alguém apresenta queixa-crime contra incertos e indica pessoas concretas como suspeitas, com base em 24 indícios concretizados”.

       Desde já se adianta que não se descortina que a interpretação em causa do art. 180.º viole algum comando constitucional. Com efeito, supra já tivemos oportunidade de elencar as razões que nos levam a considerar que pode haver o cometimento do crime de difamação, ainda que estejam em causa declarações prestadas em sede de depoimento ou declarações de parte: o cumprimento do dever de falar com verdade não pode constituir uma carta branca para que tudo se possa dizer (ainda que não seja verdade) sem que tal constitua (para além do eventual crime de falsidade de testemunho) um crime de difamação.

      Não se descortina que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade, não se vendo como a mesma possa violar os princípios do Estado de direito democrático, o princípio da igualdade ou o princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, ínsitos nos artigos 2.º, 13.º e 20.º, da Constituição da República Portuguesa invocados pelo recorrente, cuja integridade não se mostra afectada no caso dos autos, não se integrando a situação dos autos em qualquer das previsões contidas nestes artigos.

       A isto acresce que o recorrente também não explica, nas suas conclusões, de que forma ocorre tal violação, nada adiantando acerca das razões pelas quais se entende haver inconstitucionalidade. Sendo que procurar encontrá-las redundaria numa operação de adivinhação que não compete a este tribunal.

      Não se conhecendo, assim, os fundamentos da alegação de inconstitucionalidade, conclui-se que neste ponto não se suscita qualquer verdadeira questão de constitucionalidade de que deva conhecer-se, mas uma questão de discordância com a interpretação em causa (que não corresponde à interpretação adoptada nos processos n.ºs 595/11.3PBBGC.G1 e n.º 114/12.4TRPRT, do Tribunal da Relação de Guimarães), sendo que quanto a isso já nos pronunciamos supra, não descortinando, reafirma-se, que a interpretação adoptada viole qualquer preceito constitucional.

       Mais, competia ao recorrente, para além de indicar os preceitos constitucionais que entendia terem sido violados, indicar também os concretos motivos em que tal violação se traduz. Isso mesmo já se decidiu no seu acórdão n.º 410/01 do Tribunal Constitucional, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc: “Não basta, com efeito, acusar uma norma de violar um preceito constitucional para se considerar justificada tal alegação; ora o reclamante continua a não indicar por que motivo a norma em apreciação viola as garantias de defesa do arguido em processo penal”.

       Não o tendo feito, sibi imputet.

      Assim, pelos motivos supra expostos, improcede a inconstitucionalidade invocada.




      Questão VII - Atipicidade da conduta ou, quanto muito, eventual subsunção no crime de denúncia caluniosa.

     Vem o recorrente, por fim, invocar a atipicidade da sua conduta, considerando, em suma, que as declarações prestadas não são ofensivas da hora e da consideração da assistente.

      Já abordamos supra o crime de difamação bem como os contornos e limites do conceito de honra e consideração. A decisão instrutória recorrida considerou que as declarações em causa no presente recurso (respeitantes, em síntese, à pertença da assistente a um lobby negativo montado contra o arguido, à realização de reunião para preparação de testemunhas e à autoria de uma carta anónima) eram susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente. Fê-lo com a seguinte fundamentação:

       “Assim, quanto ao facto imputado pelo arguido à assistente de integrar um “lóbi” anti maçonaria - isto é um grupo de pressão, com determinada orientação política, movido pelo propósito de, mediante a formação de uma opinião negativa sobre a pessoa do arguido, prejudicá-lo no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça - há que convir que, ainda que não seja, e não tem de ser, ilícito, tal facto é objectivamente adequado a desacreditar, a desprestigiar, a criar suspeitas quanto ao seu comportamento social, ético, e não só.

      Na verdade, sendo a visada com tal afirmação, a aqui assistente, magistrada, a imputação desse facto é susceptível de criar dúvidas acerca da sua conduta social e até funcional, considerando o alegado fim do dito “lóbi” − o de prejudicar as aspirações, por suposto legítimas, de um outro magistrado, o aqui arguido, de ser graduado para o Supremo Tribunal de Justiça – e os critérios de estrita isenção, imparcialidade, e objectividade que devem e têm de nortear quem, como a assistente, exerce a função jurisdicional.

      Facto que, sendo passível de justificação, o arguido não logrou provar a sua veracidade nem demonstrar que tinha fundamento sério para, em boa-fé, o reputar verdadeiro, devendo, por via disso, ser pronunciado pelo mesmo facto, ofensivo da honra e da consideração da assistente, o que o arguido não ignorava.

       E o mesmo sucede ainda quanto à já referenciada reunião (se não reuniões) alegadamente havida, no armazém da testemunha EE , entre a assistente e outras pessoas (entre as quais o assistente) com vista a combinarem as respostas que as últimas deveriam dar às perguntas que a primeira lhes fizesse quando fossem inquiridas no âmbito do Processo Disciplinar n.º 269/11- PD.

      

Com efeito, pelas razões que, já aduzidas quanto a esta questão, a propósito do assistente BB, aqui se dão por reproduzidas, julga-se que indiciariamente se preenchem na conduta do arguido os tipos objectivo e subjectivo de ilícito do crime de difamação, posto que as mencionadas afirmações e os referidos juízos de valor emitidos acerca da pessoa da assistente são de jeito a ofendê-la na sua honra e consideração, o que o arguido, enquanto magistrado, não podia desconhecer.

     Como também acontece em relação à imputação que o arguido fez à assistente de ter sido a autora de uma carta anónima dirigida ao Conselho Superior da Magistratura e onde dava conta que o mesmo fazia parte de uma rede internacional de tráfico de droga e de diamantes, e que violara uma funcionária judicial, da qual tinha um filho.

     Na realidade, não tendo o arguido logrado justificar o referenciado facto – que, assentando tão-só na sua convicção, se prende ainda com o alegado propósito de, mediante a formação de uma opinião negativa a seu respeito, prejudicá-lo na graduação para o Supremo Tribunal de Justiça – há que considerar que pelo mesmo facto, objectivamente ofensivo da honra e consideração da assistente enquanto desprestigiante e adequado a criar suspeitas sobre o seu comportamento social, ético, e até funcional, deve o arguido ser pronunciado.”.

   Não querendo repetir o que se já se disse sobre o conceito de honra, convém recordar que se podem surpreender duas vertentes na honra: uma vertente interna que tem a ver com a dignidade pessoal de cada um e uma vertente externa que tem a ver com a imagem que se reflecte perante a sociedade em geral.

     Existe, assim, uma honra subjectiva ou interna que corresponde ao juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesma, e uma honra objectiva ou externa que corresponde à representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, à consideração, bom nome, à reputação que uma pessoa goza no contexto social envolvente – neste sentido veja-se Faria Costa, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, Coimbra, 1999, pág.603. Ao invés do que sucede noutros ordenamentos jurídicos, no ordenamento jurídico português a lei estende a tutela da honra à consideração ou reputação exteriores.

     Assim, relevante para o preenchimento do crime de difamação é o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre e a forma como a mesma se realiza.

      Pelo que, só em face do caso concreto, isto é, realizando a contextualização das expressões eventualmente ofensivas, se pode verificar se determinada conduta é ou não ofensiva e preenche o tipo objectivo do crime de difamação.

      Mais, como se refere no acórdão deste Supremo de 04-10-2018, processo n.º 5/13.1TRGMR.S2 - 5.ª Secção, que tem como partes os mesmos intervenientes (assumindo contudo o ora arguido a qualidade de assistente e a ora assistente a qualidade de arguida), sumário disponível em https://www.stj.pt/?page_id=4471:

“(…) cumpre, ainda, ter em consideração que nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180.º e 181.º, tudo dependendo da “intensidade” da ofensa ou perigo de ofensa (Oliveira Mendes, ob.cit. supra, p. 37). Este tem sido, também, o entendimento do TEDH, que tem vindo a afirmar que, para que esteja em causa o art. 8.º da CEDH, a violação da honra tem de atingir um determinado grau de seriedade e tem de causar um efectivo prejuízo (Axel Springer AG v. Germany [GC], § 83). Tem, ainda, entendido o TEDH, que o art. 8.º da CEDH não terá aplicação nos casos em que a violação da honra seja previsivelmente consequência de acções do próprio ofendido, como por exemplo, no caso de prática de ilícitos criminais (Gillberg v. Sweden [GC], § 67; Sidabras and Džiautas v. Lithuania, § 49; Mikolajová v. Slovakia, § 57).

Com efeito, há que distinguir o comportamento ofensivo da falta de urbanidade, pois a falta de educação e os comportamentos indelicados, só por si, não constituem ofensas à hora e consideração, ainda que assim sejam percebidos, subjectivamente, pelo ofendido.

(…)

Em suma, atendendo ao supra exposto, para que um facto ou juízo possa ser havido como ofensivo da honra e consideração - e portanto merecedor da tutela penal prevista no art. 180.º, do Código Penal, integrando o tipo objectivo previsto no n.º 1 do citado preceito legal - deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável de forma a que a sociedade não lhe seja indiferente.

Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração, mínimo este cuja aferição tem que ser feita, não com base na perspectiva subjectivista do ofendido, mas antes com base na contextualização do concreto facto ou juízo em causa. Contextualização que passa por verificar o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre e a forma como a mesma ocorre. Com efeito, só assim se poderá aferir se as concretas imputações de factos/juízos possuem a intensidade/seriedade exigida para que se encontre preenchido o tipo objectivo previsto no n.º 1 do art. 180.º do Código Penal.

Na análise da contextualização dos concretos factos ou juízos em apreço e da aferição da sua intensidade/seriedade há, ainda, que ter em conta a necessidade de articulação do direito à honra e consideração com o direito à crítica (liberdade de expressão): ambos são direitos constitucionalmente protegidos (respectivamente pelos arts. 26.º e 37.º da Constituição da República Portuguesa) e ambos são também direitos consagrados e protegidos por diversos instrumentos internacionais, designadamente pela CEDH, nos seus arts. 8.º e 10.º. A necessidade de tal articulação e de realizar um “equilíbrio justo” (“fair balance”) entre estes dois direitos tem sido também afirmado pelo TEDH (Hachette Filipacchi Associés v. France, § 43; MGN Limited v. the United Kingdom, § 142).

(…)

Como referido, para que uma determinada imputação de factos/juízo seja considerado ofensivo da honra e/ou consideração é suposto verificar-se uma intensidade/seriedade mínima, sendo que, para tanto é necessário contextualizar as concretas expressões proferidas, havendo, ainda, que distinguir a falta de educação e a indelicadeza de comportamentos ofensivos da honra e da consideração.

Tal contextualização passa, designadamente, pela concatenação entre a liberdade de expressão e o direito à honra e consideração.

Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos. A liberdade de expressão e informação, não se esgota na narração de factos, antes supõe o direito de exprimir e divulgar o pensamento, estendendo-se também ao “direito de opinião”, o qual se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor.

Tal direito à opinião/direito à crítica tem limites, tendo que ser conciliado com o direito à honra, pois que, um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.

O equilíbrio entre os dois direitos constitucionais há-de ser feito tendo em conta o princípio jurídico-constitucional da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa), segundo o qual se deve procurar obter a harmonização ou concordância prática dos dois direitos em confronto (o “fair balance” como indica o TEDH na jurisprudência supra citada), que se há-de traduzir numa mútua compressão por forma a atribuir a cada um a máxima eficácia possível.

O equilíbrio entre estes dois direitos há-de ter em conta que existem regras de convivência em sociedade que estabelecem a “obrigação e o dever” de cada cidadão se comportar, relativamente aos demais, com um mínimo de respeito moral, cívico e social, sendo certo que tal mínimo de respeito não se confunde, porém, com educação ou cortesia, pelo que os comportamentos indelicados não fazem parte daquele mínimo de respeito, já que o Direito Penal não deve nem pode proteger as pessoas face a impertinências e faltas de educação: a tal impõe o princípio do mínimo de intervenção do aparelho sancionatório do Estado.

Como se refere no acórdão do TC n.º 81/84 (Relator: Cons. Messias Bento, DR II série, de 03.01.1985, consultável aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19840081.html), “a liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (…). Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização”.

       Revertendo ao caso concreto.

      Entende o recorrente que “ao afirmar que, na sequência de notícias caluniosas publicadas pela imprensa, se formou um lóbi que negativo relativo à pessoa do Recorrente, que muito o tem prejudicado, jamais tal afirmação importou ultraje, menoscabo ou vilipêndio contra alguém, ou sequer pôs em causa as qualidades morais de alguém, designadamente da assistente”.

Ora, as expressões em causa não se limitam a afirmar a existência de um lobby negativo relativo à pessoa do recorrente, mas a indicar que a assistente fazia parte deste lobby (cf. facto 14, fls. 65) e que esse lobby tinha como único objectivo prejudicar o recorrente (cf. facto 13, fls. 65).

       Extrai-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 135/88, de 16 de Junho de 1988, proferido no processo n.º 137/87 - 2.ª Secção, publicado no Diário da República, II Série, n.º 208, de 8-09-1988 e no BMJ n.º 378, pág. 176:

“A independência dos juízes é, acima de tudo, um dever - um dever ético social.

A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz de, ao «dizer o direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores, é, assim, o seu punctam saliens. A independência, nesta perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a «densidade» da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz.”.

A independência e a imparcialidade são, assim, qualidades que um magistrado deve fazer por proteger, pelo que a afirmação de coisa diversa constitui uma ofensa à honra de qualquer magistrado. A pertença a uma lobby, para mais um lobby que tem como único objectivo prejudicar alguém, é claramente um facto que belisca a imagem de independência e imparcialidade que um magistrado deve manter.

Assim, mal se compreendem os motivos para o recorrente considerar que tal afirmação não é susceptível de ofender a honra da assistente, tanto mais que a mesma é magistrada.

Do mesmo modo mal se compreende, também, como pode o recorrente sustentar que as declarações que proferiu, atinentes à realização pela assistente de reunião para preparação de testemunhas e à autoria da mesma de uma carta anónima, não são atentatórias da honra da assistente, pois que as mesmas beliscam, de igual modo, a imagem de independência e imparcialidade que qualquer magistrado deve manter.

Como se pode ler na decisão instrutória, com a qual concordamos, tais expressões são atentatórias da honra e consideração da assistente, tanto mais que a mesma é magistrada, bulindo com os critérios de estrita isenção, imparcialidade e objectividade que devem nortear a assistente. São expressões, como se pode ler na decisão instrutória, “desprestigiante[s] e adequado[as] a criar suspeitas sobre o seu [da assistente] comportamento social, ético, e até funcional”, para mais quando todas estas supostas acções da assistente terão tido - na versão do recorrente constante das declarações pelo mesmo prestadas - como único objectivo prejudicá-lo.

Tais expressões não consubstanciam um mero juízo crítico, uma mera opinião negativa, sobre a personalidade da assistente, sendo idóneas a atingir o essencial do direito à honra e consideração desta, ultrapassando o patamar da simples expressão azeda ou agressiva.

E nem se diga, como pretende afirmar o recorrente nas suas conclusões AI) a AL), que este não agiu dolosamente, pois que lendo tais conclusões o que se verifica é que o recorrente se limita a reiterar que as afirmações que produziu eram verdadeiras (o que já invocou como causa de exclusão da ilicitude e que já apreciamos supra) e que considerou que tal conduta não seria crime de difamação (o que já havia invocado em sede de falta de consciência da ilicitude e de autoridade do caso julgado, que também já analisamos).

       Ora, a verdade é que nada disso releva para aferir da existência de dolo e este encontra-se indiciariamente provado, constando da decisão instrutória. Se o recorrente queria pugnar pela inexistência de dolo tinha antes de mais que impugnar a matéria de facto dada como indiciariamente provada pela decisão instrutória, o que não fez.

       Assim, improcede, também, nesta parte o recurso apresentado.

       Concluindo: o recurso improcede na sua totalidade.

       Decisão

 

       Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a decisão instrutória, ora recorrida, de pronúncia do mesmo.

       Custas pelo arguido, nos termos do artigo 513.°, n.º 1, do Código de Processo Penal.

       Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.°, n.º 2, do CPP.

       Oportunamente, cumpra a remessa à distribuição ordenada pela decisão instrutória recorrida.

     Lisboa, Escadinhas de São Crispim, 29 de Maio de 2019


Raul Borges (relator)
Mário Belo Morgado