RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE
CONCESSIONÁRIA DA AUTO-ESTRADA
LEI INTERPRETATIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Sumário

I- Em caso de acidente de viação em auto-estrada, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária, tal como decorre do art.º 12.º da Lei n.º 24/2007, de 28/7.
II- Essa norma é interpretativa, ao consagrar uma das soluções controvertidas na doutrina e na jurisprudência, pelo que deve aplicar-se aos casos ocorridos antes da sua vigência.
III- Ilide a presunção de culpa que sobre si impende no cumprimento das obrigações de segurança a concessionária que procede à fiscalização da via com regularidade, passando pelo mesmo local de duas em duas horas, assim cumprindo o dever de vigilância e actuando com a diligência que lhe era exigida no contrato de concessão.
IV-A derrapagem resultante de piso escorregadio, devido à presença de substância viscosa no pavimento derramado por terceiro, figura entre os riscos próprios do veículo a que se refere o art.º 503.º do código Civil e a responsabilidade do seu condutor não é excluída pela existência daquela substância, por não ser bastante para quebrar o nexo de causalidade adequada entre a condução e o acidente.

Texto Integral


Proc. nº 2338/07.7TBPNF.P1 – 3º Juízo do Tribunal Judicial de Penafiel
Rel. F. Pinto de Almeida (R. 1328)
Adj. Des. Teles de Menezes; Des. Mário Fernandes

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.
B….. e C……. instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinária, contra D….., S.A.. e E……, S.A..

Pediram a condenação da 1ª ré:
a) a pagar ao 1º autor a quantia global de € 1.490,00, sendo os montantes de € 500,00 e de € 990,00, respectivamente, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento;
b) a pagar à 2ª autora a quantia global de € 24.600,16, sendo os montantes de € 5.000,00 e de € 19.600,16, respectivamente, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Subsidiariamente e para a hipótese dos pedidos anteriores improcederem, a 2ª autora reclama da 2ª ré o pagamento das indemnizações devidas por todos os danos por ela sofridos e decorrentes do acidente em causa nos autos, peticionando a condenação desta a pagar àquela a quantia global de € 16.036,25, sendo os montantes de € 5.000,00 e de € 11.036,25, respectivamente, a título de danos não patrimoniais e patrimoniais, acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa de 4%, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

Como fundamento, alegaram ter ocorrido um acidente de viação, em que foi interveniente o motociclo de matrícula 57-23-XP, conduzido pelo 1º autor, e que transportava, como passageira, a 2ª autora, proprietária do mesmo, sendo que, quando circulava na A.E. A4, no ramo de acesso àquela auto-estrada, no sentido Marco de Canaveses/Porto, no lugar de Recezinhos, Km 45, Penafiel, ao descrever uma curva para a direita, onde existiam diversos rastos de uma matéria desconhecida, espalhados nesse local da via, tal motociclo entrou em despiste, despiste este provocado pela viscosidade de tal matéria.
Em consequência daquele despiste o motociclo foi embater no separador central daquele ramal, situado do lado esquerdo dessa via, atento o sentido de marcha do motociclo.
Imputam a responsabilidade da ocorrência do sinistro à ré D……., porquanto, enquanto concessionária da A4, não cuidou de proceder à limpeza do pavimento, como lhe competia, por forma a assegurar as condições de segurança da via em questão, cujo dever de vigilância lhe está atribuído.
Caso assim não se entenda, alegam, então e subsidiariamente, que deve a 2ª ré ser responsabilizada pelos danos verificados para a 2ª autora, responsabilidade esta decorrente do facto do condutor do motociclo não ter conseguido evitar o embate por imperícia sua e a responsabilidade decorrente da circulação de tal veículo encontrar-se transferida para aquela ré, através da apólice n.º 90310261.

As rés contestaram, impugnando a matéria alegada pelos autores, tendo a 2ª ré aceite a versão do acidente alegada por aqueles.
A 1ª ré pugnou pela improcedência da acção, requerendo a intervenção acessória da “F……, S.A.”, dado que havia transferido para a mesma a sua responsabilidade civil, tendo, por via disso e no caso de vir a ser condenada na acção, direito de regresso contra aquela.
A 2ª ré reclama que a acção seja julgada de acordo com a prova que vier a produzir-se.
Foi admitida a intervenção acessória da “F……, S.A.”, e, citada, a mesma aderiu à contestação da 1ª ré, invocando a franquia existente, e alegou que esta, através dos seus funcionários e da BT, procede ao patrulhamento regular da auto-estrada, o que foi feito no dia do acidente, não tendo sido detectada na via a presença de qualquer substância viscosa, pugnando pela improcedência da acção.

Foi citada a Segurança Social, tendo o Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital do Porto, com sede na rua António Patrício, n.º 262, no Porto, vindo reclamar o subsídio de doença pago à 2ª autora, em consequência da incapacidade para o trabalho que sofreu com o acidente em apreço.
Conclui pedindo, a título principal, a condenação da 1ª ré a pagar-lhe a quantia de € 1.525,74, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a citação até efectivo pagamento, e, a título subsidiário, a condenação naqueles termos da 2ª ré.

A 2ª ré contestou tal pedido de reembolso, impugnando, no essencial, os factos aí alegados.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença, nestes termos:
Decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condena-se:
a) a ré “D…., S.A.”, a pagar ao autor B…… a quantia a liquidar em execução de sentença pelo dano da inutilização das calças;
b) a ré “D….., S.A.”, a pagar ao autor B….. a quantia de € 300,00 (trezentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a data da prolação da presente sentença e até integral e efectivo pagamento;
c) a ré “D……, S.A.”, a pagar à autora C…… a quantia a liquidar em execução de sentença pelo dano da inutilização das calças;
d) a ré “D……, S.A.”, a pagar à autora C…… a quantia global de 11.253,80 (onze mil duzentos e cinquenta e três euros e oitenta cêntimos), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a data da citação e até efectivo pagamento;
e) a ré “D….., S.A.”, a pagar à autora C…… a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a data da prolação da presente sentença e até efectivo pagamento;
f) a ré “D……, S.A.”, a pagar ao Instituto da Segurança Social, I.P., Centro Distrital do Porto, a quantia de € 1.525,74 (mil quinhentos e vinte e cinco euros e setenta e quatro euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, vencidos e vincendos desde a data da citação e até efectivo pagamento.
Quanto ao remanescente dos pedidos deduzidos pelos autores B…… e C……, absolve-se a 1ª ré do mesmo.
O conhecimento dos pedidos subsidiários fica prejudicado.

Discordando desta decisão, dela interpuseram recurso a ré "D….." e a chamada "F……", tendo apresentado as seguintes

Conclusões da ré
1. O facto 36 da douta sentença recebeu o teor dos quesitos 48º e 49º na sua redacção originária da BI. Ou seja, a douta sentença não reparou – o que se deve a lapso – que os quesitos 48 e 49 – provados – receberam em audiência de julgamento nova redacção, como consta da 3ª pág. da acta de 19-2-2010. Daqui resultou que ao ter sentenciado a matéria do ponto 36 da douta sentença esta não teve em conta que a matéria apurada em audiência foi afinal outra.
2. Resulta provado nos presentes autos que no dia do acidente a apelante vigiou o local onde ele ocorreu pelo menos a cada 2 horas e que sempre encontrou a via limpa.
3. A douta sentença apelada não teve em consideração este facto provado, cometendo por isso a nulidade prevista no art. 668º, nº 1, al. d) do CPC.
4. Com tal actuação a apelante cumpriu as suas obrigações de segurança pois estas não lhe exigem a vigilância em espaço de tempo mais curto (ponto I supra).
5. A lei “interpretada” (pela Lei 24/2007), não há dúvida, seria o contrato. Não pode haver acto unilateral - “lei interpretativa” de contrato. A dúvida pretensamente dirimida é duma cláusula contratual, cuja interpretação compete aos tribunais. A lei resolveu intervir, mas não é interpretativa. Não é interpretação autêntica, nem tem efeito retroactivo.
6. “… antes não existia qualquer presunção de incumprimento”.
Se assim não se entendesse
7. A apelante alegou na contestação que vigiou o local do acidente às 18 horas e a via estava então limpa; do depoimento das testemunhas resultou que a vigilância da apelante foi cerca das 18H15. A vigilância efectuada 1H40 ou 1H25 antes do acidente realiza o cumprimento das obrigações de segurança.
8. A resposta ao quesito 44º - atento e considerado, como requer, o fundamentado em II, 2 supra – deverá ser a de que a mancha de mosto não estava no local há mais de 1 hora antes do acidente ou lá não se encontrava antes das 18H15; se tal não se entendesse deverá quesitar-se o facto 12º da contestação da apelante.
Nestes termos e nos mais de direito deverá a presente apelação ser julgada procedente.
Conclusões da chamada:
1. Porque o contrato que atribui à D…… a concessão das auto estradas se limita a regular as relações entre concedente e concessionário, não conferindo aos particulares, que não são parte do contrato, o direito a demandar a D…… invocando a responsabilidade contratual daquela;
2. Porque assim sendo, como é, a eventual responsabilidade da concessionária da auto-estrada por danos sofridos pelos utentes em consequência de acidente de viação se traduz numa responsabilidade extracontratual;
3. Porque a existência daquela depende da verificação em concreto dos pressupostos gerais mencionados no artigo 483 do Código Civil, ou seja o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e dano;
4. Porque em face da carência de factos dados como provados falecem pelo menos dois daqueles pressupostos – a culpa e o nexo de causalidade – e nessa medida não pode o acidente dos autos ser imputável à D….. a título de culpa;
5. Porque nos termos do disposto no artigo 483 n º 2 do Código Civil só existe a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, nos casos especificados na lei;
6. Porque não existe, seguramente, qualquer disposição legal que imponha a responsabilidade objectiva à D…..;
7. porque, independentemente do tipo de responsabilidade da concessionária da auto-estrada perante os utentes, a douta sentença labora em equívoco, traduzido em manifesto lapso que urge corrigir e que ora se requer, uma vez que não considerou em sede de fundamentação de facto, as respostas de provado às questões nº 48º e 49º da Base Instrutória com a redacção que lhes foi dada por despacho proferido em acta de audiência de julgamento do dia 19.02.2010, impondo-se, por conseguinte, que seja rectificado o ponto 36 fundamentação de facto da sentença (em consonância com a resposta dada ao artigo 48º da BI) e a ela aditado o teor da resposta dada ao artigo 49º da BI.
8. porque, com essa alteração dos factos dados como provados conjugados com os demais, e nomeadamente os resultantes das respostas dadas aos artigos 41º a 45º da Base Instrutória, fácil é tirar a conclusão de que a D….. agiu com a diligência que lhe era exigível patrulhando a auto-estrada e vigiando-a com regularidade, de modo a passar pelo mesmo local de duas em duas horas;
9. a presente acção tinha de ser, forçosamente, julgada improcedente;
10. porque, ao invés do sustentado na douta sentença em crise, não tem aplicação ao caso dos autos – tendo em conta a data da ocorrência sub judice – o disposto na Lei 24/2007, de 18.07, que não pode ser considerada Lei interpretativa;
11. porque, mesmo que tal Lei se considere interpretativa e se aplique às ocorrências verificadas antes da sua entrada em vigor ela permite às concessionárias de auto-estradas fazer a prova do cumprimento das normas de segurança de molde a elidirem a presunção de incumprimento que sobre elas impende, provando que actuaram com diligência e sem qualquer culpa de sua parte;
12. porque, perante os factos dados como provados – nomeadamente os resultantes das respostas aos artigos 41º a 45º, 48º e 49º (estes, repete-se, com a redacção que lhe foi introduzida por despacho de 19.02.2010) – é inequívoco que eles denunciam o cumprimento das normas de segurança exigíveis, em termos realistas, à D….., uma vez que esta provou que actuou com a diligência que lhe era exigível no cumprimento da obrigação de vigilância das condições de segurança da A4;
13. porque, a não se entender desse modo estar-se-ia, na prática, a criar uma responsabilidade objectiva da ré D….., pois não se vê como conseguiria ela alguma vez elidir a presunção que contra si ocorre, a não ser que exiba um culpado pela presença de “mosto de vinho” na faixa de rodagem da auto-estrada, que se configura trabalho digno de Hércules;
14. responsabilidade objectiva essa que nem sequer a dita Lei 24/2007 consente que dela se extraia;
15. ao decidir do modo como decidiu a douta sentença em crise fez errada aplicação e interpretação do disposto nos artigos 12º, 342º, 483º, 487º, 493º, 798º e 799º do Código Civil, pelo que, pelas razões expostas, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso por forma a julgar a acção improcedente,

Não foram apresentadas contra-alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Questões a resolver:

- Divergência entre a matéria de facto provada e a indicada na fundamentação da sentença;
- A eventual responsabilidade da concessionária da auto-estrada é extracontratual;
- A concessionária agiu com a diligência que lhe era exigível, cumprindo as suas obrigações de segurança;
- A Lei 24/2007, de 18/7, não tem natureza interpretativa;
- Não há presunção de incumprimento por parte da concessionária;
- Se assim se não entender, deve ser ampliada a matéria de facto.
III.
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1º - No dia 21/09/2004, pelas 19,40 h, ocorreu um despiste na A.E. A 4 – Ramo E, no lugar de Recezinhos – km 45, Penafiel, em que foi interveniente um motociclo de marca “Kawasaki”, modelo ZX600K (Ninja ZX6-RR), com a matrícula ..-..-XP, pertencente a C…...
2º - O motociclo XP era, na data do acidente, conduzido pelo autor B…… e transportava, como passageira, a autora C……..
3º - O motociclo de matrícula ..-..-XP, na altura do acidente, circulava no ramo de acesso à A.E. A 4, no sentido Marco de Canaveses/Porto.
4º - No local a via configura uma curva para a direita, a qual antecedia, à época, a portagem de acesso à A4.
5º - O condutor do XP deparou-se, inesperada e subitamente, com rastos de uma matéria desconhecida, espalhados nesse local da via.
6º - O XP devido à viscosidade de tal matéria entrou, de imediato, em despiste.
7º - Como consequência directa daquele despiste, o referido motociclo foi embater no separador central daquele ramal, situado do lado esquerdo dessa mesma via, atento o referido sentido de marcha, projectando os autores para o solo.
8º - Os rastos da matéria existente no pavimento na altura do acidente eram de “mosto de vinho” e tinham uma extensão de 100 metros, tendo sido deixados pela passagem no local de viaturas que transportavam uvas a granel, as quais entornavam o referido mosto, ao descrever a curva existente nesse local.
9º - Como consequência directa do embate, a autora foi de imediato transportada ao hospital de Santa Isabel, sito no Marco de Canaveses, onde foi admitida no respectivo serviço de urgência.
10º - Na sequência deste acidente compareceu no local a brigada de trânsito da GNR, que elaborou a respectiva participação de acidente de automóvel.
11º - Após solicitação efectuada pela ré D….. compareceu no mesmo local, cerca de duas horas após a ocorrência do acidente aqui em causa, uma brigada dos Bombeiros Voluntários de Vila Meã, para proceder à lavagem do pavimento.
12º - Em consequência do embate, o autor apresentava várias escoriações.
13º - O autor sofreu dores, quer na altura do acidente, como consequência de ter sido projectado para o solo, quer nos dias seguintes.
14º - A autora, em consequência do acidente, sofreu escoriações e uma fractura do terço médio da clavícula esquerda, pelo que teve de ser transferida do hospital de Santa Isabel para o hospital Padre Américo – Vale do Sousa, sito em Guilhufe, Penafiel.
15º - Local onde veio a ser imobilizada com “cruzado posterior”, para consolidação de tal fractura.
16º - Na sequência daquela fractura, nos meses seguintes, a autora teve que recorrer aos serviços do Centro Hospitalar de Vila Real/Peso da Régua, S.A., para consultas e tratamentos, nomeadamente em 6/10/2004, 27/10/2004, 17/11/2004, 24/11/2004, 15/12/2004 e 12/01/2005.
17º - A autora, na sequência da fractura, teve que recorrer aos serviços do centro de Saúde do Marco de Canaveses, para consultas, nomeadamente em 27/09/2004, 6/10/2004, 8/11/2004, 2/12/2004, 28/12/2004 e 3/01/2005.
18º - Durante cerca de três meses e meio, a autora, quer na altura do acidente quer no decurso dos tratamentos e consultas, padeceu de dores e incómodos.
19º - Como consequência directa do acidente, o autor inutilizou um par de calças.
20º - Como consequência directa do acidente, a autora inutilizou um par de calças.
21º - Com os tratamentos e consultas supra referidas, a autora despendeu a quantia global de € 57,10.
22º - Com taxas moderadoras, exames, consultas e medicamentos, não incluídos nos factos vertidos nos arts. 22º e 23º da B.I., a autora suportou despesas no montante global de € 139,89.
23º - A autora é operadora de segunda.
24º - No exercício da sua profissão, a autora tinha, à data do acidente, um vencimento mensal ilíquido de 466,00, mas auferia uma remuneração média mensal de € 577,74.
25º - Como consequência do acidente aqui em causa, a autora esteve incapacitada para o trabalho desde o dia seguinte à data do acidente, ou seja, 22/09/2004 até 30/11/2004, tendo recebido subsídio de doença, na quantidade global de € 1.525,74.
26º - A autora, como consequência directa do acidente em causa nos presentes autos, ficou com uma IPP de 3%.
27º - O motociclo XP, em consequência do acidente, sofreu os estragos nas partes referidas no orçamento de fls. 52, tendo sido orçada em 7.366,45 o custo da respectiva reparação.
28º - A autora vendeu o motociclo nas condições em que o mesmo ficou após o acidente pelo montante de € 500,00.
29º - O XP, à data do acidente, havia sido adquirido há menos de 3 meses, no estado de novo, pelo preço de € 10.071,01.
30º - Entre a data da aquisição do XP e a data do acidente, a desvalorização do veículo foi de pelo menos 20% do seu valor inicial.
31º - No dia referido em 1 não existiu qualquer outro despiste nem nos dois dias precedentes.
32º - Antes do despiste referido em 1 ninguém comunicou à D….. a existência da substância na via.
33º - No dia do despiste referido em 1 e antes deste, funcionários da D….. passaram em fiscalização pelo local onde ocorreu o mesmo e a via estava limpa.
34º - O tráfego médio diário que passa naquele troço era de 400 veículos.
35º - O autor não aguardou pela chegada da GNR nem chamou a ambulância.
36º - A BT da GNR procede ao patrulhamento da A4 de duas em duas horas, o que fez no dia do despiste referido em 1.(adiante alterado).
37º - Na madrugada do dia 22/09/04, pelas 00,50 h, o autor apresentou a reclamação junto da barreira de portagem do nó com o IP 9 da ré D…. .
38º - Em resposta a tal reclamação, o autor recebeu uma carta da D….., datada de 24/09/2004, na qual esta declina qualquer responsabilidade pela ocorrência aqui em causa.
39º - A autora nasceu em 17/05/1979 (cfr. doc. de fls. 233 e 234).
40º - À data do acidente, o autor havia transferido para a 2ª ré a responsabilidade civil decorrente de acidentes de viação, relativamente ao veículo de matrícula ..-..-XP, através da apólice n.º 90310261.
41º - À data do acidente, a 1ª ré havia transferido a sua responsabilidade civil para a “F….., S.A.”, através da apólice n.º 87/38.299, vigorando uma franquia de € 748,20 por sinistro (cfr. doc. de fls. 151 a 167).
IV.
Cumpre apreciar as questões acima indicadas.

1. As Apelantes insurgem-se contra o teor do facto acima indicado sob o nº 36, alegando que, por lapso, decorrente porventura da alteração anteriormente efectuada à redacção dos correspondentes quesitos, esse facto não corresponde ao que resultou da decisão sobre a matéria de facto.
Têm razão, como parece manifesto.

Com efeito, na acta de fls. 356, foi deferida a rectificação da numeração e da redacção dos quesitos 47º e 48º, passando estes a ser do seguinte teor:
48º - A D….. através de funcionários seus e a BT da GNR procedem ao patrulhamento da A4, por forma a passarem pelo mesmo local de duas em duas horas?
49 – O que aconteceu no dia do acidente referido em a) mas tanto os funcionários da D….. como a BT da GNR não detectaram a presença na via de qualquer substância?
A resposta a estes quesitos foi "provado".

Na sentença não se procedeu ao aditamento de qualquer facto, nem se procedeu a qualquer exame crítico das provas produzidas, fundando-se apenas nos factos que, na anterior decisão, foram dados como provados – art. 659º nº 3 do CPC.
Daí que tivesse naturalmente de se ater a esses factos, como se impõe nessa norma.
Deve, por conseguinte, alterar-se o facto indicado na fundamentação da sentença com o nº 36, atendendo-se, em sua substituição, aos factos que constam dos referidos quesitos, julgados provados.
Assim:
- A D….. através de funcionários seus e a BT da GNR procedem ao patrulhamento da A4, por forma a passarem pelo mesmo local de duas em duas horas,
- O que aconteceu no dia do acidente referido em a), mas tanto os funcionários da D….. como a BT da GNR não detectaram a presença na via de qualquer substância.

2. Os autores sustentam que o acidente de que foram vítimas foi causado por uma substância viscosa que se encontrava no pavimento da via, que provocou o despiste do veículo em que se faziam transportar, e que a 1ª ré é contratualmente responsável, por, negligentemente, não ter cuidado da limpeza do pavimento, como lhe competia, por forma a assegurar as condições de segurança, cujo dever de vigilância lhe está atribuído.
Mesmo que se entenda que a responsabilidade dessa ré é extracontratual, esta decorrerá do disposto no art. 493º do CC, pelo que sempre será de presumir a sua culpa.

Esta posição dos autores reflecte duas das teses possíveis sobre a natureza da responsabilidade das concessionárias das vias classificadas como auto-estradas pelos acidentes de viação aí ocorridos[1]. A outra tese, predominante, a que já aderimos[2], qualifica essa responsabilidade como extracontratual, sem presunção de culpa da concessionária[3].
A relevância desta questão tem a ver justamente com a consequência que daí decorre em termos de prova de culpa, mais precisamente sobre quem recai o ónus de provar a culpa da concessionária.
Não nos vamos alongar sobre esta questão, já proficientemente explanada na sentença recorrida, uma vez que, naquele ponto essencial, está de algum modo ultrapassada com a entrada em vigor da Lei 24/2007, de 28/7, à qual tem sido reconhecida natureza interpretativa.

Dispõe o art. 12º desta lei:
1. Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
(…)
3. São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.

Decorre desta disposição que, em caso de acidente de viação em auto-estradas, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança pertence à concessionária, pondo assim termo à querela jurisprudencial e doutrinária sobre essa questão.
A aplicação desta disposição ao caso dos autos, ocorrido antes da entrada em vigor da citada lei, depende de se lhe reconhecer natureza interpretativa (art. 13º do CC).

A este respeito, afirma-se no Acórdão do STJ de 08.02.2011[4]:
"Como se sabe, nos termos do art. 12.º, n.º 1, do CC, as normas, em regra, não têm aplicação retroactiva, razão porque não se deveria aplicar, em princípio, à situação em causa, já que ocorreu antes da entrada em vigor do dito preceito.
Todavia as leis interpretativas, nos termos do artigo 13.º, n.º 1, do CC, devem integrar-se na lei interpretada e, consequentemente, têm aplicação imediata. A lei interpretativa deve considerar-se como remontando à data da lei interpretada.
Assim o entende a doutrina dominante, não só nacional, mas também estrangeira (vide a este propósito “Da Aplicação das Leis no Tempo, EMÍDIO PIRES DA CRUZ, Lisboa, 1940).
A retroactividade neste âmbito resulta de as leis interpretativas fazerem corpo com a lei interpretada, constituindo uma única lei. Não contêm nenhum princípio novo de direito. Consequentemente, os tribunais aplicando as leis interpretativas, estão, no fundo, a empregar a lei interpretada.
Assim, se se entender a disposição referenciada como uma norma interpretativa a mesma, por ter aplicação imediata (retroactiva), terá aplicação ao caso vertente.
As leis interpretativas podem ser assim definidas pelo legislador. Se tal acontecer, não se levantará qualquer dúvida sobre essa sua natureza.
Outras, porém, terão que ser dessa forma qualificadas, através do recurso à interpretação.
Sobre esta questão, VAZ SERRA, (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 107.º, pp. 174 e 175, alerta:
“…Uma lei só é interpretativa, com eficácia retroactiva, quando ela própria ou outra lhe atribua essa natureza: a eficácia retroactiva de uma lei depende de uma vontade legislativa nesse sentido, cabendo, por conseguinte, ao intérprete apreciar se a nova lei quer, ou não, atribuir-se tal eficácia, ou se esta lhe é porventura atribuída por outra lei. Ora, o simples facto de uma lei consagrar uma solução que já na lei anterior certa jurisprudência ou certa doutrina julgava consagrada não é suficiente para se atribuir natureza interpretativa àquela lei, pois não é indício seguro de que esta queira ter eficácia retroactiva, o que, dada a sua gravidade, não pode, sem mais, presumir-se”.
Quanto ao critério definidor das leis não qualificadas legislativamente como interpretativas, têm-se vindo a aceitar depender da existência cumulativa de dois elementos: a) a lei regular um ponto de direito acerca do qual se levantam dúvidas e controvérsias na doutrina e jurisprudência; b) a lei consagrar uma solução que a jurisprudência pudesse tirar do texto da lei anterior, sem intervenção do legislador (vide EMÍDIO PIRES DA CRUZ, obra citada, p. 246).
No mesmo sentido, BAPTISTA MACHADO (Sobre a Aplicação no Tempo do novo Código Civil, 1968, pp. 286 e ss.) sustenta que, para a lei ser considerada como interpretativa, exige-se:
“1º – Ela intervém para decidir uma questão de direito cuja solução era controvertida ou incerta no domínio da vigência da L.A (lei antiga). Significa isto, antes de tudo, que, para que a LN (lei nova) possa ser interpretativa de sua natureza, é preciso que haja matéria de interpretação. Se a regra de direito era certa na legislação anterior, ou se a prática jurisprudencial lhe havia de há muito atribuído um determinado sentido, que se mantinha constante e pacífico, a LN que venha resolver o respectivo problema jurídico em termos diferentes deve ser considerada uma lei inovadora….
2º – A lei interpretativa, para o ser, há-de consagrar uma solução que a jurisprudência, pelos seus próprios meios, poderia ter chegado no domínio da lei anterior. Significa este pressuposto, antes de mais, que se a LN vem na verdade resolver um problema cuja solução constituía até ali matéria de debate, mas a resolve fora dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida, deslocando-o para um terreno novo ou dando-lhe uma solução que o julgador ou o intérprete não estavam autorizados a dar-lhe, ela será indiscutivelmente uma lei inovadora….
Para que a LN possa ser concebida como uma lei interpretativa, será preciso que ela consagre uma forte corrente jurisprudencial ou doutrinal anterior? Não necessariamente… A LA não tem de consagrar uma corrente doutrinal prevalecente, sendo suficiente a adopção de uma interpretação defendida anteriormente”.
Face a estes pressupostos, afigura-se-nos que a referenciada norma é interpretativa, consagrando uma das soluções controvertidas pela doutrina e jurisprudência. Resolveu um problema, cuja solução constituía até ali matéria de debate, dando-lhe uma solução dentro dos quadros de controvérsia anteriormente estabelecida".
Este entendimento foi também adoptado nos Acórdãos do STJ de 13.11.2007, 09.09.2008, 01.10.2009 e 02.11.2010 e desta Relação de 19.01.2009 e de 05.01.2010[5].

Como lei interpretativa, a mesma deve ter aplicação imediata e, por conseguinte, deve aplicar-se ao caso destes autos.
Importa, então, saber, como se refere no citado Acórdão, se a concessionária ilidiu a presunção de culpa no que respeita ao acidente, ou seja, saber se lhe pode ser imputada qualquer violação das regras de segurança e afirmar que a substância viscosa que existia na via e que causou o despiste do veículo, se pode imputar à violação daquelas regras.

Estas regras são as decorrentes do DL n.º 294/97, de 24/10, com destaque para as que constam das seguintes Bases:
XXXIII – 1. A concessionária deverá manter as auto-estradas que constituem o objecto da concessão em bom estado de conservação e perfeitas condições de utilização, realizando nas devidas oportunidades, todos os trabalhos necessários para que as mesmas satisfaçam cabal e permanentemente o fim a que se destinam, em obediência a padrões de qualidade que melhor atendam os direitos do utente.
XXXVI – 2. A concessionária será obrigada, salvo caso de força maior devidamente verificado, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas (…).
XXXVI – 3. A concessionária deverá estudar e implementar os mecanismos necessários para garantir a monitorização do tráfego, a detecção de acidentes e a consequente e sistemática informação e alerta do utente no âmbito da rede concessionada (…).
XXXVII – 1. A concessionária é obrigada a assegurar a assistência aos utentes da auto-estrada que constituem o objecto da concessão, nela se incluindo a vigilância das condições de circulação.

No caso dos autos ficou provado que, na altura do acidente, existiam no pavimento da auto-estrada rastos de uma substância viscosa, constituída por "mosto de vinho", numa extensão de 100 metros, aí deixados pela passagem no local de viaturas que transportavam uvas a granel, ao descreverem a curva existente nesse local.
O autor, condutor do veículo XP, ao descrever essa curva para a direita, deparou-se inesperada e subitamente com essa substância no pavimento e, por virtude da viscosidade desta, entrou, de imediato, em despiste, indo embater no separador central (cfr. factos supra nºs. 4 a 8).
Não há assim dúvidas de que o acidente teve como causa a substância viscosa que se encontrava no pavimento da via e que provocou o despiste do veículo conduzido pelo autor.
E a questão que se coloca é a de saber se a ré D…. logrou ilidir a presunção de culpa que sobre si impende no cumprimento das obrigações de segurança a que está adstrita.

Na sentença concluiu-se que a matéria apurada não é suficiente para elidir tal presunção, por a ré não ter provado "quanto tempo antes os seus funcionários fizeram a vigilância do local, apenas se sabendo que no dia a fizeram e a via estava limpa, podendo tal ter acontecido diversas horas antes do acidente".
E acrescentou-se:
"Ora, o cumprimento do dever de vigilância que sobre a 1ª ré impende, de forma a garantir a segurança eficaz da via, tem de ser feita com uma regularidade temporal frequente e em horários aproximados.
Se é certo que não lhe é exigível o patrulhamento da via de minuto a minuto, também verdade que a realização do patrulhamento uma vez por dia é manifestamente insuficiente para se considerar cumprido o seu dever de vigilância.
Assim, a 1ª ré não demonstrou que, no caso concreto, actuou com a diligência que uma boa e normal empresa, por analogia a um bom pai de família, teria em face do condicionalismo do caso concreto e que cumpriu com as obrigações que, sobre matéria de segurança, assumiu no contrato de concessão da exploração daquela auto-estrada (A4), constantes do DL 294/97 de 24/10".

Parece-nos evidente, contudo, que esta posição só encontra justificação no lapso cometido na transposição dos factos provados para a sentença, como se referiu no início desta fundamentação.
Recorde-se que se provaram estes factos:
- No dia do despiste referido em 1 e antes deste, funcionários da D….. passaram em fiscalização pelo local onde ocorreu o mesmo e a via estava limpa.
- A D….. através de funcionários seus e a BT da GNR procedem ao patrulhamento da A4, por forma a passarem pelo mesmo local de duas em duas horas,
- O que aconteceu no dia do acidente referido em a), mas tanto os funcionários da D….. como a BT da GNR não detectaram a presença na via de qualquer substância.

A ré D….., como concessionária, estava obrigada, como vimos, a manter a auto-estrada em perfeitas condições de utilização, devendo assegurar que a circulação ocorra em boas condições de segurança e comodidade, tendo, para o efeito, de proceder a adequada vigilância das condições de circulação.
No caso, a substância viscosa derramada no pavimento da via não é, como ficou provado, da responsabilidade da ré, mas de terceiros, utentes também da mesma auto-estrada. Não sendo esse facto imputável à ré, a esta incumbia apenas uma adequada vigilância para descobrir e afastar essa fonte de perigo, por forma a impedir que a mesma pudesse dar origem a acidentes.
Se é evidente que sobre a ré impende o dever de proceder à imediata limpeza da via, também é certo que esta só o poderá fazer quando os seus serviços detectem esse ou outro obstáculo semelhante à segurança da circulação de veículos, obstáculo que era imprevisível (não podendo, por isso, sinalizá-lo previamente ou tomar outras medidas preventivas), e que não podia impedir (mesmo cumprindo integralmente todos os seus deveres).
Tudo está, pois, em saber se a vigilância exercida pela ré foi, no circunstancialismo descrito, a adequada e exigível: não uma qualquer vigilância, "mas aquela que em termos razoáveis é susceptível de detectar aquelas ocorrências que pelo seu perigo podem causar acidentes graves"[6].

À semelhança do que tem sido decidido em casos semelhantes[7], e tomando como padrão a normal diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso, cremos que à ré concessionária não era exigível uma vigilância mais intensa do que aquela que efectua normalmente e que, no caso, ficou provada.
Como já se afirmou, deve ter-se "o realismo para reconhecer que fazer vigilância não é – porque nada o impõe – ter, permanentemente, vigilantes, à vista uns dos outros, em todas as auto-estradas"[8]; nem o é – porque nada o impõe e tal não seria em regra possível, nem comportável – fazer passar equipas de fiscalização minuto a minuto, ou outra frequência próxima, em todos os pontos das auto-estradas.
Saliente-se que o intervalo de tempo que mediou entre a última fiscalização efectuada pela ré e o acidente foi, no máximo, de 2 horas[9], podendo ser bem inferior; na altura da passagem dos funcionários da ré a via estava limpa.
É evidente que a concessionária não pode, por regra, detectar imediatamente o obstáculo colocado na via por outrem, seja líquido derramado no pavimento, seja um qualquer objecto aí deixado, por tal não ser materialmente possível, nem esse facto ser previsível (não sendo possível, por isso, também preveni-lo).
Mas também nos parece que não será razoável exigir da ré uma fiscalização mais frequente do que a referida: nas circunstâncias descritas ela não será, na verdade, normalmente necessária[10] e deve reconhecer-se que só muito dificilmente seria possível fazê-la (e suportar o respectivo custo), por se tratar de vias de grande extensão e permanentemente abertas ao trânsito de veículos.
Deve, por conseguinte, concluir-se que, neste caso, a ré ilidiu a presunção de incumprimento que sobre si impendia relativamente ao aludido dever de vigilância, tendo actuado com a diligência que lhe era exigida no contrato de concessão.
Daí decorre que não pode manter-se a decisão condenatória da ré, devendo improceder os pedidos formulados pelos autores a título principal.

3. Tendo em atenção esta conclusão a que chegámos quanto ao pedido principal, impõe-se-nos agora a apreciação do pedido subsidiário formulado pela autora, não conhecido na 1ª instância por ter sido considerado prejudicado com a decisão aí proferida[11].

Já acima nos referimos à dinâmica do acidente dos autos (factos supra nºs 4 a 8), tendo concluído que este se ficou a dever ao aparecimento inesperado e súbito de uma substância viscosa no pavimento da auto-estrada, numa extensão de 100 metros, o que motivou o despiste do motociclo conduzido pelo autor, seguido de embate no separador central da via.
Em consequência desse embate, a autora sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais.

Dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual (art. 483º nº 1 do CC) é manifesto que falha, na descrição precedente, a culpa do condutor do veículo.
Com efeito, nenhum facto se apurou que permita afirmar que a eclosão do acidente se ficou a dever a comportamento negligente do referido condutor (cfr. os factos referidos que permitem concluir, positivamente, por outra causa do despiste, que não qualquer conduta culposa do autor, e a resposta negativa ao quesito 50º).
Excluída a culpa do autor, resta saber se este deve responder pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo que conduzia.

Constitui jurisprudência praticamente pacífica a que considera "facto inerente ao funcionamento do veículo automóvel a derrapagem consequente quer de defeito orgânico do mesmo, quer do estado defeituoso do piso da via por onde circula, pois nessa circulação residem alguns dos riscos de utilização normal dos veículos terrestres. Assim, não constitui causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo a derrapagem resultante do piso escorregadio da estrada por se encontrar molhado e nele haver algum barro também molhado espalhado por outros veículos, sem esse estado da via se encontrar sinalizado"[12].
Como afirma Vaz Serra, "visto que a razão de ser da responsabilidade objectiva está no risco da actividade e esta se verifica também quando o dano se produz no estado e funcionamento normais do veículo, parece dever adoptar-se uma noção de força maior que não exclua a responsabilidade ainda que o dano tenha lugar nesses estado e funcionamento normais. Não são só os danos causados por defeito do veículo ou por falta dos seus dispositivos ou por vício de construção ou defeito de manutenção do veículo que são devidos ao risco especial criado pelos veículos: também os que surgem no estado e funcionamento normais do veículo podem ser devidos a esse especial risco e parece deverem, por isso, sujeitar-se ao mesmo tratamento".
E, como exemplo, acrescentava a "hipótese de derrapagem devida, não a excesso de velocidade (pois, então, há, em regra, culpa), mas, por exemplo, à humidade da estrada: um dos riscos de utilização de veículos está precisamente em circular em estradas que podem não oferecer toda a segurança contra derrapagens"[13].

No mesmo sentido, afirma Antunes Varela[14]:
"Se há acidentes que, por sua natureza, contendam especialmente com as características próprias dos veículos automóveis, a derrapagem (seja por velocidade excessiva, seja por virtude de óleo, do azeite, da neve ou da geada espalhadas na estrada ou na entrada da garagem ou da estação de serviço) é um deles.
A derrapagem – cuja causa e cujos efeitos se prendem normalmente com a velocidade, a força e o peso do veículo figura, sem nenhuma espécie de dúvida, entre os riscos próprios do veículo a que o art. 503º se refere. Não é de modo nenhum uma causa estranha ao funcionamento do veículo; é, pelo contrário, uma causa de acidentes inerente ao funcionamento do veículo, à condição ou à natureza da viatura. É um dos riscos próprios do veículo".

Pode pôr-se a questão de saber se não excluirá a responsabilidade objectiva do condutor do automóvel a circunstância de, como no caso, a substância viscosa ter sido derramada sobre o pavimento da via por terceiro, utente da mesma[15].
Na verdade, o art. 505º do CC exclui a responsabilidade do utente da viatura quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro ou quando resulta de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, sendo certo que, naquele caso, não se exige que o lesado ou o terceiro actuem com culpa, bastando que o facto seja da sua autoria.

Porém, como sublinha o citado Autor[16], "para que o acidente se considere imputável ao próprio lesado ou a terceiro e não (ou não também) ao utente ou condutor do veículo, é necessário que a actuação do lesado ou do terceiro tenham quebrado o nexo de causalidade adequada entre a actuação do condutor do veículo e o acidente. Só assim os riscos próprios do veículo deixarão de funcionar, no caso concreto, como causa adequada do acidente registado". E acrescenta depois:
"Se a derrapagem provocada pelas manchas do óleo na estrada não quebra o nexo de causalidade adequada entre a condução do veículo e a lesão mortal do atropelado, quando se não saiba como apareceu o óleo na estrada, não é a simples circunstância de acidentalmente se conhecer a proveniência das manchas do óleo que, em princípio, corta ou interrompe esse nexo"[17].

Conclui-se assim que se verifica, no caso, a responsabilidade objectiva do utente do veículo acidentado, sendo, por via disso e por virtude do contrato de seguro com ele celebrado, responsável também a ré E….. pelos danos sofridos pela autora em consequência do acidente – cfr. apólice junta e art. 427º do CCom.

Nos termos do art. 504º nº 3 do CC, tratando-se de transporte gratuito, como é obviamente o caso (atendendo à qualidade da autora), a responsabilidade abrange apenas os "danos pessoais da pessoa transportada".
Os danos pessoais são os produzidos sobre pessoas, distinguindo-se dos danos não pessoais, que se verificam sobre coisas; uns e outros podem apresentar-se como danos patrimoniais ou não patrimoniais nos termos em que estes se definem[18].
Dos danos que a autora incluiu no pedido formulado contra a ré E……, foram reconhecidos na sentença (nesta parte não impugnada) os seguintes:
- danos não patrimoniais - € 2.500,00;
- dano patrimonial futuro decorrente da IPP - € 3.500,00;
- despesas (consultas e tratamentos) - € 196,93 (57,10 + 139,83);
- destruição das calças – a liquidar.
Destes danos apenas este último é de excluir à luz do disposto no citado art. 504º nº 3.
A acção deve, pois, proceder parcialmente contra a ré E….. na medida dos demais danos indicados.
Deve ainda proceder contra a mesma ré o pedido de reembolso formulado pelo Instituto da Segurança Social, IP, pelos fundamentos indicados na sentença.
Será de manter o decidido na sentença quanto a juros de mora.

4. Fica prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada no recurso a título subsidiário (ampliação da matéria de facto).
V.
Em face do exposto, julgam-se as apelações procedentes, revogando-se em parte a sentença recorrida e, em consequência, na procedência parcial da acção:
- Julga-se improcedente o pedido principal formulado contra a ré "D…..", absolvendo-se esta ré desse pedido;
- Julga-se parcialmente procedente o pedido subsidiário, condenando-se a ré E….. a pagar:
- à autora, a quantia de € 3.696,93 (três mil seiscentos e noventa e seis euros e noventa e três cêntimos) por danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação;
- à autora, a quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença;
- ao Instituto da Segurança Social, IP, a quantia de € 1.525,74 (mil quinhentos e vinte e cinco euros e setenta e quatro cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a notificação do respectivo pedido.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos autores e da ré "E….." na proporção do decaimento, ficando ainda a cargo desta as custas relativas ao pedido de reembolso.

Porto, 17 de Novembro de 2011
Fernando Manuel Pinto de Almeida
Trajano Amador Seabra Teles de Menezes e Melo
Mário Manuel Baptista Fernandes
___________________
[1] No sentido da primeira tese, da responsabilidade contratual, cfr., entre outros, os Acórdãos de 17.02.2000, CJ STJ VIII, 1, 107, e de 22.06.2004 (www.dgsi.pt); na doutrina, Sinde Monteiro, RLJ 131-41 e ss., 132-29 e ss. e 133-27 e ss.; Cardona Ferreira, Acidentes de Viação em Auto-Estradas, 88 e 89. No sentido da segunda tese, cfr. o acórdão do STJ de 01.10.2009, no referido sítio.
[2] Acórdão proferido na apelação nº 1967/06, desta 3ª Secção que o ora relator e 1º adjunto subscreveram como adjuntos.
[3]8 Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 12.11.96, BMJ 461-411, de 20.05.2003 e de 14.10.2004, estes em www.dgsi.pt. Na doutrina, Menezes Cordeiro, Igualdade Rodoviária e Acidentes de Viação em Auto-Estradas, 56.
[4] Em www.dgsi.pt.
[5] Todos em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão da Relação de Lisboa de 30.09.2004, CJ XXIX, 1, 103.
[7] Cfr. os Acórdãos desta Relação de 19.01.2009, acima citado, e de 09.11.2009, publicado no mesmo site.
[8] Acórdão do STJ de 12.11.96 acima citado.
[9] Sem relevar a passagem da BT da GNR que só em caso de extrema coincidência será simultânea (encurtando, portanto, o período de tempo sem fiscalização) e que não detectou igualmente a presença da substância viscosa no pavimento.
[10] Diferente seria se se tratasse de uma via com tráfego muito intenso, como o caso da travessia de uma ponte de acesso a Lisboa, analisado no Acórdão da Relação de Lisboa de 30.09.2004, acima citado. Em trajectos curtos e com esse volume de tráfego são, porém, possíveis outros meios de vigilância.
[11] Sem necessidade, neste caso, de requerimento de ampliação (art. 684º-A do CPC), por o respectivo fundamento constituir já fundamento do recurso. Neste sentido, Lebre de Freitas, CPC Anotado, Vol. III, T.I, 2ª ed., 44 e também os Acórdãos do STJ de 13.02.2009 e de 11.03.2010, em www.dgsi.pt.
[12] Acórdão do STJ de 21.02.80, BMJ 294-321; no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 25.02.82, BMJ 314-298, de 20.12.90, BMJ 402-558, da Rel. de Lisboa de 30.09.2004, acima citado e desta Relação de 02.06.2005, em www.dgsi.pt.
[13] Fundamento da Responsabilidade Civil, BMJ 90-159 e 161.
[14] RLJ 118º-209.
[5] No sentido de que tal ocorrência constitui facto de terceiro que exclui a responsabilidade, cfr. o voto de vencido no citado Acórdão do STJ de 25.02.82.
[16] Ob. Cit., 211 e 212.
[17] Como ressalva o mesmo Autor, "o derramamento de óleo por veículo de outrem pode constituir uma segunda causa (uma concausa ou uma causa concorrente) do acidente e envolver responsabilidade solidária do utente desse veículo. Mas só afastará a responsabilidade do utente do veículo que, derrapando, provocou o acidente, quando excepcionalmente, pelas circunstâncias anómalas do caso, afastar o nexo de causalidade adequada (exigível) entre os riscos próprios desse veículo e o acidente ocorrido" – Ob. Cit., 213, nota (1).
[18] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., 594. Sobre os danos previstos no art. 504º do CC cfr. Dario M. Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 331 e ss.